Quando o aborto pode ser necessário e útil

Em primeiro lugar, importa esclarecer, este texto não tem o objetivo de incentivar a prática de qualquer ato que implique numa infração penal, mas tão-somente demonstrar que, em determinadas situações, abortar pode ser necessário e útil.

Reproduzo aqui um texto que escrevi no meu blog e publiquei no site Mídia independente há um certo tempo:

“Inevitavelmente, quando o assunto é aborto, ciência e religião, cada qual com seus argumentos, se chocam e se interpenetram. O tema é tido como dos mais complexos, e, por vezes, tem-se a impressão de que nunca se chegará a um entendimento comum.

Os mais conservadores costumam afirmar que o aborto é um assassinato, porque ao abortar, quem o comete, está, deliberadamente, matando um ser humano inocente. Os mais liberais rechaçam esse argumento, pois tendem a negar que um feto humano seja, de fato, um ser humano.

Em regra, aqueles que são contra a prática do aborto pensam que não se deve cometer um ‘crime contra vida’, já que é errado matar um ser humano inocente. Há também declarações que chegam a sustentar que quem comete aborto o faz simplesmente por uma questão de ‘luxo’.

Os mais liberais, ao contrário, asseguram que abortar não implica em crime algum contra a vida e que muito menos se aborta por ‘luxo’. Em regra, seus argumentos priorizam a liberdade e a situação financeira dos que abortam.

A Igreja Católica, em particular, tem papel fundamental, vezes até determinante em relação ao aborto. Repelem integralmente qualquer opinião ou conceito favorável ao aborto. Isto não quer dizer que todos os conservadores são religiosos, mas geralmente os são.

Quanto aos mais liberais, estes quase sempre se abastecem de argumentos científicos para fundamentar suas atitudes pró-aborto. Por vezes levam em consideração somente a situação econômica dos que cometem (ou pretendem) o aborto.

São pontos de vista, argumentos, crenças e razões distintas e diversas.”

………….

Por que, em determinadas circunstâncias, abortar pode ser útil e necessário? Duma perspectiva individualista e utilitária cometer aborto pode repercutir em benefícios emocionais, financeiros e sociais para a praticante. Não há como negar que uma mulher que tenha um filho não planejado terá dificuldades para manter a si própria e o filho – mesmo na hipótese de estar acompanhada por marido ou namorado. É cediço que um filho inesperado acarreta uma mudança de vida também inesperada.

Se, por exemplo, uma mulher (que vou chamar de Maria) de vinte e dois anos, trabalhadora e estudante, por um descuido – que pode acometer qualquer um – engravida, sem dúvida alguma esta gravidez acidental ocasionará diversas mudanças em sua vida. Supondo-se que Maria tem um plano de vida já esboçado, como este: “Meu objetivo primeiro é terminar os meus estudos, fazer uma pós-graduação, e com isso conseguir um emprego melhor ou ser aprovada num concurso público e então, em torno dos meus vinte e nove ou trinta anos casar. Daí, passados dois ou três anos, com uma vida emocional, financeira e social razoável, engravidar e poder oferecer ao meu filho (ou filhos), pelo menos, saúde, educação e lazer adequados.”

Ora, Maria tem o pensamento igual ao de outras mulheres. Traça etapas para poder aproveitar ao máximo a vida, de maneira que tenha de passar pela menor dificuldade possível. Isso é muito plausível. Mas como Maria engravidou e a lei não a permite que ela não tenha esse filho – examinarei a questão legal mais adiante -, seu plano de vida será alterado substancialmente.

O filho, que chegou antes do previsto, com certeza não terá o plano de saúde, a educação e o lazer que Maria para ele gostaria de oferecer. Ao invés disso, Maria, como acontece com a maioria das mulheres que engravida sem querer – e isso não significa irresponsabilidade moral -, terá de parar os estudos e também de trabalhar, por um mínimo período que seja – inclusive correndo o risco de perder o emprego conquistado a muito custo num mercado de trabalho cada vez mais competitivo. Seu filho não terá, pelo menos nos primeiros anos de vida, o plano de saúde que Maria pretendia oportunizar, nem a educação qualificada e o lazer. Por uma simples razão: falta de estrutura financeira e emocional. Por mais que namorado, pais e amigos ajudem-na, cada um tem os seus problemas e interesses. Um projeto de vida foi alterado por um filho indesejado.

Diversas coisas poderiam acontecer com Maria pelo fato de ter tido o filho antes do momento planejado. Ela pode ter uma diminuição vultosa de renda, não contar com a ajuda dos pais – que podem ser muito ortodoxos ao seguir a doutrina religiosa, por exemplo, e abominar o sexo fora do casamento, ou simplesmente viverem com a aposentadoria da previdência – nem com a do namorado, que pode vir a abandoná-la. Essa seria uma situação muito ruim – e é mais comum. Logo, seu filho não teria oportunidade de ter tudo o que Maria havia programado.

Maria poderia, ao contrário, felizmente, receber apoio dos pais – não só econômico como emocional também -, dos amigos e do namorado. Tal circunstância é mais rara e melhor. Mesmo assim, ela teria seu projeto de estudo protelado sem poder proporcionar a seu filho saúde, educação e lazer adequados desde o seu nascimento. Na verdade, ainda contaria com ajuda de diversas pessoas, às quais seria grata por muito tempo, podendo até mesmo sentir-se “devedora”.

