Arte de Rafael Corrêa sobre foto de Jefferson Pinheiro.
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Sentadas na grama, à beira da estrada, em frente ao assentamento Conquista do Chão, em Candiota/RS, no final da tarde de 09 de março, elas bebem cachaça no bico (escondido das crianças), contam histórias, riem. Enquanto o amarelo-luz vai esmaecendo, e um vento quase frio embaralha os cabelos. À noite, se encantam com um céu de lua e estrela. Elas – que conhecem a exclusão, a exploração, a opressão e a repressão, e tomaram consciência de que juntas podem mudar algumas coisas, e de que muitas coisas precisam mudar – têm os olhos no futuro e uma luta no presente. São as mulheres da Via Campesina. São fortes, apaixonantes.
Do outro lado da rua de terra fica a Fazenda Ana Paula, propriedade de 18 mil hectares da Votorantim Celulose, 7.500 deles uma imensa lavoura de árvores, que os ambientalistas chamam de deserto verde. Foi ocupada pela manhã, quando cerca de 700 mulheres cortaram centenas de eucaliptos pra denunciar que a monocultura na região resseca os mananciais de água, ameaça a biodiversidade, degrada o meio ambiente, expulsa o trabalhador do campo e gera pobreza.
Domingo, dia 08, por volta das 19h, saímos de Porto Alegre debaixo de chuva, um grupo de jornalistas da mídia alternativa, seguindo um carro com integrantes do Movimento. Não sabíamos pra onde. Nessas ações, quanto menos pessoas souberem o destino é melhor, para que a informação não vaze.
Joana diz que a ação foi planejada por meses, e um vacilo agora poderia comprometer tudo. Viajamos a noite toda, parando às vezes para que elas monitorassem a estrada, atentas a alguma movimentação da polícia, esperando parte do comboio, que vem de diversas regiões do Estado. É importante que todos os ônibus cheguem ao local de encontro no mesmo horário, porque um veículo parado por horas junto à estrada pode levantar suspeita. Ficamos lá alguns minutos. Minutos longos. A tensão cresce. Dois carros passam, observam. Seguem. Se avisarem a polícia, se algo der errado nesse momento, a mensagem preparada para o amanhecer será frustrada. Ansiedade latente. Atrás de uma curva crescem as luzes. Expectativa. Murmúrios. Silêncio…
“São elas!”, alguém grita. São as mulheres da Via Campesina, as companheiras, as lutadoras pelas quais se esperava.
Até o local onde a cerca será cortada são mais 40 quilômetros de ruas de areia bem esburacadas. Luiza está a alguns dias na região preparando os detalhes. É ela que ensina os caminhos a tomar no escuro. Antes do dia acordar, param para que as foices e os facões, escondidos na grama, sejam carregados. O rosto junto à janela de vidro, o olhar pra além das cercas desse lugar de conflito e injustiça enxerga tudo o que virá depois. As notícias, os interrogatórios, julgamentos… Conseqüências. Mas há convicção de que é preciso fazer. Enfrentar.
O comboio manobra, volta um trecho, acha o ponto. A foice contra o caule é um símbolo, um recado, uma denúncia, um grito. Embaixo dos eucaliptos nada floresce. É tudo seco, árido, estéril. Seriam cortados mesmo pelas máquinas. Na hora do lucro, do muito lucro. Na hora em que as empresas ficam com tudo e a terra fica vazia, usada no limite. E o homem e a mulher já terão ido embora: favela, cidade, desemprego, informalidade, miséria, problema.
Por isso elas vibram com cada eucalipto que vem abaixo. Comemoram. Fazem festa. Nas mãos vão ficando os calos. No rosto vai entrando um sorriso. Sorriem com os olhos atrás dos lenços. Era pra terem derrubado mais. Mas ano passado a luta foi dura. A polícia bateu sem piedade. A lembrança incomoda. Por aqui já está bom. Hora da marcha.
A área do latifúndio circunda 53 assentamentos, onde 1.800 famílias de agricultores produzem para a subsistência e o mercado local. Além de alterar o bioma do pampa, de prejudicar o meio ambiente, a Votorantim demitiu, em nome da crise financeira, trabalhadores urbanos temporários que não servem mais aos seus negócios.
“Como é bom o cheiro de eucalipto cortado ao amanhecer”, diz o câmera extasiado, enquanto colhe as imagens e respira no ar úmido do suor feminino. Elas marcham sobre as pedras do chão, entre o arame farpado e o mar de eucalipto. “É por amor a esta pátria, Brasil, que a gente segue em fileira”, repetem orgulhosas. São de todas as cores, carregam muitas dores, têm todas as idades. Não vão à academia, nem tem a pele protegida por cremes. Não vestem vestidos, nem saltos, não usam batom, não pintam o cabelo e nem por isso são menos lindas, delicadas, sedutoras, femininas. “Não há socialismo sem feminismo”, ensinam.
