Zelaya voltará ao poder?

Por Yuri Martins Fontes*

Embora o governo brasileiro esteja dando substancial apoio a Zelaya – em uma histórica tomada de posição por parte do até então neutro (leia-se “nulo”) Itamaraty – desde a repentina volta do presidente eleito à Tegucigalpa, ainda assim, no tabuleiro geopolítico regional, o golpe de Estado não deverá ser revertido, a não ser através de uma atitude efetiva por parte do governo dos EUA. No entanto, até agora o esforço de Obama para que o Zelaya seja restituído à presidência, parece não passar mesmo de retórica – de modo a esfriar os ânimos legitimistas que exigem a volta do líder eleito democraticamente. Passado mais de cem dias desde o golpe de Estado civil-militar, os EUA, históricos tutores dos oligarcas desse pequeno país, continuam mantendo uma postura obscura, segundo o vago discurso de que “há de se ter calma” – sem que tenham sido tomadas quaisquer medidas mais enérgicas. Deste modo, os golpistas, embora sofrendo alguma pressão internacional, diante da postura “banho-maria” do influente vizinho do Norte, não se mostraram desencorajados a reverter o cenário, permitindo o regresso à tão pregada ordem democrática.

Dado o secular domínio estadunidense em sua política nacional – sempre em aliança com o monopólio governista e midiático das elites locais -, em Honduras não se desenvolveu um movimento social organizado. Nos anos 1970 e 1980, enquanto seus vizinhos disputavam em armas o poder hegemônico exercido pelos EUA, o governo hondurenho vendia o país, cedendo seu território como base militar à ingerência regional estadunidense. Após tanto tempo de subjugo e pobreza (a nação é a segunda mais pobre da América, atrás apenas do conturbado Haiti), a situação lastimável parece ter despertado Zelaya – membro da oligarquia rural eleito por uma aliança de centro-direita, pelo poderoso Partido Liberal -, movendo-o a exercer um papel que não lhe estava previsto: no meio de seu mandato (no ano de 2007) ele passou a implantar políticas reformistas de esquerda.

Golpe de Estado

O golpe que derrubou Zelaya foi levado a cabo em 28 de junho, após crise política que opôs o presidente ao Congresso, à Corte de Justiça e às Forças Armadas do país, nas semanas precedentes. Sob ordens dos Poderes Judiciário e Legislativo, o Exército invadiu a residência do presidente, em Tegucigalpa, e o sequestrou, levando-o, ainda de pijamas, para base aérea nos arredores da capital, donde seria enviado a São José, na vizinha Costa Rica.
Imediatamente, o então presidente do Congresso, Roberto Micheletti – também do Partido Liberal – anunciou que Zelaya havia renunciado (mais tarde, ficou claro que a assinatura na suposta carta de renúncia era falsa). Na tarde do mesmo dia, o Congresso elegeu Micheletti para presidir a nação até as eleições, programadas para o final de novembro.

Zelaya, já na Costa Rica, passou a denunciar sua deposição, afirmando que nunca renunciara. “O que houve foi um crime contra a democracia, uma conspiração político-militar de uma elite que teme consultar o povo!”, proclamou. Após a farsa da renúncia se tornar pública, a Corte Suprema hondurenha apresentou nova versão: declarou ter ordenado ao Exército a deposição do presidente, devido a supostos gestos inconstitucionais.

Zelaya foi eleito presidente em 2005 para um mandato de quatro anos, não-renovável. Inicialmente apoiou os tratados de livre comércio com os EUA. Contudo, a partir de 2007 – quando a vizinha Nicarágua consegue democraticamente uma guinada à esquerda, obtendo então amplos benefícios e apoio por parte da Venezuela – ele passaria a se interessar mais por esse movimento “autonomista” de união latino-americana, alinhando-se com Hugo Chávez, à revelia da anterior dependência estadunidense.

De início, o Partido Liberal ajudou a aprovar no Congresso o ingresso na Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), visto os grandes benefícios imediatos que advieram deste gesto: substancial ajuda econômica , compra de petróleo venezuelano em condições facilitadas e doação de tratores. Rapidamente, no entanto, a nova orientação passou a desagradar as classes dominantes do país, em desacordo com a implantação de programas sociais, a paralisação das privatizações e o aumento do salário mínimo acima da inflação – o que contribuiu para elevar a aprovação de Zelaya entre os estratos mais pobres (mais da metade da população de 8 milhões de pessoas vive com renda abaixo do nível de pobreza e um terço dos hondurenhos está desempregado).

