Quem passou pela Praça da Sé no último 24 de março, pôde presenciar a cena de 5 mil pessoas em um ato que contou com a figura do padre Marcelo Rossi e um público predominantemente religioso (entre católicos, evangélicos e espíritas), bem como de políticos ultra-conservadores sob a direção do Comitê Estadual da Campanha Nacional em Defesa da Vida. Esta manifestação reivindicava a derrubada do projeto de lei 1135/91, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, que prevê a supressão do artigo 124 do Código Penal, que trata o aborto como crime e institui atualmente pena para a mulher que o realiza de 1 a 3 anos de cadeia, e de até 10 anos para os médicos.
Numa mostra incrível de obscurantismo e crueldade, estes setores que organizaram a marcha da Praça da Sé utilizaram a imagem de um bebê acéfalo como “símbolo da vida”. Como podem falar em “vida” usando como símbolo uma criança que tragicamente está condenada a jamais desenvolver vida consciente? Como podem falar em vida se defendem que milhares de mulheres, em sua maioria pobres, continuem a morrer ou carreguem para sempre seqüelas de abortos mal-feitos, em nome do moralismo e de impor suas crenças e valores religiosos sobre o conjunto das mulheres?
Esta discussão se abriu no último período não só no Brasil, mas em diversos países. Em 11 de fevereiro, no plebiscito nacional em Portugal, mais de um milhão de votantes decidiram nas urnas pela descriminalizaçã o do aborto, ou seja, o fim da punição às mulheres e médicos que o realizam. Com 59% de votos favoráveis, Portugal é o último país da Europa Ocidental a aderir à descriminalizaçã o do aborto.
O México é outro país que está discutindo a questão do aborto. O poder Legislativo da Cidade do México possivelmente legalizará o aborto dentro de semanas. Caso aprovado, o projeto de lei colocará a Cidade do México ao lado de países latino-americanos como Cuba, Porto Rico e da Guiana onde o aborto é permitido durante o primeiro trimestre de gravidez, dando à mulher direito de decidir sobre seu próprio corpo. A maioria dos países na América Latina permite a prática do aborto somente em circunstâncias excepcionais, como em casos de estupro, incesto ou quando a vida da mãe está em risco, e em países como Nicarágua, El Salvador e Chile, o aborto é proibido sob toda e qualquer circunstância.
Aqui, este debate foi alvo de polêmicas durante a última campanha eleitoral, com as declarações de Heloísa Helena, que se colocou contra o aborto e ao lado dos setores mais conservadores da sociedade mostrando que sua face “cristã” predomina sobre a “socialista”, e do governador do Rio, Sérgio Cabral, quando citou a necessidade de realizar esta discussão. Recentemente, seguindo o exemplo português, o ministro da saúde, José Gomes Temporão, declarou publicamente que o aborto é “questão de saúde pública” – partindo do argumento segundo o qual “milhares de mulheres morrem todos os anos submetendo-se a abortos inseguros”[1] – e propôs a realização de um plebiscito “para que o povo decida sobre o assunto”, proposta esta, que já conta com a aprovação da OAB-RJ.
Ao mesmo tempo em que diz defender a legalização do aborto, o ministro Temporão, em nenhum momento cita a existência de um projeto de Lei (1135/91) já existente no Congresso Nacional e que foi inclusive recentemente desarquivado. O Ministro, em nome do governo Lula, quer fazer crer que hoje um plebiscito seria a via mais democrática para decidir a questão. Entretanto, sabemos muito bem que a burguesia, ligada por mil e um laços à Igreja e todos os setores conservadores, já tem realizado uma campanha demagógica em suas TVs, jornais e rádios nas quais carregam no discurso moralista e hipócrita para forjar uma opinião pública contrária ao direito elementar da mulher de decidir sobre seu próprio corpo. Não vemos, por exemplo, o mesmo espaço sendo destinado nos meios de comunicação de massas a mostrar a triste realidade de que hoje é a mulher trabalhadora e de baixa renda, que não tem condições de pagar os milhares de reais que se cobram numa clínica por um aborto, a que mais morre em decorrência de abortos clandestinos.
