No contexto das eleições gerais brasileiras de 2010, a Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto apresentou propostas para a legalização do aborto no Brasil. O intuito é reverter o processo de denúncias, humilhações e ações judiciais em curso, que atingem tanto mulheres que abortaram quanto as trabalhadoras que as atendem e as organizações que lutam pela legalização, assim como fazer avançar a concretização deste direito das mulheres no futuro próximo.
A Frente, criada no ano de 2008 nacionalmente e agora se estruturando nos estados, reúne pessoas, organizações, movimentos sociais e parlamentares comprometidos ao mesmo tempo com a defesa das mulheres criminalizadas pela prática do aborto e com a luta em defesa do direito ao aborto legal e seguro.
No Brasil, o caso emblemático de criminalização das mulheres ocorreu no estado do Mato Grosso do Sul, quando, após invasão de um clínica que supostamente fazia abortos, 10 mil mulheres tiveram suas fichas médicas violadas e 2 mil mulheres ficaram sob ameaça de indiciamento. As profissionais que trabalhavam na clínica que realizava o procedimento (três auxiliares de enfermagem e uma psicóloga) foram a júri popular no início de abril deste ano e condenadas sem nenhuma prova. Além disso, outras mulheres que supostamente praticaram aborto nesta clínica
foram condenadas, também sem provas, a trabalho comunitário.
Este caso revela o quanto estão fortes e enraizadas no Estado as forças reacionárias. No Congresso, desde 2008, a organização desses setores vem avançando continuamente.
Quatro frentes parlamentares anti-aborto atuam de forma extremamente organizada no Parlamento. Frentes estaduais de parlamentares começam a ser formadas. Integrantes dessas frentes e outros(as) parlamentares que também se posicionam contra a descriminalização e a legalização do aborto ocuparam, em maioria, as comissões que avaliam e votam os projetos de lei que dizem respeito aos direitos das mulheres.
No final de 2008, estes setores propuseram uma CPI que não foi implementada, mas parlamentares reacionários e machistas seguem se articulando para sua efetivação. Paralelamente, projetos de lei retrógrados, contrários aos direitos das mulheres, que foram propostos entre 2007 e 2009, tramitam no Congresso sob forte pressão para votação. Entre eles, há dois projetos orientados para aumentar a criminalização das mulheres: o Estatuto do Nascituro, que, se aprovado, impedirá a realização de abortos até em casos de estupro e criminalizará o debate e luta pela legalização; e o projeto que defende a obrigatoriedade do cadastramento de gestante no momento da constatação da gravidez, uma forma de manter a vida reprodutiva das mulheres sob vigilância, caracterizando as mulheres, de uma forma geral, como criminosas em potencial.
No inicio do ano de 2010 ocorreram novos fatos que atacaram ainda mais a democracia. Não bastasse a assinatura da Concordata Brasil-Vaticano, que estabelece um estatuto da Igreja Católica no país, desrespeitando a condição laica do Estado, setores da direita, entre eles integrantes da Igreja Católica, ruralistas e defensores da ditadura militar atacaram frontalmente o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3). Dentre os temas criticados por esses setores, está o apoio à revisão da legislação punitiva do aborto. O plano, elaborado a partir de conferências públicas, ou seja, da participação popular, foi totalmente desqualificado por esses grupos, que querem impor o
retrocesso de direitos, a subordinação e controle sobre o corpo e a vida das mulheres.
Os processos eleitorais tem sido momentos em que esses grupos conservadores, em nome da falsa defesa da vida, chantageiam candidatas(os) e eleitorado para fazer prevalecer sua visão ideológica e ampliar as bases conservadoras no poder. Com isso, o debate do aborto fica rebaixado para o âmbito judicial.
Neste contexto, a construção de uma frente ampla, com uma unidade que extrapole os movimentos feministas, é condição fundamental para confrontar e resistir ao avanço das forças conservadoras e criar um clima de diálogo e denúncia na sociedade envolvendo vários setores na intensificação do debate e das ações que criem bases para uma nova correlação de forças que nos seja favorável.
Diante da desinformação generalizada da população, da diversidade de visões sobre a questão e, em especial, dos argumentos falaciosos, falsas informações e toda sorte de mentiras lançadas e difundidas pelas forças patriarcais reacionárias e seus aliados, a Assembleia da Frente, realizada no final de 2009, decidiu pela elaboração e difusão de uma Plataforma pela legalização do Aborto no Brasil.
Essa Plataforma explicita os termos da proposta de legalização do aborto que garante a vida, os direitos e a autodeterminação reprodutiva às mulheres e, ao mesmo tempo, indica as medidas e políticas necessárias para a sua implementação de forma justa, respeitosa e em condições de igualdade para todas as mulheres.
Para uma efetiva autodeterminação reprodutiva das mulheres é preciso a implantação de um conjunto de medidas e políticas que promovam direitos, enfrentem a cultura política patriarcal, o racismo e a desigualdade social. Estas medidas são aqui apresentadas em torno de prioridades, que têm como princípio assegurar a autonomia e a livre decisão da mulher sobre seu corpo e sua vida, respeitando a confidencialidade, privacidade, e garantindo escuta e orientação, principalmente às mulheres jovens, adolescentes e meninas.
