foto de Regina Silva, Rabelados, Ilha de Santiago, Cabo Verde
O debate positivista entre ciência e religião provavelmente seja inesgotável e a humanidade ainda busca subsídios, meios, controle e poder para que a disputa entre o provável e o comprovável continue prevalecendo. Após a declaração de Nietzsche, “deus está morto”, entretanto, é preciso rearranjar os discursos para ressuscitá-lo. Mas para além de um Deus Instituído pela Igreja, será preciso ir além dos repertórios habituais, construindo um Deus Instituinte pelos desejos de mudanças, pois um deus “onitudo” não combina com o debate de quem quer pautar sentimentos religiosos com racionalidade crítica.
Se a racionalidade for mesmo inteligente, ao invés de afastar a subjetividade, ela irá acolher a diferença, potencializando o diálogo entre elas. Por certo será um diálogo tensivo, e oxalá fenomenologicamente inacabado, para que a humanidade perceba que o discurso religioso instituído necessita ser reconstruído sob uma perspectiva mais instituinte. Apoio em Célia Linhares, Michel de Certeau, Homi Bhabha e Karen Armstrong para acreditar que os repertórios se aproximam de táticas que acontecem em algum lugar, em algum tempo, de alguma forma, e que se consolidam na resistência contra as relações de poder instituídas em determinar uma única verdade para orientar toda humanidade.
Um bom exemplo é a Umbanda, que não representa um sincretismo moral de impurezas, como muitos desejam denegrir, mas essencialmente de uma tática que mistura religiões para que o poder branco instituído não fosse o único, mas possibilitasse também a crença negra instituinte. Um outro exemplo é o idioma Crioulo, amplamente falado em Cabo Verde e Guiné Bissau, que consiste numa variação do português para que a hegemonia européia instituída não compreendesse as táticas de sobrevivência dos escravos instituintes.
Em Cabo Verde, há uma comunidade que se autodenomina por RABELADOS [do crioulo, rebelados e que também aqueles que buscam revelações], que ficou à margem da história por muitos anos, porque se rebelaram contra a igreja católica, instituindo outra palavra religiosa. Após a independência brasileira, Portugal desestabilizou-se, e pelas forças maçônicas, o império se desmontou surgindo a república. Como uma das consequências, Portugal recrutou pessoas sem formação teológica aos processos da evangelização em massa e Cabo Verde ficou sem padres da Santa Sé por um longo período de 30 anos. Após esta temporada, Salazar aprovou o regresso dos bispos a Cabo Verde, porém o que se encontrou foram comunidades rurais com padres casados, com filhos e em franco processo de desobediência à questionável abnegação celibatária. Os bispos descomungaram os “pseudopadres”, sob o discurso de que se tornaram ‘comunistas’ e assim foram considerados como filhos do apocalipse.
À margem da história, este grupo sobreviveu instituindo um novo deus na tática de sobrevivência, mantendo identidades singulares com pouca, ou nenhuma comunicação com os de fora. Somente na década de 60, um estudo de Júlio Monteiro argumenta às autoridades coloniais de que os rabelados representavam um problema eclesial, selando a separação entre as ordens civis e militares. Até recentemente não havia certidões de nascimentos ou óbitos, e todos eram estigmatizados pelo nome “Rabelados”.
Por meio da ajuda de uma artista local, hoje as táticas modificam-se, e a arte se faz presente no território fortalecendo um conjunto de símbolos, heranças e expressões identidárias, sob o nome “rabelarte”. A imagem cartográfica da Nação dos Rabelados, assim, não se traduz como uma funcionalidade, mas é uma identidade que se assemelha a uma metáfora cultural que transcende os espaços geográficos, constituindo-se como uma Narração de sujeitos individuais e coletivos. Para o antropólogo indiano Bhaba, uma Nação se constrói pela narração de sua gente, por imagens pintadas, palavras esculpidas, valores edificados, juízos encenados ou até mesmo fé imaginada. Vestidos de farrapo, na moda que se transmuda, ou na nudez imutável, se a palavra de deus moldou o mundo, talvez seja a hora de perguntar se podemos reinventar a sua palavra sob à nossa própria imaginação instituinte. Deus, assim como a arte e a mitologia, sobrevivem na imaginação de expressões imbuídos na compreensão Inteligente da emoção humana.
Citando os fenomenólogos ateístas, como Sartre, MPonty ou Camus; Karen Armstrong é genial em afirmar que “um Ateísmo apaixonado e engajado pode ser mais religioso que um Teísmo morno”. Durante os anos que neguei este Deus instituído, sempre percebi que onde havia esperanças, havia religião. Também percebi que a alma generosa sempre tinha uma fé em evidenciar um outro ser absoluto que eu habitualmente negava. Ora, se Heidegger estiver correto, quando afirmava que o outro é nada, contudo, só ele torna possível a nossa existência, talvez eu possa aproximar meu ateísmo apaixonado ao campo religioso.
No tempero revolucionário, entretanto, não poderia deixar de finalizar este texto sem o legado da contracultura, lembrando Milos Forman no cinema “Hair”, que tentava anunciar mudanças paradigmáticas sob a égide da “Era de Aquário”. Mas não foi preciso a lua estar na sétima casa mística, alinhando-se em Vênus e Marte para que a paz fosse possível, muito menos ressuscitar a banda “Mamas & Papas” no cristal de revelações místicas para se acreditar que a espiritualidade, assim como a arte, é uma tentativa para dar um sentido à vida. E isto tudo não é nenhuma declaração religiosa ou rebeldia heróica, é apenas um compromisso entre minha própria razão e emoção. Suponho que minha racionalidade seja inteligente, e ao invés de aniquilar a religiosidade, ela reinventa um diálogo que se chama esperança.
…….
ARMSTRONG, Karen. Uma história de Deus. São Paulo: Cia. Das Letras, 2008, 557p.
BHABHA, Homi. Nation and narration. New York: Routledge, 2004.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008.
LINHARES, Célia; LEAL, M. C. Formação de professores: uma crítica à razão e à política hegemônicas. Rio de Janeiro: DP & A, 2002.
…………..
o constrangimento decidiu traçar
desenhos tortos,
cores empoeiradas
traços tão longos
o calor facilmente virou inverno
ouvindo a biografia narrada
de quem com coragem desafiou poderes
e sem virar-se de costas plenamente
instituiu a história dos rabelados
a vergonha vinha emocionada
mundos tortos
justiças empoeiradas
peleja tão longa
nos despropósitos do verão
passeando em Santiago
ouvi as vozes e os murmúrios
de gente que teima, sorri e chora
por uma história inacabada
a esperança brotava em devir
caminhos tortos
viagens empoeiradas
promessas longas
[mimi, em Cabo Verde, agosto09]
*
foto de REGINA SILVA
Rabelados, Ilha de Santiago, Cabo Verde
*