A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) transmite hoje às 19h30 em seu canal YouTube a peça de teatro virtual “Vicente e Antonio – A história de uma amizade: Florestan Fernandes e Antonio Candido”. A encenação é parte da celebração do centenário do sociólogo Florestan Fernandes, que nasceu no dia 22 de julho de 1920.
Escrita pelo dramaturgo Oswaldo Ramos Mendes Filho, “Vicente e Antonio” é sobre a amizade de Fernandes com o também sociólogo e crítico literário Antonio Candido (1918-2017). Uma amizade improvável, pela ordem estabelecida das relações sociais no Brasil. Florestan era filho da imigrante portuguesa Maria Fernandes, uma empregada doméstica, analfabeta, abandonada pelo pai da criança. Ele cresceu em um bairro pobre da periferia de São Paulo, passando por todo tipo de privações, a começar pelo próprio nome.
Florestan foi uma homenagem a um motorista dos patrões de Maria, que por sua vez, dizia ter ganho esse nome de um personagem da ópera Fidélio, de Beethoven, de acordo com o jornalista Florestan Fernandes Júnior. O filho de Florestan conta que os patrões consideravam um nome “muito sofisticado” para o filho de uma empregada e simplesmente escolheram outro nome, Vicente, e assim passaram a chamá-lo. Fernandes foi conhecido como Vicente durante toda a infância e adolescência, até entrar para a faculdade no início da década de 1940.
Já Antonio Candido era filho de um médico e cresceu em meio aos livros e à educação de qualidade no eixo São Paulo-Minas Gerais. “São duas pessoas que no mundo real jamais seriam amigos porque Florestan era filho de mãe solteira, nasceu no Brás, começou a trabalhar cedo de barbeiro e engraxate e Antonio Candido, aos 12 anos, já lia Goethe”, definiu Oswaldo Mendes.
A ideia da peça de teatro foi do jornalista Fernandes Júnior que guardou toda a troca de correspondências do pai com Candido. Em um encontro no início do ano passado, Fernandes Jr. falou das cartas e sugeriu que Mendes escrevesse uma peça de teatro sobre a amizade dos dois. “Antonio Candido e Florestan Fernandes foram amigos a vida toda e a correspondência entre eles começou antes mesmo que se conhecessem pessoalmente”, relata o filho.
Mendes topou o desafio e este ano produziu a peça que, devido à pandemia do coronavírus, não pode estrear ao vivo. Sob a direção de Eduardo Tolentino (primo de Candido), Mendes Filho interpreta o Candido maduro. Caetano O’Maihlan Rodrigues de Oliveira e Silva faz o Candido jovem; Walter Breda de Souza interpreta Fernandes maduro e José Augusto N. Zacché, o Fernandes jovem.
Mendes contou que eles gravaram uma leitura dramática de “Vicente e Antônio” no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação, em São Paulo, de forma a respeitar o distanciamento social. “O texto é carregado de humanismo, uma coisa que comove, você tem vontade de chorar”, comentou Fernandes Jr.
Sociologia
Florestan Fernandes entrou em 1941 para a Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da (FFLCS-USP), cursando sociologia com o primeiro professor desse campo na USP, o francês Roger Bastide (1898-1974). Em 1945 foi admitido como professor, ano em que também se casou com Myriam Rodrigues Fernandes (1926-2008), com quem teve seis filhos.
Além de trabalhos inovadores à época, como a primeira grande pesquisa sobre os índios Tupinambás a partir de relatos dos viajantes estrangeiros (de 1949), se destacou por ter criado as bases da sociologia brasileira, transformando-a em ciência e profissão.
No documentário “Florestan Fernandes – O Mestre”, de Roberto Stefanelli (disponível no YouTube), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi aluno de Fernandes, e o próprio Antonio Candido, mencionam a pesquisa que Fernandes e Bastide conduziram sobre os negros em São Paulo, patrocinada pela Unesco, como um marco.
“Era um diálogo com Gilberto Freyre, até então o grande sociólogo brasileiro, que tinha uma visão de uma escravidão que tinha aspectos até de doçura, e Florestan comprovou que não, que a escravidão teve aspectos de violência e gerou preconceitos”, afirma Cardoso. Antonio Candido complementa: “Ele chamou os negros a participarem do trabalho, então o negro não era mais objeto, mas sujeito da pesquisa.”
Educação
Fernandes foi perseguido pela ditadura civil-militar (1964-1985), que o obrigou a se aposentar compulsoriamente em 1969. Nessa condição, foi convidado a dar aulas na Universidade de Columbia e Yale nos Estados Unidos, e a assumir a cadeira de professor titular da Universidade de Toronto no Canadá. Em 1986, com a abertura, decidiu dedicar-se à política e foi eleito deputado constituinte pelo Partido dos Trabalhadores.
Declaradamente socialista, Florestan Fernandes sempre se identificou mais com causas populares e com a justiça social, mas transitava bem entre seu meio de origem e a elite intelectual que passou a frequentar depois que entrou para a faculdade. Em uma entrevista ao programa Vox Populi, da TV Cultura, em 1984, ele foi questionado sobre até que ponto Vicente havia influenciado suas ideias socialistas. E respondeu: “Vicente nunca teve influência no plano das ideias, mas no plano do caráter, nunca deixei de ser Vicente.”
Na visão da vice-presidente da SBPC, a socióloga Fernanda Sobral, o trabalho de Florestan Fernandes não poderia estar mais atual. Ela, que leu os textos dele desde estudante universitária e acompanhou sua atuação como deputado na Assembleia Constituinte de 1988, afirmou que sua mensagem traz questões muito importantes para os dias de hoje. Em primeiro lugar, afirma, a luta pela democracia e pelos direitos civis, que pautou sua atuação como parlamentar, além da questão indígena e racial que tratou, sobretudo, em suas pesquisas.
Segundo, a importância da educação pública para a cidadania e da autonomia e financiamento ciência básica, que ele sempre defendeu. “Havia um Fórum Nacional de Educação na Constituinte do qual participavam várias entidades civis, inclusive a SBPC, e ele defendeu o nosso slogan nesse fórum que era ‘verbas públicas para escolas públicas”, recorda Sobral.
Florestan Fernandes faleceu em 1995 devido a complicações do fígado. Todo seu acervo de livros, cartas e objetos pessoais está guardado na Universidade Federal de São Carlos.
Florestan Fernandes foi homenageado pela SBPC duas vezes. A primeira foi em 1984, durante a 36ª Reunião Anual realizada na USP, de 4 a 11 de julho. A instituição era presidida à época por Crodowaldo Pavan que, de acordo com Fernandes Jr, era amigo pessoal do sociólogo. A segunda foi in memorian, em 1996, durante a 48ª Reunião Anual que teve lugar no campus da Pontifícia Universidade Católica (PUC), na capital paulista.