Na conferência de abertura do curso Cidadania e Direito à Educação, realizado em São Paulo no dia 13/03/2010 e promovido pela Ação Educativa, o assessor de Direitos Humanos do INESC e coordenador da Plataforma DhESCA Brasil, Alexandre Ciconello, fez uma ampla exposição sobre o significado dos direitos humanos e destacou a historicidade do conceito, bem como os desafios para sua efetivação, contextualizando o desenvolvimento e o reconhecimento dos direitos civis e políticos e dos direitos econômicos, sociais e culturais. “Direitos humanos são construção histórica, a própria noção de direito é uma conquista, que advém de luta social. Os direitos são conquistados por quem vive em situação de opressão e violação de direitos”, destacou.
Ciconello explicou que a noção contemporânea de direitos humanos advém da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que estabeleceu, concretamente como documento assinado por todos os países do mundo, as bases políticas e conceituais desses direitos, que foram posteriormente desenvolvidos por um conjunto de documentos normativos internacionais com força de norma jurídica. É, portanto, um conceito jurídico, em que valores morais, filosóficos e religiosos, de igualdade, justiça, liberdade, sustentabilidade e dignidade humana passam a ser ‘codificados’ e constituem um sistema de direito positivo internacional, criando obrigações para os Estados Nacionais e para a comunidade internacional, tendo como princípios básicos a universalidade, a liberdade com igualdade e a não discriminação.
A declaração elenca uma série de direitos civis e políticos, que estão mais relacionados à liberdade do indivíduo em relação ao Estado. “O contexto da declaração é o de uma polarização ideológica no mundo (Guerra Fria), e os direitos humanos também entram em disputa. Os países comunistas questionam a ausência de direitos sociais, econômicos e culturais na declaração das Nações Unidas”, afirmou Ciconello.
Esse processo de disputa resulta na construção de dois pactos na década de 1960: o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; e o Pacto de Direitos Civis e Políticos. “São dois instrumentos normativos internacionais, ratificados pelo Brasil somente em 1992”. Esses três documentos internacionais (Declaração Universal e Pactos) formam a
chamada “Carta de Direitos Humanos” da ONU.
Em 1993, com a Conferência da ONU sobre Direitos Humanos, em Viena, define-se que a dignidade humana significa a conjunção de direitos civis e políticos com os direitos econômicos, sociais e culturais, e determina-se que os países construam programas nacionais de direitos humanos.
No Brasil, a sociedade privilegiou, no contexto da ditadura, a luta por direitos civis e políticos, fortemente negados no contexto da repressão política e da restrição das liberdades individuais. No entanto, sobretudo após a Constituição de 1988 e principalmente na década de 90, quando foi criada Plataforma DhESCA Brasil e surgem outras organizações de direitos humanos abordando temas específicos (educação, saúde, terra, diversidade sexual, comunicação, alimentação, indígenas, quilombolas, mulheres etc), a sociedade passa a lutar mais fortemente pelo reconhecimento e implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais.
No contexto atual, amplia-se a luta para a efetivação do conceito de dideitos ambientais, de viver em ambiente saudável, preservado. Ressalta-se, dessa forma, a relação entre a luta por direitos e os momentos históricos vividos, bem como as relações de poder que perpassam construção e efetivação dos direitos humanos.
Estrutura e princípios dos direitos humanos
Além de terem como princípios *universalidade*, *liberdade com digualdade* e *não discriminação*, os direitos humanos são *indivisíveis* – uma violação a um direito é uma violação da dignidade da pessoa – e *interdependentes*, ou seja, a violação do direito à educação é também, por exemplo, violação do direito ao trabalho, dado que diferenças na escolaridade estão relacionadas ao acesso desigual ao trabalho.
O Estado, em relação aos direitos humanos, tem como obrigações: *respeitar* uma vez que o próprio Estado não pode violar; *proteger* que terceiros infrinjam os direitos de alguém; *efetivar*, ou seja, o Estado deve promover direitos por políticas públicas; e *reparar*, em caso de violação, através do sistema de Justiça.
Ciconello também destacou que a operacionalização dos Direitos Humanos se dá do abstrato ao concreto. Isso significa que há um caminho a ser percorrido da estrutura normativa internacional para a aplicação no cotidiano das pessoas. Tal caminho se inicia pela construção e assinatura de tratados internacionais, passa pela Constituição Federal, que no caso brasileiro traz no artigo sexto os direitos sociais, e deve-se tornar lei para, então, ser consolidada em política pública. Uma vez tornados política pública, os direitos são materializados na execução orçamentária.
Desafios à implementação
Em sua apresentação, Ciconello elencou quatro desafios para a efetivação dos direitos humanos no Brasil, a partir das motivações do não cumprimento pleno desses direitos. Nesse sentido, a questão das desigualdades surgiu como tema central da exposição. “O Brasil é estruturalmente uma sociedade desigual. Então, a universalização dos direitos se coloca como questão estruturante”.
Ciconello destacou três entraves principais: patrimonialismo, racismo e sexismo, que geram desigualdades relacionadas a renda, raça, gênero e território. As políticas públicas universais ainda não são suficientes para universalizar direitos, por se defrontarem com tais entraves. A política de saúde, exemplificou Ciconello, ainda que tenha como pressuposto a universalidade do atendimento, revela-se desigual na materialidade do sistema, uma vez que as mulheres negras são, de acordo com pesquisas, pior atendidas do que as brancas.