Portanto, para que o plebiscito fosse minimamente democrático, seria fundamental fomentar um debate aberto nos meios de comunicação de massas, partindo dos dados reais da absurda quantidade de mortes de mulheres, que em pleno século XXI são condenadas a perder suas vidas. Seria imprescindível abrir um amplo espaço para que os defensores deste direito pudessem se dirigir à população. Por fora disso, o plebiscito serve apenas como uma manobra para esvaziar o debate, enquanto o Ministro e o governo poderiam ficar bem tanto com as alas mais direitistas e reacionárias da burguesia, como com os setores mais “progressivos” neste tema que defendem a legalização do aborto, como as organizadoras da Marcha Mundial de Mulheres hegemonizada pela corrente interna do PT, a DS, além de movimentos feministas e populares.
Segundo a pesquisa do Datafolha (08/04/07), se o plebiscito fosse hoje, 65% da população brasileira votaria pela manutenção da atual lei que criminaliza o aborto, 16% defenderiam o abrandamento da mesma e apenas 10% defendem a completa descriminalizaçã o do aborto. Vale lembrar que esta pesquisa questiona se as pessoas são a favor ou contra o aborto, não explica e nem questiona os problemas enfrentados pelas milhões de mulheres que hoje já o realizam ilegalmente. Segundo Jacira Melo, da ONG Patrícia Galvão, os resultados da pesquisa expressam a falta de conscientizaçã o dos brasileiros em relação ao aborto: “A pesquisa mostra a necessidade de um debate amplo e sério sobre a legalidade total do aborto” – afirma.
O aborto é, e continuará sendo, praticado por milhões de mulheres todos os anos, e sua ilegalidade só obriga a realizá-lo nas piores condições colocando em risco suas vidas. Defender a ilegalidade do aborto significa ignorar as milhares de mortes e graves seqüelas causadas por abortos caseiros e clandestinos. A discussão de onde começa a vida, feita pelos setores que se colocam contra o aborto, onde defendem que as células embrionárias já seriam vida, acaba colocando em risco a vida inquestionavelmente existente: a da mulher. A maternidade deve ser uma escolha de toda a mulher, independente de suas condições sócio-econômicas. Trata-se, portanto, de um direito democrático elementar que deve ser garantido a toda mulher, pois a ninguém, a não ser a ela mesma, é dado o direito de decidir como viver. A negação do direito ao aborto é, assim, mais uma forma de opressão de gênero e do machismo reinante na sociedade. E como todas as formas de opressão, deve ser combatida.
A separação entre a Igreja e o Estado foi uma grande conquista. E o aborto é uma questão de saúde pública da mulher sendo, portanto, um tema a ser definido no âmbito do Estado, a partir de um debate livre de valores religiosos. Tão absurdo quanto forçar uma mulher a abortar contra a sua vontade, é negar-lhe o direito de decidir e realizar o aborto em condições seguras.
O Estado tem a obrigação de assegurar à mulher total assistência a esta e aos filhos, caso decida por tê-los – com creches, escolas, lavanderias e restaurantes nos locais de trabalho e estudo, garantindo a educação e alimentação dos filhos e livrando a mulher de parte da dupla jornada -, assim como, caso decida por não ter filhos, proporcionar acesso gratuito à anticoncepcionais e métodos contraceptivos e o aborto seguro e gratuito com todo acompanhamento médico e psicológico necessário. Hoje, só têm acesso a estes últimos pouquíssimas mulheres que podem pagar mais de 5 mil reais em clínicas de luxo, enquanto a maioria das mulheres se vêem obrigadas a submeter-se à métodos arriscados.
É urgente e necessário aproveitarmos esta discussão que se abre para impulsionarmos desde os sindicatos, locais de trabalho e estudo uma ampla campanha pela legalização do aborto e em defesa do direito à escolha e do direito à vida das milhares de mulheres que morrem e sofrem graves seqüelas em abortos clandestinos. Não é possível que continuemos sem nos manifestar! Faz-se necessário que as mulheres da Marcha Mundial de Mulheres, da Conlutas, Intersindical, organizações de esquerda, movimentos feministas e movimentos populares nos organizemos pelos nossos direitos!
Pelo acesso gratuito aos métodos anticoncepcionais de qualidade!
Pelo aborto legal, seguro e gratuito, garantido pelo Estado!
Combate à dupla jornada de trabalho e total assistência às mães e seus filhos: creches, escolas, restaurantes e lavanderias nos locais de trabalho e estudo!
[1] Jornal Estado de S. Paulo, 29/3/2007
Marina Ramos e Miriam Rouco da Liga Estratégia Revolucionária – Quarta Internacional (LER-QI)