Legalizar o aborto no Brasil
Efetivar a proposta de legalização elaborada pela Comissão Tripartite, instituída em 2005 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, e que foi aprovada na II Conferencia Nacional de Políticas para Mulheres como a proposta a ser levada ao Congresso:
· Retirar a prática de abortamento do código penal, mas deixar como crime o aborto forçado. Ou seja, impor e obrigar uma mulher a abortar deve continuar a ser crime, pois é uma violência contra a autonomia das mulheres;
· Garantir o atendimento ao aborto no SUS e na rede complementar (privada) nos seguintes casos:
– Até 12 semanas por livre decisão da mulher;
– Até 20 semanas de gestação em casos da gravidez resultante de violência sexual.
· Garantir o aborto ou a antecipação terapêutica do parto, conforme o caso, a qualquer momento da gestação em casos de risco de vida da mãe ou incompatibilidade do feto para com a vida extra-uterina.
· Garantir equipe multidisciplinar para o atendimento as mulheres que recorrem ao serviço de aborto e pós aborto, para acolhimento, informação, orientação com privacidade e respeito a autonomia de decisão das mulheres.
Direitos reprodutivos para as mulheres
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· Aumentar a oferta e diversidade de métodos contraceptivos nos serviços públicos de saúde, de modo a assegurar a todas as mulheres, do campo, da floresta e das cidades, durante toda sua vida fértil, da puberdade à menopausa, o acesso a métodos de evitar filhos, seguros e saudáveis, escolhidos de maneira correta e adequado às dinâmicas e peculiaridades de sua vida;
· Melhorar a assistência à gestação, ao parto e puerpério, reduzir a mortalidade materna, reduzir o número de cesáreas no país; promovendo o acesso universal ao parto natural e humanizado para todas as mulheres;
· Aumentar os investimentos em creches e escolas públicas em tempo integral, de modo a contribuir com o exercício da maternidade pelas mulheres reduzindo a carga de trabalho da dupla jornada;
· Garantir e melhorar a efetividade da Política Nacional de Assistencial Integral à Saúde da Mulher e fortalecer a Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde;
· Estancar o processo de violação da atual legislação sobre aborto. Para isso, difundir entre a população, Ministério Público, profissionais do SUS, profissionais do SUAS e da rede pública de educação, informações sobre as condições de aborto legal no Brasil hoje e os serviços de atendimento disponíveis, destacando a obrigatoriedade de se cumprir a legislação;
· Garantir a contracepção de emergência (pílula do dia seguinte), nos serviços de atendimento às mulheres vitimas de violência e em todas as unidades de saúde para que as mulheres tenham fácil acesso e informações corretas de sua utilização;
· Garantir os serviços públicos de qualidade para atendimento às mulheres e atenção humanizada ao abortamento;
· Aumentar e garantir a efetividade dos serviços de aborto legal hoje existentes, fazendo cumprir a Norma Técnica de Atenção humanizada ao Abortamento – Ministério da Saúde – 2004. Essa Norma técnica, nos termos da atual legislação, assegura o aborto para mulheres, meninas e adolescentes que assim desejarem desde que a gravidez resulte de estupro ou imponha risco de vida para à mãe, respeitado a decisão da mulher ou pessoa responsável, no caso de crianças e adolescentes, e sem a necessidade de autorização judicial nem boletim de ocorrência;
· Assegurar leitos e insumos, bem como treinamento e qualificação dos profissionais de saúde para uso dos métodos seguros de aborto nos termos das definições e orientações da Organização Mundial de Saúde já adotados pelo SUS, mas hoje desrespeitados:
· Ampliar o uso do AMIU (Aspiração Manual Intra-uterina) para aborto até 12 semanas, pois para o início da gravidez este é o método seguro para a saúde das mulheres;
· Assegurar o uso de fármacos, misoprostol ou similares, seguido de curetagem quando necessário, para abortos a partir da 12ª semana;
· Assegurar cirurgias quando necessário e na antecipação terapêutica do parto sem necessidade de autorização judicial;
· Garantir atendimento rápido, seguro, humanizado e respeitoso às mulheres em situação de abortamento, sem discriminação de classe ou de cor nos serviços do SUS.
Formação e acesso à informações sobre os direitos reprodutivos e sexuais
· Incluir o tema dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres na formação de profissionais da saúde, do direito, da assistência social e da educação;
· Garantir informação sobre a legalização do aborto no âmbito das políticas públicas e ação do governo brasileiro, combatendo quaisquer formas de cerceamento ao debate;
· Informar à população e à polícia que os médicos não podem denunciar as mulheres que fazem aborto, pois isso constitui violação de sigilo profissional e é uma prática ilegal, passível de punição. Deve, também, alertar os médicos quanto a isto;
· Refutar a tese de que se pretende legalizar o aborto até o nono mês de gestação e demonstrar a inverdade desta argumentação dos conservadores. Informar a população a diferença entre aborto e parto nos termos do que determina a OMS: ao tratar do aborto estamos falando do resultado da interrupção da gravidez até a 22ª semana de gestação e cujo produto pesa até 500g;
· Desqualificar o argumento de que legalizar o aborto estimula esta prática. Divulgar os dados que comprovam os benefícios da legalização em outros países, com redução de mortes e complicações para saúde das mulheres;
· Explicar porque o plebiscito não pode ser usado no caso do aborto. O plebiscito é um instrumento da democracia direta adequado para tomada de decisão do povo sobre assuntos que afetam o futuro do país e das comunidades, sua decisão obriga os governantes a cumpri-las. O aborto é uma decisão pessoal da mulher, que diz respeito a seu desejo e possibilidade de manter uma gravidez em determinado momento de sua vida. É uma decisão de foro íntimo da mulher, que deve ser compartilhada apenas com as pessoas de seu círculo de confiança: médicos, amigos(as) e familiares.
