Liberdade:
Liberdade ou liberdades? Qual (ais)? Porque?
Na antiguidade clássica surgiram as primeiras concepções de liberdade, estas concepções consistiam em entendê-la da seguinte forma: “Bastar-se a si mesmo, autarquia, autonomia, faculdade de se governar por si mesmo, direito de reger-se por leis próprias”. A liberdade era basicamente o “não depender de ninguém e de coisa alguma”.Também estava intrinsecamente relacionada com a cautelosa relação com os poderes exteriores e circunstâncias incontroláveis, a liberdade não era um fim em si mesmo. A primeira grande teoria filosófica da liberdade foi concebida por Aristóteles, em sua obra “Ética a Nicômaco” e com variantes manteve-se através dos séculos chegando ao século XX, quando foi retomada por Jean Paul Sartre. Nessa concepção, a liberdade se opõe ao que é condicionado externamente (necessidade) e ao que acontece sem escolha deliberada, disse Aristóteles: “é livre aquele que tem em si mesmo o principio para agir ou não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir”.A liberdade seria concebida como poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma ou para ser autodeterminada. A ausência de constrangimentos externos e internos é fator indispensável para a liberdade nesta concepção, como uma capacidade que não encontra obstáculos para se realizar, nem é forçada por coisa alguma para agir. Na concepção aristotélica, a liberdade é o principio para escolher entre alternativas possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário.
Para os filósofos posteriores a Aristóteles, a liberdade será ética quando o exercício da vontade estiver em harmonia com a direção apontada pela razão.
– Período helenístico – estoicismo – trata-se do ultimo período da filosofia antiga, quando a polis grega desapareceu como centro político, deixando de ser referencia principal dos filósofos, uma vez que a Grécia encontrava-se sob o domínio do império romano, os filósofos diziam naquele período, que o mundo é sua cidade e que são cidadãos do mundo. Em grego, mundo se diz Cosmos e esse período é chamado o da filosofia cosmopolita. Essa época da filosofia é constituída por grandes sistemas ou doutrinas, ou seja, explicações totalizantes sobre a natureza, o homem, as relações entre ambos e deles com a divindade (esta em geral pensada como providencia divina que instaura e conserva a ordem universal). Predominam preocupações com a ética, pois os filósofos já não podem ocupar-se diretamente com a política, a física, a teologia e a religião. Datam desse período quatro grandes sistemas cuja influencia será sentida pelo pensamento cristão, que começa a formar-se nesta época: o estoicismo, o epicurismo, o ceticismo e o neoplatonismo.
No século XVII Espinosa e no século XIX Hegel e Marx conservam a idéia aristotélica de que a liberdade é autodeterminação; dentro destas concepções é livre aquele que age sem ser forçado e nem constrangido por nada ou por ninguém, age movido espontaneamente por uma força interna própria, não colocam a liberdade no ato de escolha realizado pela vontade individual, mas na atividade do todo, do qual os indivíduos são partes. Para os estóicos e para Espinosa o todo ou a totalidade pode ser a natureza.A liberdade não é escolher e decidir, mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente, que no caso é a totalidade. Neste caso, o que é a liberdade humana afinal?
Existem duas respostas “possíveis” para esta questão:
1- O todo racional e suas partes também o são, sendo livres quando agirem em conformidade com as leis do todo, para o bem da totalidade.
2- As partes são da mesma essência que o todo, e, portanto, são racionais e livres como ele, dotadas de força interior para agir por si mesmas, de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo.
Durante a revolução francesa definiu-se melhor o significado da liberdade, na linguagem da declaração dos direitos do homem e do cidadão do dia 26 de agosto de 1789. Nesta declaração lê-se nos respectivos artigos:
1- Artigo I “os homens nascem livres e iguais em direitos (…)”.
2- Artigo IV “a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem (…)”.
3- Artigo X “ninguém deve ser molestado pelas suas opiniões, mesmo religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem publica (…)”.
4- Artigo XVII “sendo propriedade um direito inviolável e sagrado, dela ninguém pode ser privado, salvo quando a necessidade publica, legalmente verificada o exigir evidentemente e com a condição de uma justa e prévia indenização (…)”
A revolução francesa foi um movimento burguês apoiado pelo povo, que derrubou o absolutismo na França, estabeleceu um estado fundamentado em leis que refletiam os direitos individuais do cidadão, a liberdade, igualdade e fraternidade, no dia 14 de julho de 1789 o povo invadiu a bastilha, uma prisão do estado e símbolo do poder absolutista opressor do rei, revoltas populares espalharam-se por toda a França e em agosto aboliram alguns privilégios feudais e em seguida aprovou-se a declaração dos direitos do homem e do cidadão. No mês de outubro o povo invadiu o palácio de Versalhes obrigando a rei e sua família a mudarem-se para o palácio das Tulherias, cai a monarquia e é instaurada a comuna revolucionária.
Jean Jacques Rousseau disse: “ O homem nasce livre, porém está acorrentado em todo lugar”.
A declaração dos direitos do homem e do cidadão vem como um eco das teorias do contrato social e da epopéia da independência das colônias norte – americanas e anuncia a promessa moderna da liberdade como condição inerente dos seres humanos em sociedade e como princípio que modela as instituições da vida coletiva.
Uma terceira grande concepção filosófica de liberdade – Afirma que não somos um poder incondicional de escolha, mas que nossas escolhas são condicionadas pelas circunstâncias naturais, psíquicas, culturais e históricas em que vivemos, pela totalidade natural e histórica que estamos situados. Não se trata de liberdade de querer alguma coisa e sim de fazer algo, distinção feita por Espinosa e Hobbes no século XVII e retomada por Voltaire no século XVIII.