Para elucidar a questão da desigualdade que resulta do racismo, Ciconello valeu-se de dados do Programa Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). De acordo com relatório PNUD (2005), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil colocava o país, em 2002, na 73ª posição. “Se desagregássemos os indicadores sociais e de renda que formam o índice por raça/cor, teríamos que o Brasil negro ocuparia a *105ª* posição no /ranking/, enquanto o Brasil branco ocuparia a *44ª *posição. A comparação entre o Brasil branco e o Brasil negro expressa em estatísticas a distância desses dois mundos. A taxa de matrícula no ensino médio é outro exemplo. Ainda que tenha crescido para ambos, manteve a distância no acesso entre negros e brancos”, afirmou. Além disso, apontou-se a discriminação no mercado de trabalho, expressa pela diferença salarial entre negros e brancos com mesma escolaridade média.
Justifica-se, portanto, como primeiro desafio, a adoção de medidas afirmativas, para que se cumpra aquilo que está expresso em tratados e convenções internacionais assinados pelo Brasil, em que o País se compromete a reduzir as desigualdades raciais. “Isto só se realiza por ações afirmativas, uma vez que a igualdade formal do direito mantém privilégios. As políticas universais não estão conseguindo diminuir a desigualdade, por isso a necessidade de políticas afirmativas para universalizar direitos. Não se deve tratar de forma igual os desiguais”.
Como segundo desafio, Ciconello colocou o enfrentamento da violência, estrutural no País. “O Brasil é o sexto país onde mais se mata no mundo. São 26 homicídios por 100 mil habitantes. Na Europa não se chaga a 2 por 100 mil e nos EUA, considerado um país violento, a taxa está em 7 por 100 mil”, comparou. Todos os países posicionados acima do Brasil no ranking passam ou passaram recentemente por guerra civil.
A violência se reflete na situação de mulheres, jovens negros, crianças, bem como na criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. “Quem luta para mudar a realidade é criminalizado. Quem luta por democracia, pelo acesso à terra, pelos direitos reprodutivos, por democratização da comunicação etc, é criminalizado e relacionado a um contexto de violência”, explica. É nesse sentido que defensores de direitos acabam perseguidos pela luta contra a exclusão e a opressão.
Ciconello também relacionou o tema com o modelo de desenvolvimento excludente e ambientalmente insustentável, elencado como terceiro desafio. “Devemos nos perguntar a quem o Estado beneficia com o agronegócio. O modelo macroeconômico de desenvolvimento do País é prejudicial aos direitos humanos, na medida em que concentra renda, é excludente e ambientalmente insustentável”, destacou, relacionando em seguida a política macroeconômica com o orçamento público. “A principal aplicação de recursos é para diminuir o custo para a reprodução do capital, para beneficiar atividades predatórias e a poucos grupos”.
Dessa forma, o especialista comparou os investimentos em políticas compensatórias como o programa Bolsa Família e aquilo que é gasto para pagamento de juros da dívida pública. “Entre 2004 e 2007, a União gastou R$ 755 bilhões com os juros da dívida, o que corresponde a 30% do orçamento. Já pelo [programa] Bolsa Família foram investidos R$ 12 bi”.
Outro questionamento está no privilégio do agronegócio exportador em detrimento da agricultura familiar. Ainda que expresse altas cifras, Ciconello questiona quem se beneficia disso. “Apenas uma elite do campo, e que ainda prejudica o meio ambiente”.
Já o quarto desafio é a construção de uma cultura em direitos humanos, a conscientização das pessoas em relação à temática. “É urgente a democratização das telecomunicações no país, hoje concentrada nas mãos de poucas famílias, ligadas ao poder econômico. Há uma reprodução de visão única, o que dificulta a conscientização da necessidade de luta pelos direitos”.
O conferencista finalizou sua exposição afirmando que tais concepções e desafios basearam a formulação do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH 3, divulgado recentemente pelo Governo Federal e que vem sofrendo sistemáticos ataques de setores conservadores justamente por pautar questões centrais para a realização da justiça social no País, como a distribuição da terra, a preservação do meio ambiente, a laicidade do Estado e o respeito à liberdade religiosa, o direito das mulheres e as políticas afirmativas.
Sobre o Inesc e a Plataforma DhESCA
O Inesc é uma organização não governamental que tem por missão “*Contribuir para o aprimoramento da democracia representativa e participativa visando à garantia dos direitos humanos, mediante a articulação e o fortalecimento da sociedade civil para influenciar os espaços de governança nacional e internacional”, atuando com a* promoção dos direitos humanos a partir do orçamento público. Leia mais em http://www.inesc.org.br/
Já a plataforma DhESCA (Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais) é uma articulação de 34 organizações e redes nacionais de direitos humanos, que desenvolve ações de promoção, defesa e reparação dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, visando o fortalecimento da cidadania e a radicalização da democracia.
Ela possui relatorias nacionais do direito humano à educação, saúde, moradia e terra, alimentação, meio ambiente e trabalho. A função de Relator é liderar investigações independentes sobre violações de direitos. Leia mais em http://www.dhescbrasil.org.br/
*Alexandre Ciconello,
Sistematizado por Hugo Fanton