A importância da Teoria – revisitando a obra de Raúl Cariboni – 2

A importância da Teoria – revisitando a obra de Raúl Cariboni – 2

1º de outubro de 2009, por Bruno Lima Rocha

Damos seqüência nesta semana com a visita e releitura da obra coletiva coordenada pelo professor de História e militante libertário uruguaio, Raúl Cariboni. O título do texto de orientação para a militância uruguaia do início da dura e disputada década de ’70 se chama A Importância da Teoria, e o apelido era Huerta Grande (Horta Grande). É um pequeno documento com sólida base estruturalista, apontando para o papel do mundo das idéias e da ciência para o acionar político do campo do movimento popular e das organizações específicas que se posicionam como motor destas lutas.
Dentro desse marco de conceitos operacionais está o de Linha, Programa e Etapa, conforme vemos abaixo:

Sem linha para o trabalho teórico, uma Organização, por maior que seja, é confundida por condições que ela não condiciona nem compreende. A linha política pressupõe um programa, ou seja, as metas que se quer alcançar em cada etapa. O programa indica que forças são favoráveis, quais são os inimigos e quem são os aliados circunstanciais. Mas para saber isso é preciso conhecer profundamente a(s) realidade(s) do país. Por isso, adquirir agora esse conhecimento é a tarefa prioritária. E para conhecer é preciso teoria.

Entendo que as formulações acima nos oferecem uma modelagem visível das carências, acertos, virtudes e mazelas do pouco ou muito trabalho teórico, da suficiente ou da falta de aplicação de métodos científicos na lida política. Podemos concluir que o bom conhecimento das realidades, somados com a qualidade de intervenção de acordo com o objetivo finalista é o fruto direto da capacidade teórica (aqui caracterizado como um sistema de conceitos coerentemente articulados), somado com a metodologia analítica para a incidência (sendo esta a sobreposição do pensamento histórico-estrutural aplicado sobre um tabuleiro de análise estratégica) e estando a dimensão ideológica preservada e retroalimentada pelo fazer da política cotidiana.

Por contraposição lógica, o pouco conhecimento das realidades (a baixa compreensão da sociedade concreta e seus constrangimentos estruturais), em geral facilita a mística interna esterilizante. Esta “mística exagerada e esterilizante”, se caracteriza por um discurso excessivamente emotivo e que somente se retro-alimenta, fazendo a confusão intencional entre culto da simbologia com a frieza analítica que é pré-condição para qualquer incidência de longo prazo. Este discurso político se materializa para o público externo, em geral, através de um programa muito aberto, de linha pouco coerente (com evasivas conceituais e baixa coerência interna), o que corresponde na qualificação da incidência política em um caráter excessivamente agitativo.

Somo aos fatores citados acima a necessidade da qualidade da intervenção, caracterizando-se a coesão, a partir do âmbito interno para o externo, como um perfil de estilo de trabalho político. Esta forma de procedimento atua tanto nas instâncias política específicas, como na política-social, social e do associativismo como um todo. Afinal, nas arenas públicas, a conduta de seus membros é a materialidade da intervenção organizada da agrupação que se pretende fomentadora de câmbio profundo. O trabalho de Cariboni aponta também o estilo, a forma de intervenção, quando a organização é identificada além do arsenal simbólico característico da política, mas também pela coerente articulação discursiva e analítica materializada na intervenção política de seus membros.

Do ponto de vista metodológico, a teoria política de matriz libertária tem de dialogar com outras teorias, que não ocupem o mesmo espaço, mas que possam ser úteis para as análises e incidências necessárias para o desenvolvimento desta organização. Assim, segundo Cariboni, o ponto do diálogo, se dá na formulação de conceitos operacionais adequados na doutrina já pré-existente. “Teremos, então, que tomar a teoria conforme vamos elaborando, analisando-a criticamente. Não podemos aceitar qualquer teoria de olhos fechados, sem crítica, como se fosse um dogma.” Esta afirmativa implica em reconhecer e criticar, simultaneamente, e não iludir-se com a elaboração intelectual de outros.

Isto eu compreendo que também caracteriza um repúdio orgânico às adesões de tipo “clichê”. No termo aplicado abaixo, “cartazinho da moda”, é a crítica de Cariboni (com a qual faço acordo) da citação pela citação, pela profusão de discurso com pretensões científicas, mas cuja importação de paradigmas estranhos e tipos ideais inaplicáveis tornam esse mesmo esforço inócuo e estéril. Se isso pode ser desastroso na produção acadêmica de um trabalhador intelectual, para uma equipe de formação política que tem como meta alimentar a capacidade de análise, tal esterilidade é a negação da instância em si mesma. Entendo que por isso a crítica abaixo é tão contundente.

