Foto: Jesus Carlos/8 de Março de 2007
É preciso lutar para reverter os quadros de invisibilidade, sub-representação e estereotipagem das mulheres que permeiam tanto o conteúdo quanto as políticas de comunicação no Brasil. Este artigo busca explorar limites e possibilidades de intervenção nestes dois âmbitos, considerando que o sistema político tal qual existe é viciado e a mídia, por sua vez, reflete e reproduz este sistema (cuja manutenção, de alguma forma, beneficia quem está no comando do poder midiático), construindo um debate restrito sobre a sua Reforma.
Nesse sentido, a proposta que tramita no Congresso e é noticiada pela mídia se reduz ao debate político-partidário e responde aos interesses de quem quer manter o poder. É preciso que as mulheres ajudem a construir uma outra Reforma Política (que discuta a democracia também em suas vertentes participativa e direta), oportunidade para avançarmos também na construção de uma outra comunicação para o país.
O Direito à Comunicação
Quando se afirma a comunicação como direito, extrapolam-se conceitos como os de liberdade de expressão e democratização da mídia. Afirma-se que cada indivíduo tem direito de ter acesso, receber informações de qualidade e de forma diversa e plural, de produzir e veicular comunicação, e de participar dos processos de tomada de decisão políticos que envolvem esta esfera.
Toma-se a comunicação sob a forma de conteúdos (mensagens), mas também sob a forma de esfera pública por onde trafegam estas mensagens, onde se conformam valores e onde fruem os demais direitos. Por isso, afirma-se que, para existir uma sociedade efetivamente democrática, é condição haver comunicação democrática, tanto no que diz respeito às políticas, quanto no que diz respeito aos conteúdos.
Definitivamente, este não é o cenário no Brasil hoje. No campo dos conteúdos, uma das maiores barreiras para a diversidade de conteúdo e pluralidade de meios é a concentração. No campo das políticas, o maior entrave é a falta de entendimento da comunicação como direito e, portanto, a falta de reconhecimento da necessidade de políticas que regulem o setor, o que permite seu uso como moeda de troca política.
A concentração inibe as diversidades e estabelece uma espécie de monólogo, sem direito a um contra discurso. A grande mídia (comercial) conservadora e machista reproduz estereótipos, discrimina, sub-representa e usa um espaço que é público (o espectro eletromagnético, por onde trafegam os sinais de radiodifusão) para reproduzir preconceitos e passar visões distorcidas da realidade, que obviamente respondem a seus interesses. O fato de as mulheres serem maioria nas novelas e séries não significa que elas estão bem representadas. Muito pelo contrário, estão sendo exploradas, tendo seus direitos violados e tendo seus corpos transformados em mercadoria em grande parte das vezes. Basta lembrar de um comercial de cerveja recente que produzia loiras em série para serem consumidas assim como a cerveja. Esta representatividade é uma contradição histórica da democracia e se reproduz na comunicação enquanto conteúdo e ambiente político.
Em relação aos jornais e à mídia impressa, é mais complicado afirmar uma possibilidade de intervenção em relação ao conteúdo, a não ser pensando na existência de ombudsman autônomo ou mesmo de um conselho de leitores e leitoras, porque estas são atividades privadas (ainda que devam necessariamente estar submetidas ao interesse público e que tenham como limite a dignidade, neste caso, das mulheres; e ainda que sua violação seja passível de direitos de resposta e outras reações).
No entanto, quando o assunto é radiodifusão (televisão e rádio), que são as mídias mais influentes no nosso país (mais de 90% dos lares brasileiros têm televisão, número maior do que os lares com geladeiras), fica mais claro o papel que estes veículos deveriam ter e a responsabilidade que lhes é delegada enquanto concessionários de serviços públicos.
Ora, então, por que motivos os conteúdos veiculados nestes espaços públicos respondem aos interesses do que (de maneira equivocada), são considerados donos das emissoras de televisão? Por que, muitas vezes, o preconceito e os estereótipos são reproduzidos para justificar a audiência e o lucro?
