No dia 24 de setembro, uma sexta-feira, depois de dois focos de incêndio controlados por moradores, um terceiro queimou centenas de barracos na favela Real Parque, zona sul de São Paulo, além de atingir dois alojamentos ‘provisórios’ em que dezenas de famílias viviam desde outro incêndio que aconteceu há 8 anos. Cerca de 1200 pessoas ficaram sem casa. “Foi muito estranho, o fogo lambeu tudo muito ligeiro, parecia uma boca engolindo os barracos”, relata um morador.
Os casos de incêndio em favelas são recorrentes e tem aumentado tanto que geram suspeitas. Na Real Parque, muitos moradores desconfiam de incêndio criminoso. Segundo eles, o fogo se espalhou com uma velocidade surpreendente. “Teve barraco que queimou de fora pra dentro”, diz um morador. “A perícia não vai acontecer, a prefeitura já limpou o terreno e os técnicos que vieram aqui disseram que vai ser difícil apurar, porque o terreno não foi isolado”, reclama outra moradora.
Criminosos ou não, são fruto de descaso. Os incêndios nas favelas estão ligados à existência da própria favela – em outras palavras à existência de pessoas sem moradia adequada, sem infraestrutura, sem poder aquisitivo, sem voz junto ao Estado e ao conjunto da sociedade.
A área mais atingida pelo fogo é antigo palco de embate entre a comunidade e o poder público. Uma parte do terreno que pertence a EMAE (Empresa Metropolitana de Águas e Energia S.A.) já tinha sido desocupada por uma ação de despejo em dezembro de 2007. Em nota, a Sehab informa que “a Prefeitura vem enfrentando dificuldades com as lideranças para retirar a população da área, que é considerada de risco”.
No dia do incêndio a consternação era generalizada e, até o fim da tarde da sexta, centenas de pessoas estavam sob a fina garoa paulistana nas ruas da comunidade, sem saber onde iriam passar aquela noite. “A polícia chegou mais rápido que os bombeiros e o carro ainda não tava com o tanque 100% abastecido, tinha uma mangueira furada. Os moradores amarram a mangueira com roupas pra remendar, pra você entender como foi”, conta uma moradora, reclamando da presença da tropa de choque na favela no dia do incêndio.
Em nota, representantes do poder público afirmam que se reuniram com moradores e lideranças e “explicaram que em um primeiro momento iriam cadastrar as famílias”, além de afirmar que “não podiam fazer nada imediato para abrigar as famílias”.
Uma liderança reclama que o tratamento deveria ser mais humanizado. “Cerca de 1200 pessoas perderam tudo e até hoje a prefeitura não voltou aqui, está tudo muito confuso”, disse na segunda-feira, três dias após o incêndio. Ela conta que na reunião foi cobrada uma ação para que as pessoas não dormissem na chuva, mas não houve encaminhamento e ainda assim o Projeto Comunitário Casulo – uma organização social – fechou suas portas no final de semana.
As famílias desabrigadas buscaram abrigo em outras casas na favela. Somente na noite do dia 27, foi feita uma segunda reunião entre poder público e moradores. A Real Parque é considerada uma ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) e faz parte de um processo de urbanização. Em 2008, a prefeitura cadastrou 1.131 famílias para receber as moradias que devem ser construídas no local. Após o incêndio, a Sehab informou que “a Prefeitura ofereceu Auxílio Aluguel de R$ 400 mensais para todas as famílias, porém, apenas as famílias que constam do cadastro original, de 2008, terão direito a um apartamento, que será construído em 18 meses”.
A medida não é nenhum benefício, é apenas uma parte de um direito de todo cidadão – o Direito à cidade. Afinal, tanto constituição, quanto o Estatuto da Cidade asseguram que todos deveriam ter uma moradia garantida, além de acesso a serviços urbanos, infraestrutura, trabalho e lazer.
O problema segue, entretanto, para as famílias que foram morar na área atingida depois do cadastro em 2008 – 191 famílias segundo os dados da Sehab. Das 380 famílias, aproximadamente 40 são indígenas Pankararu – uma média de 180 indígenas desabrigados.
Quem perdeu tudo, ainda vai enfrentar um problema até conseguir o auxílio aluguel – a falta de documentos. A reivindicação por uma unidade móvel de Poupatempo ou um mutirão para que as pessoas fizessem novos documentos não tinha sido atendida até o dia 29 de setembro.
O Real Parque é um daqueles cenários que retratam um resumo da perversidade de um sistema econômico baseado na desigualdade e que não permite nenhuma mudança estrutural. Ele atinge as pessoas num dos pontos mais sensíveis – o direito a uma moradia digna. Lá, os barracos dividem a paisagem com as mansões do Morumbi. Os barracos improvisados com materiais distintos – e com uma engenharia de conhecimento popular impressionante – dividem ainda o muro direto com uma grande unidade da loja de materiais de construção Leroy Merlin. Enquanto muitos estavam aliviados porque seus barracos escaparam do fogo, outros perderam tudo o que tinham.
E uma amiga que trabalha na grande imprensa lá perto me disse estarrecida que seus chefes comemoravam o incêndio próximo, que ia alavancar a audiência. Sobre o assunto, reproduzo o email que ela me enviou:
Faltava dez para dez para entrar no trabalho. Faltavam dez minutos para a abertura da Bovespa e há sempre uma competição estranha para saber qual portal vai dar a notícia primeiro. Parece sempre uma questão de tempo, mesmo que isso afete apenas a vida de uns pouquinhos.
Ao entrar na Berrini, já era possível ver a labareda que subia na favela Real Parque bem atrás da ponte estaiada. O carro de bombeiros passou correndo para quase me atropelar. Mais tarde, a notícia que eles chegaram do outro lado da marginal apenas uma hora depois não entrava na minha cabeça. Às vezes não é uma questão de tempo.
Do alto, era possível ver de camarote. Em uma janela, a favela queimava. Na outra, os carrões atravessam sozinhos a ponte estaiada. O dólar caía diante da capitalização da Petrobras e o governo anunciava que não deixaria desvalorizarem a moeda.
Uma empolgação geral tomava a redação. Era muita felicidade. Uma favela queimando aqui do lado! Nem é preciso descer para fotografar e ter as melhores imagens da tragédia. Nada de pé na lama, nada de enfrentar a polícia sempre disposta a partir para a agressão. Pelo menos nada de:
– Como você se sente depois de perder tudo.
E era fechem os obturadores! Drama, muito drama! Assim os cliques vão chover:
– Nossa, quanta sorte!!! Hoje vai ser um dia bom de audiência. Porque é sempre uma questão de audiência também.
A chuva, que de fato caía em São Paulo, não fazia cócegas no fogo que queimava as casinhas tão rapidamente como uma caixinha de fósforos, para o desespero de pessoas que àquela altura pareciam formiguinhas. Ainda mais porque trabalhavam juntas, carregando tantas coisas de um lado para o outro enquanto o zoom buscava o rosto mais desesperado.
Era a festa dos abutres. Voando de um lado para outro, descarregando imagens e dando flashes do trânsito (porque se não é questão de tempo, é questão de trânsito) não observaram o olhar da Neide.
Desolada na Copa. Ela olhava pela mesma janela o fogo na comunidade. Não dava para saber ao certo se o fogo passava perto de seu barraco. Mas a expressão de incredulidade me faz crer que uma daquelas casinhas era dela. Outras moças coladas ao vidro, em completo silêncio. E dava uma dor pensar: quando vai ser questão de gente?
Publicada originalmente na CAros Amigos