Não iremos adotar uma teoria para pô-la em um “cartazinho de moda”. Para viver repetindo “citações” que outros disseram em outros lugares, em outro tempo, a propósito de outras citações e problemas. A teoria não é para isso. Para isso a usam os charlatães. […] Quem compra um grande torno moderno e, ao invés de tornear fica falando do torno, faz um mau papel, é um charlatão. Da mesma forma aquele que, podendo ter um torno e usá-lo, prefere tornear a mão, porque era assim que se fazia antes…

Neste ponto acima vejo uma aproximação da crítica intramuros do círculo virtuoso do mundo acadêmico, do conhecimento enquanto representação. É notado o elogio, mesmo que através de outros termos, do conhecimento enquanto um produto tangível e de aplicação estratégica. Isto se dá, analiso, porque no texto de Cariboni não se aventa a possibilidade de aplicação de um conhecimento fruto de método científico e cabedal teórico coerente, por fora do marco orgânico e da intencionalidade de ser um agente de câmbio.

A caracterização do “charlatão” como aquele que faz “um mau papel”, e vejo como perfeitamente aplicável na atualidade. Pode ser visto este “mau papel” tanto entre operadores políticos e acadêmicos, dentre os que produzem discursos intangíveis ou importam categorias desnecessárias ou imaterializáveis em nossas sociedades. Vale observar que quando generalizo “nossas sociedades”, me refiro às sociedades concretas existentes na América Latina, englobando países, regiões, territórios ou grandes divisões como: Cone Sul, Zona Andina, Caribe, Centro-América, dentre outras.

Voltando a charlatanice do cartazinho da moda e da citação pela citação, estes absurdos se dão seja pela complexidade argumentativa desacompanhada de uma fórmula de incidência, seja pelos que apenas copiam como os que aplicam tipos idéias pré-formatados. A pretensão universal de uma categoria ou um conjunto de predições categóricas, assim como a capacidade que um conhecimento tem de fazer do outro o particular e a si mesmo o conhecimento global é fruto tanto da correlação de forças como do potencial simbólico dos “charlatães”. A diferença do “grau de fracasso”, sem entrar no mérito valorativo do que seria pior, é que o epistemicídio que nos fala Boaventura de Souza Santos, quando aplicado na prática política resulta em fracassos de fins trágicos.

O mesmo se dá na comparação da tecnologia a ser empregada, ironizando “quem prefere tornear a mão, porque assim se fazia antes…”. Na política, o anacronismo tático pode levar a uma esterilidade das idéias-guia, justo pela incompatibilidade que estas idéias de tipo doutrina terão na aplicação teórica. O equívoco estratégico, fruto da confusão e “cegueira valorativa” daquilo que é tático e do que é estratégico para atender aos objetivos finalistas através de uma estratégia permanente, segundo os fins e as condicionalidades, costuma cobrar um preço elevado para os que cometem erros básicos.

Entendo que se nota acima, na citação do original de Cariboni, a preocupação em produzir teoria cujo produto de análise seja tangível, acessível, compreensível, tendo factibilidade entre a prática discursiva e a incidência organizativa cotidiana. Isto se dá, porque a preocupação maior não é nem com o proselitismo político e nem com a fundamentação da filosofia política. Embora estes dois fatores sejam relevantes, o que importa é a tangibilidade adequada ao terreno, ao espaço geográfico, inserida no tecido social e na estrutura de classes a partir de onde se opera e se organiza.

O conhecimento enquanto representação se confunde e mescla a teoria com a dimensão ontológica pura (ideológica), tornando assim, a teoria, em muito algo pouco científico, acercando-a a mais uma peça de discurso atuando como um espelho de um sistema de crenças com pretensões cientificistas. A confusão e o apontar de algumas diferenças entre teoria com ideologia é abordada na seqüência, no último artigo da série da releitura do trabalho coordenado e sistematizado por Raúl Cariboni em 1970. Encerro estas linhas chamando a atenção para a atualidade do pensamento político quando se torna clássico e teoricamente válido. Tal é o caso da Horta Grande, que segue semeando novas proposições teóricas para o pensamento de matriz libertária.

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