No campo da política, o problema talvez seja ainda mais complicado. A comunicação não vista como direito permite que processos e serviços sejam usados como moeda de troca. Servem para prestar favores políticos, são alvo de lobby de grandes radiodifusores e empresários de megacorporações do campo das comunicações.
Alguém já ouviu falar em conselhos municipais de comunicação? Em mídias efetivamente públicas, com conselhos de gestão de programação e gestão financeira compostos por integrantes da sociedade civil? Ou mesmo em centrais públicas de produção de mídia que possibilitem que mais vozes se projetem na esfera pública?
A falta de regulamentação da legislação de comunicação é uma das causas deste cenário confuso que, na realidade, responde aos interesses de quem opera o poder comunicacional no país. A Constituição brasileira prevê um sistema público de comunicação, barreiras à propriedade e ao monopólio, concessões outorgadas pelo Congresso entre outras coisas. No entanto, pouco ou quase nada é posto em prática.
Enquanto o Estado se omite, nove famílias falam e 180 milhões de pessoas se calam. São estas nove famílias que decidem o que vamos ver na nossa televisão, sob o argumento de que democracia na TV é controle remoto e controle público dos meios é censura. São eles que decide que vamos assistir a programas como Zorra Total e às humilhantes “pegadinhas”, além dos absurdos “testes de fidelidade”.
É preciso pensar a participação das mulheres neste cenário como proposição de um lugar para este sujeito político. É preciso pensar a participação das mulheres como construção de uma comunicação contra-hegemônica, porque pensá-la somente nos espaços de poder tal qual eles hoje se constituem (inclusive no campo das comunicações) restringe a abrangência da transformação que queremos.
Como reverter distorções e discriminações que permeiam tanto o conteúdo quanto as políticas e comunicação no Brasil? A chave para a virada deste jogo está na luta pela participação das mulheres, tanto nos conteúdos midiáticos (produzindo, veiculando e circulando comunicação), quanto na valorização e ocupação de espaços políticos do campo da comunicação.
Desequilíbrio na política
Em pesquisa da União Inter-Parlamentar (UIP), uma organização de fomento à cooperação entre as câmaras nacionais de mais de 140 países realizada em 2006 e divulgada no site da BBC Brasil, o Brasil ficou em 107º lugar em um ranking sobre a percentagem de mulheres nas câmaras de deputados de 187 países até o fim de 2005. A lista foi elaborada a partir dos dados das últimas eleições em cada país (no Brasil, as de 2002). Ruanda aparece em primeiro lugar.
Segundo o levantamento, os países nórdicos, reconhecidos pela igualdade de gênero, ocupam as posições seguintes: em segundo, a Suécia (45,3%); em terceiro, a Noruega (37,9%); em quarto, a Finlândia (37,5%); em quinto, a Dinamarca (36,9%). Holanda (36,7%), Cuba (36%), Espanha (36%), Costa Rica (35,1%), Argentina (35%) e Moçambique (34,8%) completam os dez países com maior número de legisladoras.
O Brasil, assim como os Estados Unidos, ficaram abaixo da média mundial de 16,6% de mulheres na composição da câmara dos representantes, com apenas 8,6% brasileiras e 15,2% americanas. A média brasileira é pouco superior à de países árabes, que têm 6,8% de mulheres nos parlamentos.
Ruanda, o primeiro da lista, tem uma participação de 48,8% de mulheres, seguida de perto pela Suécia, com 45,3%. O Brasil é o país sul-americano pior colocado na lista, atrás de Argentina (9º), Guiana (17º), Suriname (26º), Peru (55º), Venezuela (59º), Bolívia (63º), Equador (66º), Chile (70º), Colômbia (86º), Uruguai (92º) e Paraguai (99º). A proporção de mulheres no Senado brasileiro é um pouco mais alta, de 12,3%, mas como vários países não têm uma estrutura semelhante, não foi elaborado um ranking específico.