E educam seus filhos pra que entendam essa luta, dentro das lutas. Elas os educam na beira das estradas, sob os barracos de lona, sob o sol e com os pés na terra. Os fazem experimentar a rua, plantar o que será comida, sentir o cheiro da chuva, estudar a vida que levam e a que querem poder levar, viver em comunidade, viver em solidariedade, somar força e dividir conquista. E fazem isso com cuidado, preservando a fantasia e a brincadeira. Porque quem sonha também ensina a sonhar.
A polícia chega pelos dois lados de quem marcha, atravessa a fileira dos que caminham. Ostenta o aparato militar. Fazem cara de mau ou transformaram mesmo sua fisionomia? Intimidam. Alguns poucos destoam. A farda não consegue desumanizar a todos. Consegue?
Perdi a conta dos quilômetros sob o sol. Foram muitos. Umas ajudam a carregar os filhos das outras, quando os braços já não agüentam esses quilômetros. Paramos duas ou três vezes pra beber e comer pão com banana, dividir os alimentos das mochilas. Se reúnem em grupos, debatem, montam estratégias, tomam decisões. Até chegar a frente de uma das entradas do assentamento Conquista do Chão e da Fazenda Ana Paula. Então descarregar as trouxas, as madeiras e as lonas. Foi rápido a montagem para o acampamento improvisado. Ali passamos a noite. Mas nem todos dormiram.
A cada cinco ou dez minutos um dos carros da polícia cruza o acampamento, lentamente. Toda a noite, toda a madrugada. Era possível ver a estrada bloqueada nos dois sentidos. Quem fosse assentado ou suspeito de ser apoiador dos sem terra não passava. Outros mais ricos menos “perigosos” podiam. “O soldado também é uma vítima do sistema”, pensam as acampadas. Um ou outro soldado também entende que a reforma agrária é uma reivindicação justa. Essa compreensão, porém, não muda o que cada um desempenha na realidade que os coloca frente a frente.
Marisa conta que algumas mulheres foram dormir calçadas. “É pra poderem levantar correndo, caso os policiais ataquem durante a noite”, explica. Tiros de borracha feriram algumas manifestantes no 08 de março do ano passado (2008). E apesar da coragem que as trouxe até aqui, algumas receiam ficar na mira dessas armas novamente. As acampadas se revezam na vigília, que observa o movimento dos carros da Brigada Militar. É delas a tarefa de avisar às outras numa ação da polícia.
E esperam o momento em que a polícia virá. Serão menos violentos dessa vez? Vem também a cavalaria? Vão atirar com as balas de borracha que queimam a pele e machucam a carne? Vão nos prender, depois de nos identificar? Perguntas, pensamentos que atravessam a noite e amanhecem junto com cada uma. Estão pressionadas, embora nem todas demonstrem. Mas sabem o que querem e pra onde vão.
Foi depois do café, quando as crianças brincavam de ciranda, se divertiam num trenzinho humano que as educadoras faziam circular pelo acampamento. Carros, caminhonetes, caminhões, ônibus, helicóptero. No mínimo uma centena de policiais, cavalos, cães, tropa do Batalhão de Operações Especiais (BOE), escudos do “Choque”, capacetes, porretes, coturnos, bombas, pistolas, escopetas. Contra as mulheres de lenço, boné, escudos feitos de madeira barata (que servem mais como cartazes para suas mensagens), facões e foices, usadas para cortar os eucaliptos e montar os barracos. E crianças.
Os policias com seus cães de guarda. Os cães de guarda dos policiais as cercam, obrigam a se desfazer de suas ferramentas, de seus lenços e de seus escudos. Tudo vai para dentro do caminhão de “Carga Viva” da Brigada. Com os escudos, vão sendo apreendidas as mensagens que eles carregam. Cristiano, um oficial, joga pra dentro do caminhão o recado: “Lutamos contra o atual modelo do Governo”. Um protesto que virará lixo no lixo do governo, ou prova do governo contra as mulheres que ousam enfrentá-lo.
Cercadas, formam uma massa humana, um corpo só, uma única voz de 700 vozes. Cantam, batem palmas, enquanto seus barracos vão sendo revistados e destruídos pelas Forças de “Segurança”. Nesse momento não há medo. Olhar altivo, dão as mãos, juntam as forças, jogam pra cima em palavras de ordem: “Pátria livre, venceremos!”.
É possível. As 370 mil famílias assentadas por meio das ocupações de terra nos últimos 25 anos provam isso. Mas é difícil. São muitos momentos duros. Assassinatos. Eldorado dos Carajás, Jair da Costa, Keno e tantos outros. Serão muitos momentos duros. O Ministério Público Estadual e o Federal trabalham para desarticulá-las. O Estado trabalha contra. Como agora. Organizadas em filas, todas as mulheres são revistadas e identificadas. As mães, junto com os filhos, passam também por um cadastro do Conselho Tutelar. Serão notificadas por riscos e danos morais, pelas crianças não terem ido hoje à escola e estarem expostas a uma situação de conflito. Isso é verdade. Com a operação de guerra montada pela polícia, os pequenos correm risco. Mas há alternativa para as mães que precisam se mobilizar, que não seja terem seus filhos consigo? Afinal, é quase sempre pensando neles que elas se movimentam em busca da oportunidade de
recomeçarem a vida em melhores condições e dignamente em cima de um lote da reforma agrária.
Enquanto a operação é colocada em prática, dois P2 (serviço secreto da PM gaúcha) fotografam todos. Estão à paisana. São discretos. Material farto para a Inteligência da polícia. São todas tratadas como criminosas. Essas mulheres de chinelo de dedos, pouca escolaridade, sem parentes influentes e nenhuma intimidade com o crime são mesmo perigosas?
O fotógrafo local do Jornal Zero Hora, sorrindo, com um tapinha nas costas de um policial se divertia: “Mais um showzinho pra gente”, focando as mulheres submetidas a humilhação das revistas. Eram as policiais femininas que faziam esta parte. Algumas constrangidas. Outras tinham ódio no olhar e nas mãos, quando batiam nos bonés verdes das camponesas, e depois de retirarem seus lenços, os jogavam com algum prazer à margem da estrada. Como as zapatistas quando usam os passa-montanha, as sem terra ganham importância quando protegem o rosto com os lenços. Basta retirá-los para que se tornem invisíveis novamente.
Cercadas pela polícia e pela mídia, oprimidas pela polícia e pela mídia, violentadas pela polícia e pela mídia, a mando da Justiça e das empresas. “Não vai ter problema nenhum, agressão nenhuma”, garantiu o Coronel Biensfield, quando pela manhã as tropas desfizeram o acampamento. De fato, não bateram, não atiraram, não agrediram o corpo. Mas vigiá-las, constrangê-las, cercá-las, revistá-las, submetê-las, identificá-las, levá-las para a delegacia, deixar elas e as crianças passarem fome e sede, impedindo os assentados de alimentá-las, não é violência?
“Nem prisão ou morte deterão a nossa ação, de lutar junto ao povo pela revolução”, respondem com a espinha ereta. E a revolução que querem está em outro cartaz que empunham: “Mulheres unidas pela terra e em defesa da vida”.
A carona foi de um assentado da região. Voamos por um caminho alternativo até a cidade. Escoltados pelo efetivo da polícia, os ônibus com as agricultoras sem terra rumaram para o ginásio municipal. Perto dali, seis camponesas foram levadas para a delegacia. Uma delas, Joana, me contou depois que ouviu pelo rádio da viatura que estavam articulando a transferência delas para uma penitenciária. Mas aí, aconteceu. Ao invés de entrarem no ginásio, com um movimento espontâneo e espírito de resistência, as mulheres tomaram a rua. “Queremos as companheiras! Queremos as companheiras! Queremos as companheiras!”, insistiam. O batalhão de choque fechou a rua, então elas foram pra outra. Fecharam a outra, então elas foram para a próxima. Fecharam também, e então elas voltaram para a primeira. Até que para a polícia era bater ou recuar. E dessa vez estavam orientados a evitar a violência física, por conta da repercussão negativa do ano
anterior.
“Queremos as companheiras! Queremos as companheiras! Queremos as companheiras! Nós vamos buscar elas!”. E quando passaram por cima dos primeiros policiais, um oficial convenceu-as de que chamaria o Coronel para conversarem. Deram a ele cinco minutos. E então veio Cláudia, advogada do Movimento, com a notícia de que elas seriam libertadas, graças à mobilização das mulheres. E foram soltas. E mesmo vigiadas pelos aparatos do Estado, estão soltas lutando pela reforma agrária e empunhando escudos-cartazes que nos dizem: “Somente quando transgredimos alguma ordem, o futuro se torna respirável”.
As mulheres da Via têm outros nomes. São cuidados para driblar os que querem lhes tirar o ar.