Zelaya passou então a ser pressionado. Em 2008, sofreu críticas da Organização dos Estados Americanos (OEA) por impor às emissoras de rádio e televisão a obrigatoriedade de transmitir programação do governo. A imprensa comercial local – e internacional – difundiu noticiários acusando seu governo de populismo econômico e de não ter atuado com firmeza junto à segurança pública (são grandes os índices de criminalidade no miserável país), bem como diante de escândalos de corrupção (herança da estrutura política hondurenha subjugada por multinacionais).

O agravamento da crise se deu quando o presidente resolveu partir para o enfrentamento político, manifestando sua intenção de realizar uma consulta pública (no dia 28 de junho, mesma data do golpe) em que os eleitores pudessem dar sua opinião acerca da realização ou não de um referendo para a convocação de uma Assembleia Constituinte. Os opositores de Zelaya acusaram-no de pretender desse modo abrir caminho para sua reeleição – o que é proibido pela Carta. O artigo 239 da Constituição de Honduras prega que “aquele que infringir esta disposição [proibitória de um segundo mandato], ou que proponha sua reforma, assim como aqueles que o apoiem direta ou indiretamente, cessarão de imediato o desempenho de seus respectivos cargos”. Assim, para a oposição, Zelaya, ao propor a consulta, já estaria “automaticamente” fora do poder – como se o fato de se querer escutar o desejo popular acerca de haver ou não um referendo, significasse implicitamente buscar a reeleição!

A proposta da consulta sofreu forte oposição do Congresso, que chegou a anunciar uma investigação acerca da “conduta e capacidade de governar do presidente” – gesto que Zelaya qualificou de “arbitrário e improcedente”. Dias antes do golpe, para se certificar de que o temível referendo não pudesse suceder a uma possível consulta, os parlamentares aprovaram lei proibindo referendos e plebiscitos a menos de seis meses de uma eleição.
Já segundo a interpretação dos apoiadores de Zelaya, ele não infringiu a Constituição, pois propôs apenas uma consulta popular, cujo resultado não está vinculado diretamente à realização do referendo – já que este deveria passar ainda por aprovação no Congresso para ser realizado.

De todo modo, mesmo podendo haver uma possível dubiedade no texto da Constituição, é curioso que – em se tratando de um ato constitucional, como o afirma os golpistas – tenha sido necessário raptar o presidente e conduzi-lo à força para fora do país. Isto para não mencionar o tal documento de renúncia forjado que foi apresentado pelo Congresso. Por que precisa renunciar e ser exilado quem já está automaticamente fora do poder?
Como o Exército é responsável pela segurança e logística das eleições, Zelaya ordenou aos militares que cumprissem seu papel na consulta marcada para 28 de junho. O chefe do comando militar, general Romeo Vásquez, recusou-se a obedecê-lo, alegando que a Suprema Corte declarara a consulta ilegal. O presidente então removeu o militar de seu cargo, convocando uma marcha popular para retomar o material eleitoral detido pela polícia nacional – o que desencadearia o golpe.

A Organização das Nações Unidas (ONU) condenou o golpe por unanimidade, pedindo o retorno “imediato e incondicional” do presidente deposto. No início de julho também a OEA suspendeu Honduras. A União Europeia, por seu lado, cancelou o envio de 92 milhões de dólares, previstos em acordo de cooperação.
Diante da repercussão negativa internacional – que acabou por animar, inicialmente, os protestos populares – o Parlamento hondurenho aprovou um decreto que na prática estabeleceu o Estado de Sítio no país. Em entrevista ao jornal Brasil de Fato, Francisco Ríos, membro do Bloque Popular, organização que reúne os grupos de esquerda do país, declarou que “devido à pressão internacional”, o governo golpista tem “evitado demonstrações de força”. “Não há tanques nas ruas, mas os mecanismos de repressão estão prontos para serem ativados, caso seja necessário”. Ainda assim, de acordo com o Comitê de Familiares de Detidos e Desaparecidos, até meados de julho já haviam sido feitas mais de 1,5 mil detenções, sendo que ao menos três manifestantes foram assassinados.


