PEC 241: o susto, a comunicação e a democracia desejada

Tenho o péssimo hábito de andar pelas ruas olhando para o celular. Dias desses, a caminho do trabalho, levei um susto. Um colega ao me perceber absorta me pregou uma peça. Chegou de surpresa como se fosse um assalto. Foi só um sustinho. Susto mesmo foi o que veio em seguida.

Brincadeira feita, ele quis saber o que eu estava vendo no celular. Expliquei que era um vídeo sobre a PEC 241. Desses filmes que movimentos sociais produzem por conta e risco e que estão dando baile no jornalismo tupiniquim. Frente ao silêncio do colega em relação à informação de que era um vídeo sobre política e não sobre gatinhos ou celebridades, pergunto:

– O que você acha da PEC 241?
– Acho certíssimo. Tem que acabar com essa palhaçada. Esse povo saiu esbanjando dinheiro, roubando tudo… Quebraram o país. Tem que acabar mesmo com essa farra.

Pronto, esbugalhei os olhos. O susto estava dado. Sempre imaginei que as pessoas não soubessem direito o que é a tal Proposta de Emenda à Constituição que congela gastos públicos pelos próximos 20 anos. Mas não tinha caído a ficha de que a martelada narrativa de combate à corrupção viria tanto a calhar para garantir o clima favorável para a aprovação do pacote de maldades. Aqui vale um parêntese: sou jornalista, trabalho em uma empresa pública de comunicação, a EBC, que mantém várias emissoras de rádio, duas de televisão e duas agências de notícias e o colega que me pregou a peça é motorista nessa empresa. Deveríamos ser, ambos, considerados privilegiados no acesso à informação. Não somos. Dividimos o mesmo espaço e mal sabemos nossos nomes.

Mas não me dou por vencida. Volto com outra pergunta:

– Sim, mas o que você sabe sobre a PEC 241?
– Não é aquela que congela todos os gastos do governo?
Respondo:
– TODOS, não.
– Não?!

Não tinha espelho por perto, mas acho que essa hora meus olhos brilharam. Lá estava a oportunidade de compartilhar informação. Respondi:

– Nem tudo. Não congela os gastos para pagar os juros da dívida pública. Sabe dinheiro de banqueiro? Pois é… Congela saúde, educação, assistência social, mas do banqueiro continua liberado para gastar…

Repito a comparação que li no twitter dias atrás:

– Sabe a história da família endividada? A família Brasil corta o dinheiro da escola do filho e do remédio da avó, mas o pai continua bebendo uísque.

Alguns segundos de silêncio vem acompanhados de uma pergunta:

– Não sabia… E por que ninguém explica isso?

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Ilustração: Tiago Silva/Humor Político

A pergunta do colega devolve a batata quente para minhas mãos. Uma enxurrada de perguntas me vem à cabeça. Nem me lembro se deixei que algumas escapulissem pela boca.

1) Por que vídeos, memes e gifs que entopem minha timeline nem chegam perto da timeline de uma pessoa que divide o mesmo espaço de trabalho que o meu? Tenho medo da resposta. Mas é nessas horas que percebo o quanto as redes sociais estão se transformando em salas de espelho: conversamos apenas entre nós, todos os que pensamos igual. Medo que essa sociedade da informação esteja se transformando em uma gigantesca sociedade de guetos. Também me faz pensar nos inúmeros projetos de lei que tramitam nesse momento no Congresso Nacional e que querem restringir ainda mais as pequenas brechas de comunicação que a internet tem proporcionado.

2) Será que ele não sabe que o jornal que ele acompanha todos os dias pela Rede Globo e suas irmãs carecem da publicidade que é paga pelos anunciantes? Será que ele não sabe que bancos são anunciantes importantes nesse tabuleiro da comunicação? Será que ele não sabe que as empresas de comunicação são empresas e, como tais, lucro é mais importante uqe informação? Que é essa estrutura – que precisa lucrar – que determina o que é bom – para ela – vir a público e, principalmente, o que é bom manter na surdina? E, sobretudo, que no Brasil essa estrutura comunicacional é controlada por meia dúzia de famílias que, tal como os banqueiros, conseguem lucrar tanto mais quando os cintos da população são arrochados? A certeza de que a resposta a todas essas perguntas é um sonoro “Não”, não dá medo, mas atinge o fígado em cheio. A estrutura que interdita o debate sobre a PEC 241, sobre a ocupação das escolas, sobre a reforma trabalhista, o fim do direito à greve e todas as outras grandes mudanças estruturais que a sociedade brasileira assiste atônita e sem se dar conta exatamente do que está acontecendo é a mesma que sempre interditou o debate sobre a democratização da comunicação. Todos os silêncios anteriores são decorrência desse último. A estrutura comunicacional brasileira é doente, tá na UTI e leva a sociedade brasileira junto com ela ladeira abaixo. Uma estrutura que até poderia ter sido minimamente alterada pouco tempo atrás, mas que nem mesmo o governo do operário não ousou tocar.

3) Será que ele sabe que deveria me dar uma bronca por eu nunca ter conseguido explicar o que acabara de explicar numa conversa nas matérias que escrevo como jornalista para a empresa que é paga com o dinheiro dele? Acho que tal pensamento nem passou pela cabeça dele… Mas martela na minha. A EBC, que foi criada para ser uma emissora pública – e não do governo – sempre enfrentou dificuldades para conseguir se comunicar. Um desafio que passa por questões quase filosóficas sobre o que é a comunicação pública, qual seu papel, quais recursos pode lançar mão e quais seus limites. Mas o que era então só questão de descobrir o caminho a trilhar, deixou de ser só um problema de aprendizado desde que Michel Temer sentou na cadeira da Presidência da República, primeiro em provisório, agora em definitivo. O fim do Conselho Curador da EBC, a maior instância de gestão de conteúdo da empresa e que contava com a participação majoritária da sociedade civil, é o maior símbolo do cavalo de pau no projeto. Porque uma empresa subordinada política e economicamente ao mesmo governo que está propondo a PEC 241 vai se esforçar para explicar que a proposta custa caro ao andar de baixo da população? A resposta a essa pergunta depende muito do tipo de pressão que a sociedade fará para que a EBC se mantenha pública. Sim, desejei o puxão de orelha do meu colega de trabalho.

Bem… Não recebi bronca nenhuma. No final, quando entrei para a redação e ele seguiu para a sala dos motoristas, a única coisa que me pediu foi que eu passasse o vídeo que estava vendo na hora do susto.

O vídeo é esse aqui, produzido pela turma da Auditoria Cidadã e que trata de um assunto pouco abordado nos vários debates sobre a PEC que congela os gastos sociais: a venda de debêntures das estatais não dependentes:

PS. quando terminava de escrever esse texto descobri que a PEC 241 depois de ter sido aprovada em dois turnos pela Câmara dos Deputados foi enviada ao Senado Federal, onde também precisa ser votada em dois turnos para entrar em vigor. Lá foi batizada como PEC 55. E aí está mais um desafio para a comunicação. Nem conseguimos entender e explicar direito o que é o monstro e ele já mudou de nome.

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