A suposição acima é apenas uma das possíveis situações por que podem passar diversas “Marias”. Uma gravidez indesejada pode resultar em situações muito mais degradantes, principalmente se a mulher já tem uma condição de vida complicada. Isto é, quando for pobre, muito pobre. Se não miserável!

É comum uma mulher muito jovem engravidar e então acabar num estado deplorável de pobreza extrema. Confere-se todo dia na televisão, nos jornais e na internet a notícia de que uma das maiores causas da pobreza é a gravidez indesejada. Isso é inegável. Assim como é inegável que o Estado não efetiva políticas públicas eficazes de combate à gravidez na mocidade – principalmente entre as adolescentes. Tampouco fornece o acesso à informação adequada de que as pessoas mais pobres necessitam para evitar essa situação.

Então, no caso hipotético de Maria, abortar seria necessário e útil? Minha resposta é sim. E não há nada de imoral nisso. Necessário porque assim Maria teria uma situação mais conveniente de proporcionar a seu filho aquilo que é o mínimo necessário para a sua vida, que é educação, saúde e lazer de qualidade. Portanto, nessa circunstância, abortar é útil, vantojoso. É imoral tentar prover o melhor para um filho? É muito melhor engravidar numa circunstância em que a mulher esteja em condições financeiras e emocionais boas do que numa situação em que ela ainda está lutando para atingir essa circunstância “ideal.”

Negar para a mulher o direito de dispor sobre o próprio corpo é, no final das contas, uma indignidade. A nossa Carta Magna tem, entre seus fundamentos, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). É negar o amor-próprio que uma mulher tem para com ela mesma e para com o filho que queira ter, no futuro.

“Mas abortar é crime!”. Sim. É crime não pelo fato de ser errado moralmente – como alguns assim consideram, embora as normas do ordenamento jurídico sejam feitas essencialmente com base na moral -, mas porque a lei penal assim qualificou o ato de abortar. Por isso é crime, nada mais.

A nossa lei penal tipifica algumas situações em que é considerado crime abortar. Examinarei algumas. Entende a lei que:

a) Se a gestante ou alguém com o seu consentimento provocar aborto comete um crime contra a vida, cuja pena é a detenção de um a três anos;
b) Se um terceiro provocar aborto sem o consentimento da mulher, também é crime, com detenção de três a dez anos;
c) Se um terceiro provocar aborto com consentimento da gestante ainda sim é crime, e a pena é de um a quatro anos;
d) Se a gravidez decorre de estupro o aborto é permitido desde que com a anuência da gestante, ou de seu representante legal, quando incapaz.

Na hipótese “a” o Estado limita a liberdade da mulher de poder fazer aquilo que pensar ser útil e necessário. A lei penal lhe nega o direito de liberdade, a liberdade de fazer o que bem entender com o seu próprio corpo. Na verdade, o Estado proíbe a mulher de escolher o que quer de sua vida.

Na hipótese “b” a lei penal pune exemplar e justamente aquele que coagir a gestante a praticar o aborto sem que ela queira, ou mesmo que ainda não tenha se manifestado a esse respeito. É uma questão a se discutir, nesse caso, se o terceiro for namorado ou marido, qual o alcance do direito da esposa ou da namorada de decidir o que fazer, independentemente da vontade do outro – em outra oportunidade exporei o que penso a respeito

Na hipótese “c” ocorre a mesma situação da primeira hipótese: o Estado nega à mulher o direito de liberdade

Na hipótese “d” a lei penal confere direito de liberdade à mulher de dispor sobre a sua vida, desde que a gravidez tenha resultado de estupro. Perfeitamente justo e plausível. Seria um tormento horrendo para uma mulher ter de carregar um filho indesejado cujo pai ela não queria que fosse o estuprador.

Bem, a questão é: na hipótese “a” o Estado protege a vida do feto, independentemente da vontade da mãe.E na hipótese “d” preserva o interesse da mulher, independentemente de o aborto resultar num crime contra vida. É um paradoxo. Numa situação o Estado salvaguarda o “interesse” do feto de continuar vivendo; noutra, releva o interesse do feto e passa a preservar o interesse da mulher. Aqui, o Estado parece ter duas faces.

Não faz sentido o ente estatal considerar “crime contra a vida” a prática do aborto quando a gestante o quer fazer, por necessidade e utilidade, e lhe imputar uma pena por isso, enquanto que se ela quiser abortar, mesmo que isso seja um “crime contra a vida”, quando for estuprada, assim poder fazer.

É uma dissonância constitucional, pois o Estado dá um tratamento diferenciado para o aborto necessário e útil que quer se fazer por uma simples deliberação, do aborto também necessário e útil que ser se fazer também por uma simples deliberação, só que sob uma condição sine qua non para poder fazê-lo, qual seja, a ocorrência do estupro.

Enfim, é necessário e útil que todos nós (sociedade civil e o Estado, representado por seus três poderes) pensemos muito sobre a restrição a liberdade de escolha, sobre o direito de poder agir dentro dos limites do razoável com relação ao exercício do aborto, no sentido de que este agir não afete de modo prejudicial o direito de outrem.

2 thoughts on “Quando o aborto pode ser necessário e útil

  1. Quando o aborto pode ser necessário e útil
    ola sr. Bruno!
    eu li seu artigo e gostaria de parabeniza-lo…
    estou apresentando um trabalho sobre aborto!
    e seu artigo sera util!
    obrigada!!

    natascha

  2. Quando o aborto pode ser necessário e útil
    Olá, gostei muito de sua matéria. Será muito útil, pois estou fazendo um trabalho sobre o tema e me ajudou muito.!

    Parabéns.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *