Neste mês, tive a oportunidade de entrar em contato com o pensamento transcendente de Cora Coralina (1889-1985), ao ser contagiada pela atmosfera da casa onde nasceu e viveu boa parte de sua vida, em Goiás (Velha), GO, à beira do rio Vermelho. Após sua morte, o imóvel se tornou um museu, mantido pela Associação Amigos de Cora Coralina, que tenta manter os traços originais da construção do século XVIII e dos pertences e história da autora. Não é difícil sentir a presença da autora, o que é uma sensação tão envolvente e até posso dizer, transformadora.
Logo na entrada, ouvimos vídeos em que Cora foi entrevistada pela TV Cultura e TV Brasil Central, no limiar de seus 95 anos. Emociona! Lúcida e com um humor perspicaz, ela diz que considerava ter um fogão, um ferro…mordomias e isso para ela era suficiente na sua maturidade…Objetiva, demonstra que a felicidade está muito além dos bens materiais. Sua ligação com a terra, as raízes, o respeito ao outro e sua evolução espiritual é traçada em cada frase.
“…
Ao brincar com as palavras, conta como a Ana Lins dos Guimarães Peixoto (seu nome original) se transformou em Cora… “…Esta cidade era cheia de Ana: a burra, a louca…Eu tive medo que a minha glória literária não fosse com Ana…Achei Coralina e juntei…”
Os seus pensamentos ecoam também em manuscritos originais ou ampliados nas paredes da residência de pau-a-pique, com aquelas portas imensas de madeira e um imenso quintal… Foi nesse espaço, que aos 14 anos começou a escrever e só conseguiu publicar sua primeira obra, aos 76 anos, após ter 6 filhos, 15 netos e 30 bisnetos.
Essa trajetória exigiu determinação da poetisa. Depois de passagens por outras cidades, como São Paulo, retornou a Goiás Velha em 1956, onde começou a atuar como doceira, reconhecida principalmente, pelo doce de laranja…, que era a fonte de sua subsistência. Esse cotidiano também foi impresso em seus escritos, destacando a originalidade de suas palavras.
Algumas frases da poetisa retratam isso – “…Eu estava nos meus doces. Eu me punha nos meus doces, imprimia os tons da minha personalidade no meus doces…” – “…Sou poeta por acaso e doceira por convicção e necessidade…”
As metáforas carregadas de sentido de Cora Coralina, que somente com o curso primário, transpôs todos os redutos da intelectualidade, sendo reconhecida mundialmente, demonstra o quanto o nosso valor está no poder de nossa essência. Arrojada, aprendeu datilografia aos 70 anos. Ela foi atrás dos seus sonhos na melhor idade, sem pestanejar. Eu sinto orgulho por ela ter existido e ser um exemplo para todos nós, que titubeamos tanto a lutar por nossos sonhos.
“Sou mulher como outra qualquer.Venho do século passado e trago comigo todas as idades” (trecho de Cora Coralina, quem é você?) traduz o pensamento maduro, que perpetua o pensamento da autora, que foi a primeira mulher no Brasil a receber o Troféu Juca Pato, em 1984, da União Brasileira de Escritores; quebrou dogmas em um reduto até então predominantemente masculino e constituído dos ‘homens das letras’.
Para quem não pode presencialmente visitar o museu, desde o ano passado, tem a possibilidade de acessar o espaço virtualmente pelo site http://www.eravirtual.org/cora_br/. E informações sobre a casa de cultura são encontradas no site www.casadecoracoralina.com.br. Vale a pena ter essa experiência para se descontaminar das redomas das palavras difíceis, que não conseguem atingir nossa sensibilidade e propiciar transformações.
E como Cora Coralina dizia em seu poema Aninha e suas pedras –
“…Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema…”