A noção de liberdade como possibilidade objetiva (Merleau – Ponty) consiste na capacidade para perceber tais possibilidades e no poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas, dando-lhe outra direção, outro sentido.
No artigo 1- da declaração universal dos direitos humanos lê-se: “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
No artigo 2- Lê-se: “todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição”.
Observamos que nestes dois artigos são apontados quatro tipos de liberdade, a liberdade religiosa ou de culto, a de pensamento (opinião), a civil e a política.A liberdade religiosa ou de culto está inserida na liberdade de pensamento e, portanto também na civil e na política ou vice versa, a liberdade civil é o direito de todos os homens exercerem e desenvolverem sua atividade física, intelectual e moral compreende ainda a liberdade religiosa, a de locomoção que seria o direito de ir e vir e de não ser detido arbitrariamente, mas apenas de acordo com a lei, no caso de transgredi-la, a inviolabilidade de domicílio, o direito de propriedade que não deve ser despojado, se não por motivos de utilidade ou necessidade publica mediante a prévia e justa indenização.A idéia de liberdade pode ser resumida da seguinte forma: sinônimo de respeito a individualidade do próximo, quando a concedemos a alguém ganhamos o nosso próprio direito de usufruí-la.Ser ou fazer implica em liberdade, a condição primordial da ação é a liberdade, basicamente a capacidade de escolha, onde não existe escolha não há liberdade. Ser livre não significa obter o que se quer na hora que bem desejar, mas sim se determinar o querer, no sentido de escolha. O êxito ou sucesso da escolha não importa em absoluto a liberdade, o ato livre é um ato pelo qual o individuo deve responder e responsabilizar-se, “porque sou livre tenho que assumir as conseqüências de minhas ações e omissões”.
O conceito de liberdade neoliberal esta estreitamente ligado ao principio do respeito a propriedade privada. A liberdade neoliberal pode traduzir-se da seguinte maneira: “enquanto respeitar a propriedade alheia, faça o que disser a sua vontade”.Jean Paul Sartre afirmou que a liberdade é a escolha incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo.Nosso mundo, nossa vida e nosso presente formam um campo de condições e circunstâncias que não foram escolhidas e nem determinadas por nós e em cujo interior nos movemos.Contudo, esse campo é temporal: teve um passado, tem um presente e terá um futuro, cujos vetores ou direções já podem ser percebidos ou mesmo adivinhados como possibilidades objetivas. Diante desse campo, poderíamos assumir duas atitudes: ou a ilusão de que somos livres para mudá-lo em qualquer direção que desejarmos, ou a resignação de que nada podemos fazer. Deixado a si mesmo, o campo do presente seguirá um curso que não depende de nós e seremos submetidos passivamente a ele. A liberdade, porém, não se encontra na ilusão do “posso tudo”, nem no conformismo do “nada posso”. Encontra-se na disposição para interpretar e compreender os vetores do campo presente como possibilidades objetivas, isto é, como abertura de novas direções e novos sentidos a partir do que está dado.
Nada melhor do que um poema de Carlos Drummond para expressar essa idéia. Trata-se de um poema no qual o poeta reconhece que seu coração não é mais vasto do que o mundo, como ele imaginara:
MUNDO GRANDE
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
Por isso me grito,
Por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
Preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também na rua não cabem todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
As diferentes dores dos homens, Sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso Num só peito de homem… sem que ele estale. Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
Tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
Tão calma! Vai inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
Como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que os homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
As sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
Países imaginários, fáceis de habitar,
Ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
Trouxeram a notícia
De que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
Entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
Entre a vida e o fogo,
Meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.
O que nos diz Carlos Drummond neste poema?
Que não é na solidão de uma vontade individual (“mais vasto é meu coração”, como o poeta escrevera antes) que podemos enfrentar livremente o “mundo grande”, mas na companhia dos outros que nos trazem a notícia de que o mundo cresce todo dia, isto é, transforma-se incessantemente “entre fogo e amor”, entre lutas, guerras, conflitos e busca de paz, entendimento e justiça. Somos livres não contra o mundo, mas no mundo – “meu coração cresce” (meu poder de querer e de fazer aumenta) -, mudando-o na companhia dos outros, aprendendo “a linguagem com que os homens se comunicam”, isto é, suas dores, seus sofrimentos, suas batalhas e suas esperanças. Somente tendo contato com o mundo, conhecendo seus limites e suas aberturas para os possíveis é que nossa liberdade poderá exclamar: “Ó vida futura, nós te criaremos”.É essa mesma concepção da liberdade como possibilidade objetiva inscrita no mundo que encontramos no filósofo Merleau-Ponty, quando escreve: Nascer é, simultaneamente, nascer do mundo e nascer para o mundo. Sob o primeiro aspecto, o mundo já está constituído e somos solicitados por ele. Sob o segundo aspecto, o mundo não está inteiramente constituído e estamos abertos a uma infinidade de possíveis. Existimos, porém, sob os dois aspectos ao mesmo tempo. Não há, pois, necessidade absoluta, nem escolha absoluta, jamais sou como uma coisa e jamais sou uma pura consciência… A situação vem em socorro da decisão e, no intercâmbio entre a situação e aquele que a assume, é impossível delimitar a “parte que cabe à situação” e a “parte que cabe à liberdade”.
Bilbiografia: www.nethistoria.com.br
Marilena Chauí : Convite à filosofia