Essa foi a questão proposta para os participantes do Great Transiton Network (GTN) durante o mês de maio. Acompanho os debates mensais do grupo, feitos via internet, coordenados por Paul Raskin, do Tellus Institute, de Boston, EUA. Normalmente, o debate é aberto com um texto motivador em torno do tema proposto, escrito por alguém engajado no GTN e com particular contribuição na área, como intelectual ativista. Quem está na rede tem acesso ao texto e pode disponibilizar a sua análise e/ou comentários a respeito com um pequeno texto, que também é distribuído a todos. No final do mês, quem abriu a discussão apresenta sua reação e a versão final, incorporando ou não as contribuições dos participantes. O texto motivador final e as contribuições mais relevantes são editadas e colocadas no site do GTN para livre acesso e maior difusão.
Como motivação para a discussão de maio foi proposto que fizéssemos uma reflexão a partir de uma produção coletiva anterior: os cenários do futuro. Os cenários são uma combinação de enfoque e de método de análise para dissecar e organizar a complexidade das situações como realidade pensada. Como parte da visão e motivação para uma Grande Transição (Great Transition), os cenários são vistos e organizados como síntese de grandes tendências, cujos sinais podem ser identificados nas estruturas e relações econômicas de poder da atualidade em contraditório movimento, nas resistências e nas propostas, nas lutas sociais, nos debates nas sociedades civis do diverso e complexo planeta que compartilhamos. O ponto de partida para o grupo é o reconhecimento da destruição, desigualdade e insustentabilidade ecossocial e democrática do paradigma dominante de desenvolvimento, movido pela busca de acumulação pelas grandes corporações econômicas e financeiras. Basicamente, os cenários estão estruturados em três grandes possibilidades, cada uma delas bifurcada em duas formas:
I . Mundos convencionais:
a) Forças de Mercado
b) Reforma Política
II. Barbarização:
a) Mundo Fortaleza
b) Destruição Total (da Civilização humana)
III. Grande Transição:
a) Eco-comunalismo
b) Novo Paradigma[i]
Na prática, perpassa os numerosos, diferentes e interessantes comentários, uma reflexão sobre qual é o cenário com mais plausibilidade de acontecer e qual menos. Um primeiro aspecto a destacar é que a abordagem se revelou útil e agregadora, como forma de se fazer um debate construtivo entre percepções muito diferentes. Enfim, é um bom trabalhar com referência nos cenários.
Um aspecto ressaltado por praticamente todos que contribuíram para o debate do mês é o reconhecimento que a pandemia escancarou as falhas estruturais do capitalismo globalizado e dominado pelas grandes corporações econômicas e financeiras e o livre mercado. Também chamou a atenção à fragilidade dos sistemas de promoção e defesa da saúde coletiva nos diferentes países após décadas de liberalismo, desconstrução de direitos e políticas públicas, em nome de menos Estado e mais mercado. Apesar dos discursos de menos intervenção estatal neoliberal extremado, a pandemia deixa claro como os Estados estão voltados para defender os interesses das grandes corporações, bancos e bolsas e longe de priorizar os bens comuns e as políticas a favor das sociedades. É escandalosa a diferença dos pacotes de socorro financeiro durante a pandemia aos negócios em relação ao que se faz para enfrentar as necessidades concretas das grandes maiorias da população, sobretudo dos grupos mais vulneráveis.
A pandemia não é uma fatalidade natural, mas produto social. Segundo diversos analistas, ela expõe as múltiplas fraturas e separações em que se assenta o paradigma dominante. Os extremos estão mais visíveis. Ai merece destaque a ruptura com a integração natural da vida no planeta que a economia atual promove, chegando ao absurdo de opor humanos à própria natureza, como se não fossemos nós mesmos parte dela. E, na esteira disso, a concepção e o uso da natureza como mero recurso econômico a ser explorado sem limites e sem zelar por sua integridade. Mais, a separação entre os próprios humanos, negando o reconhecimento de sua comum igualdade, sua interdependência e seu compartilhamento como condição de vida, é a condição para sobrepor a busca do interesse individual acima do coletivo. Mas aqui cabe uma ressalva. De meu ponto de vista, as contribuições não destacaram ou até ignoraram o quanto são e continuam estruturantes do paradigma dominante, do poder e da própria economia, o patriarcalismo, o racismo e o colonialismo.
