Contos da Cavalgada

Quando tenho em mãos um novo livro para ler, fico contente pela perspectiva de um novo enlevo literário, até porque, em tese, estaremos entrando na alma-água do autor/criador, com as suas pontuações íntimas, suas pontes letrais, suas correntezas que, até, no muito além de si ramificam para uma janela da vida (uma janela para o alto), abrindo, portanto, páginas de rosto com o tempero da paleta silencial a descrever rumos e prosopopéias.

Quando recebo o livro de um conterrâneo de Itararé, minha terra-mãe, fico ainda mais alumbrado, sondando o devir naquela obra de estréia de uma nova andorinha sem breque, a botar para fora causos e acontecências, falas típicas e construções, e aí fico me preparando para a doce emoção do forfé que é ler com contenteza e prazeirança nativa, por assim dizer.

Fanático por Itararé é isso. E Itararé tem dessas coisas mesmo: produz e consome cultura própria. De pinturas e marchas-rancho de carnaval, de poemas a baladas rueiras, de pedagogos a juristas, de ficções a histórias que o povo conta, de romances a memórias e muito humor no atacado. E quem conta causo de dia ganha rabo de cotia, diz a crendice popular. Com o livro “Contos da Cavalgada” do Professor e Escritor Gustavo Ferreira Correa não poderia ser diferente. Já pensou?

Escrever é sim, dar testemunho, talvez pôr a alma no cuorador das idéias recorrentes, recompor situações e conflitos, mas, antes de tudo, escrever é mostrar um novo olhar sobre a vida, essa dura vida de perdas e ganhos, de ausências e curtumes. Ai as aquarelas da vida, os calvários da vida!. Pois “Contos da Cavalgada” é isso: o pé na terra – caminhaduras e romarias, suas sabenças e alegranças. O autor tomando o leitor pela mão, levando-o a cavalgar tópicos frasais, diálogos, causos dentro da história, por aí: a viagem dentro da obra, o imaginário sensível provocado. Tudo numa narrativa gostosa a fluir fácil, serena, como se você mesmo estivesse ali, de verdade, inteirinho e entregue dentro das contações ao pé do fogo, lustre-luar de Itararé, toldo estrelado do céu jade de nosso rincão amado, beira de rio, entre a bulha da saparia, ouvindo Gustavo Ferreira Correa lastrando-se de mente e cuia e lábia e mãos. E alta criatividade, claro.

Gustavo escreve bem e bonito. E com uma simplicidade preciosa, muito bem norteada naturalmente de uma singela pureza essencial. E o essencial é invisível aos olhos, disse o poeta. Há olhos de ver e olhos de sentir. E escrever encerra um mundo no Ser por inteiro. Gustavo deve ser um ótimo professor de literatura. É um ótimo escritor muito além até de sua já notória postura algo zen. Enquanto o leio, leio entrelinhas, e vejo (leio) – sinto-o – depondo, não só num saudosismo-saudade, mas um refazer a vida pelo seu prisma de artista sensível que é. Historiar implica que o criador assuma risco de expor-se, entre idéias, sentimentos, olhares especiais, purgações íntimas, acerca do entorno do próprio projeto-livro. Foi assim com Sócrates, Galileu, Jean-Paul Sarte, Freud, Jorge Luis Borges e outros. A palavra “história” de origem grega quer dizer exatamente “investigação”, “informação”.

Com o depuro técnico-narrativo de Gustavo, vê-se aí (lê-se aí) a escrita se apresentando madura, segura de si, lógico-sequencial a costurar elos, entrelaçar o conjunto do livro que diz de contos, mas, romanceia entrecontos. E os causos vão pontuando as partes, seguros, personalizados, hilários às vezes, entre mitos e crendices, interessantes, cativadores. Gustavo conhece do oficio e se acrescenta. Escrever corresponde ao impulso do espírito humano para enlivrar-se, livrando-se de algo que seu ser pontua (e despoja), necessitando de visão social para configurar pari-passu o livro enquanto obra literária de norma culta.

Ao escrever e resgatar causos, como um ouvidor de um tempo chamado longe, Gustavo Ferreira Corrêa ilumina as contações; feito um lampião aladim da mágica mão, nas andanças pelo palavreado todo. Os personagens vão se delineando nas amarras construídas com esmero, a estrada da caminhação se abre e filtra paragens, e as mentes acompanham as leituras, quando então vamos juntos com o autor entre os devotos e os fantasmas.

Uma precisão embonitada a de retratar como se em sépia os seres reais, histórias que se aglutinam e os desfechos que falam da vida sábia do povo. Contos da Cavalgada é isso: mais um trabalho de quilate para a BRITA-Biblioteca Real de Itararé. E Gustavo pelo jeito não vai ficar só nisso. Sorte nossa. Não é todo dia que se lê a alma pura de um povo interiorano num livro com perfeita sintonia letral.

Captar o sentido essencial da prosa, pondo sensibilidade no observar/ouvir. Estilo límpido, cristalino, esse é o estilo de Gustavo. Gustavo escreve como quem “alembra” a vida (alumbra?) na sua pureza mais simples (antiga e verdadeira?); a tez chã dos caminhos, gente errante e maravilhosa na esperança com medos, peregrinações. Alumbramentos. A evocação do passado feito o “trazer-de-volta”, não é apenas o saudosismo, mas uma re-celebração de um “outro tempo”, de um espaço geográfico, de um povo, de um lugar; mítico e primordial, exterior à nossa temporalidade. Isso quer dizer alguma coisa?

Itararé é resgatada, a história se recupera, e temos nas mãos o lastro-lavra de uma religiosidade naquilo que recompõe, com reflexos, acentos sociais e humanos, trajetos e perspectivas. O pensamento vê o mundo melhor do que os olhos, disse Bartolomeu Campos de Queirós. É como se Gustavo Correa dissesse para alguém (no tácito que se compreende?) – mistérios, sonhos, aparições; a distância de uma amizade mal amalgamada?) – tipo

“Estou aqui te continuando…estou aqui vivo/E estás vivo em mim…a vida (como ela é, afinal, dura e triste, amarga…) não terminou na tua história…” Continuo-a aqui, nas minhas singelas contações…

Um livro, como páginas de rosto (páginas da vida), levando a gente para cavalgar visões e estrelamentos. Moendas?

Escrever é permanecer em vigília. Sim, irmãos, em vigília por aqueles que nos deixaram…mas, ninguém, nunca, tirará quem amamos para sempre de nós.

Escrever e criar é uma forma de dar testemunho de resistência, sensibilidade e luta. Escrever é dar voz e sentido aos vestígios de ausências. A escrita afaga a alma de quem cria, recriando o próprio mundo interior.

– 0- BOX: Contos da Cavalgada Mistérios, Sonhos e Aparições Edição do Autor/Diagramação e Impressão Tipografia Itararé, Ano 2006 Gustavo Ferreira Corrêa Professor da Rede Pública de Ensino, Itararé-SP E-mail do autor: gfcferreira@bol.com.br www.contosdacavalgada.blogspot.com

Resenha: Silas Correa Leite E-mail: poesilas@terra.com.br Site: www.itarare.com.br/silas.htm Autor de Porta-Lapsos, Poemas

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