Esta estratégia, intensificada desde os anos 90, teve seu ponto de destaque em 2007 com o caso de Mato Grosso do Sul, no qual, em uma ação concertada entre Rede Globo, Ministério Público e Polícia, uma clínica de planejamento familiar foi invadida sob acusação de realizar abortos clandestinos. Ao não encontrarem provas materiais que comprovassem a prática de aborto, foram apreendidas sem ordem judicial 10 mil prontuários médicos, num flagrante desrespeito ao sigilo médico. Milhares de mulheres tiveram seu direito à privacidade violado, com seus nomes publicados no site do tribunal, como “investigadas por aborto”. Do total de acusadas, 70 mulheres foram condenadas (mesmo sem provas) a penas alternativas consideradas pedagógicas – cuidarem de crianças em creches – e forçadas a fazer um acordo para evitar a exposição pública. É acintoso o extremo esforço nesta ação criminalizante em um Estado no qual o acesso a serviços de saúde é insuficiente, principalmente para os casos de aborto previsto em lei, e as taxas de mortalidade e morbidade por aborto inseguro são altas.
No final de 2008, estes mesmos setores liderados por deputados conservadores e reacionários, como o presidente da Frente Parlamentar pela Vida e Contra o Aborto, Luiz Bassuma, criaram uma CPI do Aborto, alegando intenção de investigar o comércio clandestino de medicamentos abortivos. Mas o objetivo real da CPI é intensificar a perseguição e criminalização das mulheres (pretende efetivamente indiciá-las e prendê-las).
O movimento feminista reagiu, criando ainda em 2008 a Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, que envolveu não somente os movimentos de mulheres, mas vastos setores dos movimentos sociais, articulados para denunciar as tentativas de retrocessos aos direitos das mulheres no Congresso Nacional e a onda de criminalização das mulheres na sociedade.
A CPI não foi implementada, mas parlamentares reacionários e machistas seguem se articulando para sua efetivação, indicando nomes para a Comissão – que precisa de 13 titulares para entrar em funcionamento – além de utilizarem instrumentos “paralelos” como propaganda com informações enganosas e negociações para influenciar o processo eleitoral. Paralelamente, projetos de leis retrógrados contrários ao direito ao aborto, propostos entre 2007 e 2009, tramitam no Congresso, sob forte pressão para votação. Entre eles, há um que reivindica a criação de um Estatuto do Nascituro – (que, se aprovado, impedirá a realização de abortos até em casos de estupro), um que defende a obrigatoriedade do cadastramento de gestante, no momento da constatação da gravidez e outro que prevê a criação de casas de apoio à adolescentes grávidas.
No início do ano de 2010 ocorrem novos fatos que se demonstram mais ataques à democracia. Não bastasse a assinatura da Concordata Brasil-Vaticano – que estabelece um estatuto da Igreja Católica no país, desrespeitando a condição laica do Estado – setores da direita, entre eles integrantes da Igreja Católica, ruralistas e defensores da ditadura militar atacaram frontalmente o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3). Dentre os temas criticados por estes setores está o apoio a revisão da legislação punitiva do aborto .
O plano, construído a partir de Conferências públicas, ou seja, da participação popular, foi totalmente desqualificado por estes grupos que querem impor o retrocesso de direitos, a subordinação e controle sobre o corpo e a vida das mulheres. Neste momento ainda estamos estarrecidas com o desfecho do caso MS: em um caso sem precedentes no Brasil, as profissionais que trabalhavam na clínica (3 auxiliares de enfermagem e uma psicóloga) foram a júri popular no início de abril e condenadas sem nenhuma prova, sendo três em regime semi-aberto e uma em regime aberto, com penas entre um e sete anos. Não podemos nos esquecer de Neide Mota, a médica dona da clínica (mulher polêmica e que sempre denunciou a hipocrisia sobre o tema aborto), que também iria a júri popular, contudo foi encontrada morta no final de 2009 – suicídio, de acordo com a investigação policial.
Este caso foi um exemplo do que as forças reacionárias estão orquestrando para desencadear no Brasil mais perseguição e punição para as mulheres que recorrem ao aborto e aquelas que as ajudam. Sabemos que esta criminalização não irá eliminar a prática do aborto. Pelo contrário, as mulheres – fundamentalmente as pobres, jovens e negras, que não têm condições de pagar por um aborto clandestino seguro, continuarão fazendo abortos de forma insegura, colocando suas vidas em risco.
É chocante a capacidade do poder público em ao mesmo tempo continuar criminalizando a prática do aborto e ignorando o grave problema de saúde pública e de violação de direitos humanos das mulheres que é a ocorrência de cerca de 1 milhão de abortos inseguros anualmente no país, dos quais cerca de 250 mil com complicações que levam as mulheres a recorrerem ao SUS, e que fazem do aborto uma das principais causas de mortalidade materna no Brasil.
Do ponto de vista da democracia, o caso do Mato Grosso do Sul coloca o Brasil como um país que sistematicamente viola os direitos das mulheres, não cumpre com tratados e convenções internacionais dos quais é signatário, bem como desrespeita conferências nacionais que resguardam os direitos das mulheres nesta área.
Exigimos dos poderes da República o cumprimento aos Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário, que reconhecem os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como direitos humanos indivisíveis dos demais direitos e recomendam a revisão da legislação punitiva ao aborto no país, e a observância das resoluções das Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres que colocam a discriminalização e a legalização do aborto como um direito a ser assegurado às mulheres.
Apontamos a urgência de que o governo Brasileiro realize, através da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Secretaria de Direitos Humanos e outros competentes, uma campanha educativa que defenda a garantia dos direitos à saúde e autonomia reprodutiva das mulheres. É imprescindível que esta campanha, que contribuiria na resolução do problema do aborto no país, paute-se nos direitos humanos das mulheres, e não em sua criminalização.
Exigimos que o governo, através do Ministério da Saúde e outros competentes, garanta e promova direitos já constituídos às mulheres do país, como o pleno acesso a métodos contraceptivos e efetivo oferecimento serviço de aborto legal – se atendidos, poderiam contribuir na diminuição do número de gravidezes indesejadas e, consequentemente, de abortos clandestinos.
Defendemos o PNDH 3, nas suas resoluções democraticamente decidas através da participação popular, em relação à defesa de revisão da lei punitiva do aborto , a criação da comissão de verdade e justiça, o direito à terra e os direitos das pessoas homossexuais.
Somos contra a colocação da CPI do Aborto em funcionamento, por significar somente reforço à criminalização contra as mulheres e não significar nenhuma perspectiva de resolução do problema do aborto.
Somos contra a aprovação de projetos de lei desrespeitem, ignorem ou visem retroceder os direitos à saúde e autonomia reprodutiva das mulheres.
Ressaltamos nossa defesa ao direito à vida e à saúde das mulheres brasileiras, e nossa posição firmemente contrária ao tratamento punitivo criminal dado à questão do aborto, que não só não é eficaz para diminuir o número de abortos, como também empurra as mulheres para a realizá-lo inseguramente na clandestinidade.
Reafirmamos nosso compromisso com a defesa radical das lutas sociais protagonizadas pelas mulheres e movimentos sociais e nosso compromisso com a construção de um Brasil justo e democrático com igualdade e liberdade para as mulheres.
Nenhuma mulher deve ser presa, maltratada ou humilhada por ter feito aborto ! Dignidade, autonomia, cidadania para as mulheres! Pela não criminalização das mulheres e pela legalização do aborto !
Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto – São Paulo