Invisibilidade na mídia
Além do desequilíbrio na ocupação dos espaços políticos, em todo o mundo, as mulheres seguem invisíveis na mídia. A cada ano, o Dia Internacional da Mulher é um momento para contabilizar o progresso e os desafios a serem enfrentados em relação à permanente desigualdade de gênero que existe no mundo. Mas o que faz a imprensa no restante do ano? Como os veículos de comunicação contribuem para a igualdade de gênero ou para o reforço de preconceitos?
Desde 1995, a cada cinco anos, a WACC (World Association for Christian Communication), uma organização internacional que promove a comunicação como fator de transformação social, realiza um projeto global de monitoramento da mídia, onde mapeia a representação de mulheres e homens na imprensa do mundo inteiro. É o maior estudo sobre gênero no noticiário já realizado. O último levantamento aconteceu no ano passado, quando, durante um dia, em 76 países, cerca de 13 mil notícias publicadas em jornais e veiculadas na televisão e no rádio foram analisadas. Nelas, 25.671 fontes foram ouvidas ou citadas, por 14.273 jornalistas ou apresentadores.
Pela primeira vez, reportagens brasileiras entraram no estudo, numa parceria com a Universidade Metodista de São Paulo e a Rede Mulher de Educação. O estudo mostrou que, mesmo constituindo 52% da população mundial, as mulheres aparecem em apenas 21% das notícias. Ou seja, para cada mulher que aparece no noticiário, cinco homens são retratados. No rádio, este percentual é ainda menor: 17%.
Em dez anos, apesar de toda a revolução no mundo das telecomunicações, este total evoluiu muito pouco, aumentando somente em três pontos. Quando é feita uma análise qualitativa da presença de mulheres como fontes em reportagens, o estudo mostra que a opinião feminina é retratada em somente 14% dos artigos sobre política e em 20% sobre economia, os dois temas que dominam a agenda dos países. Mesmo em Ruanda, o país que tem a maior proporção de mulheres no mundo político (49%), elas aparecem em apenas 13% das notícias sobre o tema. Até em histórias que afetam profundamente as mulheres, como a questão da violência doméstica, globalmente é a voz do homem que prevalece, em 64% dos casos.
A voz feminina também é preterida quando se trata de ouvir a opinião de especialistas. 83% deles são homens. As mulheres, ao contrário, aparecem para relatar experiências pessoais (31% dos casos), como exemplos da opinião popular (33%) ou quando são celebridades (42%). E são duas vezes mais retratadas como vítimas do que os homens, mesmo em casos que afetam da mesma forma os dois gêneros, como acidentes e conflitos armados. Apesar da emancipação feminina e do brutal crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho, as mulheres continuam sendo identificadas pela imprensa como esposas, mães ou filhas. Mesmo quando aparecem desempenhando algum papel profissional, como especialistas de alguma área, as mulheres não escapam da relação com o contexto familiar.
Outro dado interessante é o que revela que as mulheres dificilmente são o foco central de uma matéria. Apenas 10% das notícias mundiais – apesar de em países como Estados Unidos e Canadá chegarem a 20% – as colocam como o centro do acontecimento a ser destacado. A proporção varia de acordo com a pauta. Mulheres são centrais em 17% das notícias consideradas “leves”, e em apenas 3% das notícias sobre economia.
Parte deste quadro de ausência da visão feminina na imprensa é resultado do fato de que as notícias ainda são relatadas e apresentadas principalmente por homens. A única exceção é a apresentação televisiva, onde as mulheres representam 57%. Na reportagem, no entanto, as mulheres só são maioria na cobertura de assuntos sobre pobreza e bem-estar social e nas previsões meteorológicas. Em outros meios, elas são minoria, e o desequilíbrio fica mais evidente em jornais, onde apenas 28% dos artigos são escritos por repórteres femininas. Mesmo neste caso, a tendência é a das mulheres cobrirem temas sociais, como educação e saúde. Apenas 32% das notícias sobre política e governo são relatadas por jornalistas mulheres. De 1995 pra cá, este percentual tem aumentado. Cresceu de 28 para 37%, mas ainda apresenta desafios. Na televisão, por exemplo, as mulheres desaparecem conforme ficam mais velhas.