Mediação ou apoio ao golpe?

A postura do governo de Micheletti pode ser explicada pela frouxa posição dos EUA – que, no tabuleiro regional, é o que realmente importa. Até agora a crise vem sendo tratada com calculada indiferença pelo governo de Obama. Os discursos dúbios da secretária de Estado, Hillary Clinton, não bastaram para intimidar os golpistas militares – formados na famosa Escola das Américas, nos EUA – garantidores do poder da pequenina elite local. Pouco após o golpe, o governo estadunidense indicou para mediar a questão Óscar Arias, presidente da Costa Rica – país sem exército, cuja segurança nacional é garantida por Washington.

O costarriquenho tem um currículo no mínimo duvidoso para um mediador. Entre 1986 e 1990, ele presidiu pela primeira vez seu país, época em que participou ativamente junto às forças dos EUA no que foi vendido eufemisticamente como sendo um empenho para a “restituição da normalidade” na região. Na prática tal aliança – assim como ocorria também em Honduras – tratou de conter o avanço da Revolução Sandinista na Nicarágua. Em 1987, o alinhamento com as políticas de “guerra de baixa intensidade” de Ronald Reagan contra os sandinistas – que terminaria por gerar acordo em que El Salvador, Guatemala, Costa Rica, Honduras e Panamá pressionaram e cercaram a Nicarágua -, valeria a Arias o prêmio Nobel da Paz.
Em 2006, ele voltou ao poder, segundo uma plataforma estritamente neoliberal – como políticas de privatização e atentados contra os direitos trabalhistas, ambientais e mesmo contra a liberdade de expressão. Com semelhante currículo, seria realmente espantoso que Arias pudesse desempenhar um papel efetivo de negociador, facilitando o retorno do poder hondurenho à legitimidade das urnas.
Até que ponto a neutralidade de Obama se deve apenas à prudência? Os EUA mantém em Honduras uma base militar com centenas de soldados; a CIA atua na vida política hondurenha abertamente há décadas. Juan Barahona, também do Bloque Popular, vê “um apoio discreto por parte dos EUA”, que publicamente se dizem contra o golpe, mas com a indicação de Arias, na prática deram “força aos seus executores”.

Um mês após ser deposto, após várias promessas de que voltaria ao país, Zelaya por fim desafiou os golpistas – ainda que apenas timidamente e por alguns minutos. Num posto fronteiriço, a partir da Costa Rica, ele adentrou alguns metros em seu país, cercado por uma centena de jornalistas da imprensa internacional que o acompanhava. Fortemente armados, soldados hondurenhos bloquearam os acessos à fronteira, impedindo que várias centenas de seguidores do presidente acudissem ao local. Apesar disso alguns conseguiram vencer os obstáculos caminhando por muitas horas por entre montanhas.

Há um mês, enfim Zelaya teve iniciativa mais ousada, deixando o discurso e partindo à prática. Voltou secretamente a Tegucigalpa, e refugiou-se na embaixada brasileira – para tanto viajou por 2 dias com a ajuda de 4 homens, por terra, cruzando montanhas e rios até chegar à capital. Na medida em que a notícia se espalhou, a populacão saiu às ruas e ao encontro do presidente. A Guarda Nacional então cercou a embaixada para conter a manifestacão. No dia seguinte, o governo golpista de Michelleti mandou fechar os aeroportos do país, além de ter cortado a água e a energia da embaixada do Brasil, impedindo mesmo a entrada de alimentos. Há relatos de quase uma dezena de mortos, além de vários feridos e presos.

De todo modo, ao que parece, a atitude corajosa do neo-esquerdista Zelaya tardou muito a ocorrer. As eleições de fim de novembro já se aproximam e já houve tempo o bastante para que os golpistas – aliados à imprensa empresarial do país – tenham podido “reeducar” o povo hondurenho. Ainda que, de algum modo, consiga voltar à presidência, provavelmente sua força já estará bastante abalada. Sua destituição, de qualquer forma, contribui para expor mais uma vez o quão rasa é a democracia capitalista – em especial na paupérrima Honduras, termo que, ironicamente, significa profundezas.

*[correspondente da revista Retrato do Brasil]