O aborto não é uma questão plebiscitária
· Combater a visão patriarcal sobre as mulheres que as coloca como seres intelectualmente incapazes biologicamente determinados e moralmente inferiores. Demonstrar que as mulheres cuidam e protegem a vida, das crianças, dos idosos, na saúde e na doença, cuidam do bem estar das pessoas, dentro e fora de casa, nas escolas, creches, asilos e enfermarias, que as mulheres são seres moralmente responsáveis, éticos e capazes de tomada de decisão sobre situações limites como a situação de uma gravidez indesejada.
Respeito ao princípio do Estado laico
· Pôr fim à política de gestão privada do SUS, e desta forma impedir que organizações religiosas, na gestão dos serviços de saúde, privem a população de seus direitos reprodutivos, fazendo com que essa se oriente pelas determinações da igreja e não pelas portarias e normas técnicas do SUS;
· Igualmente impedir que organizações religiosas participem na elaboração e controle social das políticas públicas, ou recebam recursos públicos para ação social que seja orientada por princípios religiosos, em nome dos quais se promove a criminalização, discriminação, humilhação e perseguição às mulheres e nega-se seus direitos sexuais e reprodutivos;
· Impedir a prática do ensino religioso na rede pública de educação, e garantir a orientação sexual que inclua a informação e distribuição de preservativos.
· Promover e assegurar a liberdade religiosa e de credo no país e concretizar a separação entre Estado e igreja.
· Revogar o Acordo Brasil-Vaticano.
A Frente convoca a sociedade e os movimentos sociais e aliadas(os) a debater e aprimorar esta plataforma de maneira a compreender e difundir o lugar de subordinação a que as mulheres são submetidas e os males que a não legalização do aborto causa às mulheres, em especial as da classe trabalhadora, pobres e negras. Só assim poderemos avançar rumo à construção de um país justo, onde as mulheres efetivamente tenham direito à igualdade e autonomia para determinar seus projetos de vida.
A maternidade deve ser uma decisão livre e desejada, uma opção para as mulheres, e não uma obrigação.
Compreendida como função social, é responsabilidade do Estado brasileiro garantir as condições para efetivo exercício dos direitos reprodutivos das mulheres, oferecendo todas as condições, para ter e para não ter filhos.
O aborto é o último recurso das mulheres diante de uma gravidez indesejada. A criminalização do aborto não impede que ele seja realizado nem reduz sua incidência, mas aumenta em muito as condições de risco de vida para as mulheres, em especial para as mulheres empobrecidas, da classe trabalhadora, que não podem pagar por um aborto clandestino que lhes garanta segurança.
A legislação atual protege apenas as mulheres que abortam em função de gravidez resultante de estupro ou que estão em risco de vida, mas é grande o número de gravidez indesejada resultante do uso inadequado ou falha dos métodos contraceptivos e dos serviços de planejamento familiar.
Pesquisas nacionais realizadas entre 2009 e 2010, com apoio do Ministério da Saúde e de universidades brasileiras, indicam que a maioria das mulheres que abortam usam métodos contraceptivos, tem parceiros fixos, já tem filhos, são jovens e professam alguma religião, a maioria católica.
Nos dossiês sobre o impacto da ilegalidade do aborto na vida das mulheres, elaborados pelo Grupo Curumim e IPAS, é grave o desrespeito, os maus tratos e o abandono que as mulheres que estão em situação de abortamento enfrentam nos serviços de saúde. Isso compromete o tratamento adequado e muitas morrem dentro dos serviços. A mulheres que mais correm esses riscos são jovens, negras e pobres.
A ilegalidade do aborto viola os direitos humanos das mulheres, bloqueia o exercício do direito de decidir, sua autonomia, impõe a maternidade obrigatória e fere a dignidade das mulheres.
A ilegalidade do aborto construiu e mantém a indústria do aborto clandestino, em detrimento da efetivação da atenção integral, pública e gratuita à saúde das mulheres em situação de abortamento.
A ilegalidade da interrupção da gravidez leva ao abortamento tardio, com maior sofrimento emocional e riscos de vida para as mulheres.
Nenhuma mulher deve ser presa, perseguida, humilhada ou maltratada por ter feito um aborto
E-mail: frentelegalizacaoaborto@gmail.com
Website: www.mulhereslivres.org.br