Na profissão, a aparência jovem em muitos casos é mais valorizada do que a experiência. Até a idade de 34 anos, as mulheres são maioria na TV tanto no posto de apresentadoras como de repórteres. Depois dos 50 anos, somente 17% dos repórteres mulheres, e 7% dos apresentadores.
Ocupar a mídia e a política
Além de ocupar os espaços comunicativos e políticos para dar início ao processo de alteração deste quadro de sub-representação e distorção, há outras formas de atuação que vêm sendo levadas a cabo pelo movimento feminista para reparação deste cenário.
A Agência Carta Maior noticiou recentemente que um abaixo assinado proposto pelo Observatório da Mulher e contendo mais de 500 assinaturas de ONGs, grupos feministas, sindicalistas e outras organizações da sociedade civil foi entregue ao Ministério Público Federal. Dirigido aos acionistas e diretores das diversas emissoras da TV brasileiras e ao Fórum pela Ética na TV, o documento requer espaço na programação da TV comercial para apresentar uma imagem da mulher brasileira diferente da que é veiculada de maneira geral pelas emissoras. “A TV é uma concessão pública e, por isso, é legítimo considerar que as concessionárias têm, no mínimo, como contra partida, a responsabilidade de atender os mais altos anseios e interesses do público que pretendem representar”, diz o documento.
O manifesto afirma ainda que “a relativa invisibilidade das mulheres trabalhadoras, intelectuais, especialistas, profissionais liberais e outras, a falta de espaço para a discussão de nossas reivindicações e ideais, bem como de nossas conquistas e das mudanças que conseguimos introduzir no mundo, perpetua a reprodução dos estereótipos limitantes que influem na formação de uma subjetividade empobrecida e resultam no rebaixamento da auto-estima das mulheres e na busca de sua afirmação através da perseguição dos modelos, valores e produtos veiculados”.
Reforma política: uma oportunidade de criar espaços a serem ocupados
A entrada em pauta da Reforma Política e os debates que estão sendo realizados sobre ela no âmbito da sociedade civil conformam uma oportunidade de se discutir as possibilidades de reparação deste quadro de sub-representação da mulher na mídia e nas políticas de comunicação.
Em documento chamado de Plataforma dos movimentos sociais por uma Reforma Política Ampla, Democrática e Participativa*, uma articulação de diversos movimentos, organizações e setores da sociedade propõe que a reforma não se restrinja à reforma do sistema político e eleitoral, que tramita no Congresso e é noticiada pela grande mídia.
As organizações exigem que a reforma contemple as diversas formas de democracia: participativa, direta e representativa, além de democratização da comunicação e da transparência do judiciário.
No eixo que trata da comunicação, as organizações propõem – entre outras coisas – a criação de um sistema público de comunicação e incentivo a mecanismos de controle público, tanto dos meios de comunicação (em relação aos conteúdos), quanto das políticas, para que sejam criadas e executadas com participação e monitoradas pela sociedade. Se na educação, na saúde e em outros campos de direitos humanos consolidados, estes espaços de intervenção estão construídos (ainda que precisem ser reestruturados) e precisam ser ocupados pelas mulheres, na comunicação, é preciso participar da luta para construí-los, para, em seguida ocupá-los.
Observatório do Direito à Comunicação, em 25.04.2007
* Resumo da apresentação no Seminário “Democratizar a democracia: a reforma política e a participação das mulheres”, realizado em Brasília, em 28 de Março de 2007.
** Michelle Prazeres é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, assessora de comunicação da ONG Ação Educativa e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
***Leia mais sobre a plataforma e veja o documento completo em www.participacaopopular.org.br