Sem explorar de forma mais profunda, atravessam os comentários a identificação dos sinais de valores redescobertos e revalorizados no contexto da pandemia e que apontam para a existência, sim, de possibilidades de transformação: a solidariedade, a ajuda mútua, a centralidade do cuidado na vida e na economia, a importância de trabalhos fundamentais, mas pouco valorizados hoje em dia, o sentido de pertencimento e revitalização das comunidades territoriais, a cooperação global, a necessidade de Estados e políticas públicas que priorizem o bem comum.
Num quadro assim, na discussão do mês de maio do GTN destaca-se a avaliação da maior plausibilidade dos cenários de barbarização, mais do que uma simples restauração da “normalidade” de antes da pandemia. São assinalados como indícios de tal plausibilidade: a maior dominação das mega corporações, a maior militarização das relações internacionais, a maior vigilância estatal sobre a cidadania, maior autoritarismo e menos democracia. Também cabe assinalar a eminente ameaça da mudança climática, num quadro de disputas geopolíticas, crise do multilateralismo, dependência de energia fóssil, continuidade dos desmatamentos das florestas remanescentes, poluição sem controle de águas e oceanos e até negação das evidências climáticas.
Concordando com tal avaliação pessimista sobre o pós-pandemia – ainda mais num quadro de desgoverno e ameaça fascista do Bolsonaro como vivemos no Brasil – aponto aqui dados a que tive acesso nestes últimos, referentes aos EUA. O boletim da última semana do Institute for Policy Stadies, de Washington, DC, apresenta o que é caracterizado como “Pandemic Profiteering” (“produtividade da pandemia”, em tradução livre.), um verdadeiro escândalo em comparação com a situação do emprego nos EUA. Os dados são referentes ao período de 08 de março a 04 de junho de 2020, semanas de explosão da pandemia por lá. Neste curto período, os bilionários norte-americanos aumentaram a sua riqueza em 565 bilhões de dólares, enquanto o desemprego atingiu 42,6 milhões de pessoas.[ii]
Gostaria de enfatizar aqui a pouca atenção nos debates do mês ao “estado” dos possíveis sujeitos coletivos da transição durante este momento trágico de dimensões planetárias. Tal questão é incontornável para pensar história e fazer prospectivas. Não estou dizendo que esta não é uma preocupação central para o GTT, pois vários debates mensais sobre diferentes iniciativas e movimentos sociais e da necessidade do protagonismo de sujeitos coletivos já ocorreram. Aliás, foi enquanto ativo participante do Fórum Social Mundial, seu comitê organizador e do Conselho Internacional, de 2001 a 2012, é que fui convidado a participar do GTN e que, reconheço, tem sido até aqui uma experiência fundamental e inspiradora. O que quero destacar é a falta que fez no debate do último mês uma maior atenção a questão estratégica para qualquer mudança. Não assumi devidamente minha própria responsabilidade como participante do GTN. A pandemia afetou também as rotinas pessoais de reflexão, análise e ativismo. A presente crônica é uma contribuição no sentido de chamar a atenção para importantes debates em curso e uma forma de, ao menos, compartilhar algo com a iniciativa do Grupo de Reflexão Estratégica que estamos tentando viabilizar a partir do Ibase.
Termino dizendo que precisamos aguçar nosso olhar para captar os sinais e tendências do que se move no seio das sociedades civis, berço e lugar estratégico do ser cidadania ativa. Muito do que aí acontece fica invisível ou se tenta invisibilizar e, até, silenciar ou reprimir. Quem poderia prever a explosão das lutas antirraciais, nos EUA e no mundo todo? Talvez, em nossas análises e debates deixamos de lado sonhos e esperanças – energia que só brota junto às cidadanias em ação. Mudanças só poderão ser promovidas a partir de nossos territórios, de baixo para cima, alimentando ondas de resistência, insurgência e transformação, que podem se tornar planetárias.
Cândido Grzybowski é sociólogo e presidente do Ibase
[i] O Ibase traduziu e publicou o livro “Journey to Earthland”, de Paul Raskin, no qual é possível se aprofundar na questão dos cenários. Em português o livro recebeu o título “Jornada para a Terralanda”,
[ii] Institute for Policy Stadies. Programo n Ina quality and The Common Good, boletim informativo de 05/06/2020-disponível em