Criança e Consumo

Por: Frei Betto*, Correio da Cidadania

A população com idade inferior a 12 anos é hipervulnerável à comunicação mercadológica devido ao mimetismo próprio da infância, à falta de discernimento, à afirmação da personalidade, à dificuldade de distinguir desejo e necessidade. ‘Formar cidadãos ou consumistas?’, eis a questão.

Nessa cultura hedonista em que os valores sonegados da subjetividade são pretensamente substituídos pelo valor agregado da posse de bens e serviços, crianças e jovens se vêem ameaçados pela incidência alarmante da obesidade precoce, a violência (inclusive nas escolas), a sexualidade irresponsável, o consumo de drogas, o estresse familiar e a degradação das relações sociais.

Com a laicização crescente da sociedade ocidental que, com razão, repudia o fundamentalismo religioso, a moral perde seu anteparo na vivência da fé; as ideologias altruístas, em crise, cedem lugar ao individualismo egocêntrico; a tecnociência aprimora meios de relacionamento virtual em detrimento da alteridade real e da inter-relação comunitária e coletiva.

Vivemos, como Sócrates, na terceira margem do rio: os deuses do Olimpo já não oferecem parâmetros éticos, e a razão depara-se com a própria insuficiência frente à avassaladora pressão mercantilizadora de todas as dimensões da existência. Onde, nos mais jovens, o idealismo, a abnegação, a ânsia pelo transcendente, o sonho de mudar o mundo?

Na contramão da tendência imperante, o projeto do Instituto Alana disponibiliza instrumentos de apoio e informações sobre direitos do consumidor nas relações de mercado que envolvam crianças e adolescentes. Produz e distribui conhecimento acerca do impacto do consumismo na formação desse público, fomenta a reflexão a respeito da influência da mídia e da comunicação mercadológica na vida, nos hábitos e nos valores de pessoas em idade de formação.

O projeto Criança e Consumo engloba três áreas: jurídico-institucional; comunicação e eventos; pesquisa e educação. A área jurídico-institucional recebe denúncias de práticas de comunicação mercadológica – principalmente publicidade veiculada em TV, internet e revistas – consideradas abusivas. Em contato com as empresas responsáveis pela peça publicitária, faz-se notificação para que cesse a veiculação do apelo comercial.

A área de comunicação e eventos promove debates e seminários para discutir e divulgar essas questões. A de educação e pesquisa estuda de maneira multidisciplinar a temática e divulga no site (http://www.criancaeconsumo.org.br/) bibliografia concernente ao tema.

A partir dessas iniciativas, o projeto contribui para a formação de uma consciência crítica e cidadã sobre os aspectos negativos da mercantilização da infância e da juventude.

No início de março, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) sinalizou que as novas regras sobre publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis, a serem divulgadas, não oferecerão proteção especial ao público infantil.

Isabella Henriques, coordenadora do projeto Criança e Consumo, alertou para as graves conseqüências dessa decisão, que exclui todos os artigos de proteção à infância, como o veto ao uso de desenhos em publicidade, à promoção de alimentos e bebidas nocivas em escolas e de ofertas com brindes. Segundo ela, isso significa o poder público negligenciar os direitos das crianças e adolescentes, declinando-os em favor de interesses privados.

Crianças não podem ser tratadas como consumidoras comuns. Merecem tratamento diferenciado. É preciso levar em conta o trabalho da força-tarefa criada em 2009 pelo Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), voltado à proteção de consumidores hipervulneráveis. Essa força-tarefa conta com a participação do Instituto Alana, do grupo de comunicação social do Ministério Público Federal, da Anvisa e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Induzir a criança ao consumismo precoce é inflar o desejo na direção de ambições desmedidas. E quanto maior o anseio, mais profundo o buraco no coração e, portanto, a frustração e os sintomas depressivos. Perversa intuição profissional faz com que o traficante de drogas conheça bem essa patologia e dela saiba tirar proveito.

* Frei Betto é escritor, assessor de movimentos sociais e membro do conselho do Instituto Alana, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.

Fonte: Observatório do Direito à Comunicação