Para construir uma teoria democrática da América Latina – 2

ESTRATÉGIA & ANÁLISE – ISSN 00331983

Para construir uma teoria democrática da América Latina – 2

06 de agosto de 2009, do Vale dos Sinos, por Bruno Lima Rocha, cientista político

Neste breve artigo de difusão científica, dou seqüência nas premissas e defesa incondicional na defesa de uma Teoria de Radicalização Democrática a ser construída no sub-continente conhecido como América Latina e Caribe. Repito a vontade política de fazer ciência social e humana tomando posição. No caso deste analista, a meta é a busca permanente pela formulação de um entramado teórico que seja operacional a partir da posição estratégica das classes oprimidas. Assim, modestamente se contribui para aproximar a academia com o real, ajudando na diminuição do hiato no centro de saber para com a sociedade. Esta postura vai de encontro do círculo “virtuoso” e auto referenciado pelos próprios pares dentro do campo universitário. Este breve texto aqui escrito é parte do esforço visando tornar acessíveis conceitos operacionais, municiadores de capacidades para o processo de decisão daqueles que operam a política de dentro das classes oprimidas.

Para aplicar esta proposta, a de um estudo estratégico embasado em uma nova teoria de médio alcance – a da Radicalização Democrática – é necessário um terreno. Entendemos que não se faz política nem tampouco se analisa a política fora do mundo real e concreto. Para isto, são necessários quatro elementos que compõem o terreno: sociedades concretas; um recorte de espaço geográfico; linha de tempo (para inferência) e experiências formuladoras de idéias-guia.

O recorte propriamente dito é onde se aplicam as hipóteses e inferências apontadas ao longo do texto e no conjunto da obra deste analista que discorre sobre a Radicalização da Democracia através de seu viés participativo, direto, deliberativo e dotando de substância o rito político decisório. Esta Teoria se aplica aqui, no sub-continente chamado de América Latina e especificamente se inicia a partir das experiências de superação do neoliberalismo e do Consenso de Washington.

Este recorte por mim traçado tem como bases de início das experiências – arbitrário por suposto, como todo corte – a duas passagens do cenário político latino-americano dos anos 1990. Uma é o chamado Levante Zapatista ocorrido no estado de Chiapas, sul do México, em 1º de janeiro de 1994. Outra experiência marcante é a derrubada do presidente equatoriano Abdala Bucaram Ortiz em 5 de fevereiro de 1997, com apenas seis meses de mandato.

A relevância da experiência zapatista se dá por uma série de fatores. Um deles é a abordagem de controle do território, outro, que pode ser compreendido como causa deste é a ancestralidade das populações originais e sua relação com a terra nativa. Isto ocorre num momento em que o uso dos recursos naturais é visto como commodity e não como patrimônio coletivo não renovável. Interessante também é ressaltar que o uso da força abriu espaço político, levando inclusive a um impasse na política tradicional e contribuindo de forma decisiva para dar cabo do regime Priista, levando a uma renovação conservadora na política profissional mexicana. Por fim, dos elementos que cabe ressaltar, é o reflexo da não-profissionalização da maioria dos encarregados políticos, havendo um bom índice de rotatividade e de aprendizado comum nas funções de coordenação.

Já a experiência da rebelião popular que derrubou Abdala Bucaram, em fevereiro de 1997 (com apenas 120 dias de mandato) ganha contornos de relevância por inaugurar um processo que culmina em uma série de puebladas onde diversas modalidades de luta e participação tiveram presentes. Elementos ideológicos, incluindo os de motivação republicana incidiram com peso, somados ao vazio constitucional e a presença constante da organização social dos povos originais no formato de confederação indígena (Confederação Nacionalidades Indígenas de Equador, CONAIE) como vetor destas lutas.

Assim, compreendo que a queda de Bucaram se equipara a uma modalidade inaugural. É quando a fragmentação da multiplicidade de sujeitos sociais representados dá lugar a uma unidade tática (ao menos) gerando uma experiência vitoriosa. Tal feito histórico assegura um grau de confiança das maiorias equatorianas que se mobilizavam contra os efeitos da dolarização da economia e dos efeitos do comportamento político das elites dirigentes associadas à presidência e ao próprio presidente Bucaram. A derrota do presidente Jamil Mahuad em janeiro de 2000 e do coronel Lucio Gutiérrez em abril de 2005, entendo que são a culminação do processo iniciado com a rebelião do verão de 1997.

O fato de haver ressaltado estas duas experiências não é para estudo de caso, mas justo o inverso, é para aproveitar o que há de generalizável e universalizante (para o Continente) destes dois episódios históricos, e que no exato momento em que escrevo este texto (agosto de 2009) mantêm a sua vitalidade em duas arenas simultâneas. Uma arena é na interna do chamado movimento bolivariano, em especial o existente nos países com governos de apelo populista e democracia plebiscitária, como é o caso da Venezuela, Equador e Bolívia. Com matizes distintos, nestes países se dá uma peleia intestina entre a concepção de democracia direta estando variados sujeitos sociais organizados (ou seja, o POVO) como protagonistas de uma nova institucionalidade. A peleia se dá contra a direita endógena e os setores mais conservadores e patrimonialistas dentro dos governos iniciados com a vitória eleitoral de Hugo Rafael Chávez Frias em 1998 na Venezuela.

A outra arena simultânea da experiência de radicalização da democracia ganha sua existência em situações limite, tal como agora se dá na resistência civil dentro do território hondurenho. Sem esperar pelo comando dos seguidores do oligarca reconvertido e deposto, Manuel Zelaya Rosales, as entidades de base e de coordenação do tecido social-produtivo hondurenho aumentam seu grau de auto-organização e apontam para a luta de longo prazo. Estas arenas e seu desenho de participação, entendo que tiveram como experiências inaugurais o recorte que fiz de Chiapas e da pueblada equatoriana de 1997. Estes momentos foram tomados como inauguradoras de um discurso de ação direta popular, democracia direta, espaço público horizontal e decisão coletiva mediante amplo debate.

Estas práticas políticas vão de encontro e em repúdio às medidas de governo, necessariamente decisões fundamentais para os respectivos países, e que não passaram por nenhuma forma de consulta. Entendemos que na América Latina, suas sociedades concretas passaram e seguem sofrendo o acionar de duas idéias aplicadas sobre dois discursos completamente antagônicos. O primeiro é o conjunto dos efeitos da desconstrução do tecido social a partir das “reformas” do neoliberalismo. O segundo conforma um conjunto arbitrário (por ser de minha escolha) de práticas generalizantes que acumulam para o conceito de Poder Popular como forma de organização dessa mesma sociedade fragmentada. Sobre esta tensão ganha existência a aplicação operacional da Teoria Democrática da América Latina.

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