LEALDADE
Quando cheguei à TV Globo, em 1995, eu tinha mais cabelo, mais esperança, e
também mais ilusões. Perdi boa parte do primeiro e das últimas. A esperança
diminuiu,
mas sobrevive. Esperança de fazer jornalismo que sirva pra transformar –
ainda que de
forma modesta e pontual. Infelizmente, está difícil continuar cumprindo esse compromisso aqui na Globo. Por isso, estou indo embora.
Quando entrei na TV Globo, os amigos, os antigos colegas de Faculdade,
diziam: “você
não vai agüentar nem um ano naquela TV que manipula eleições, fatos,
cérebros”.
Agüentei doze anos. E vou dizer: costumava contar a meus amigos que na Globo
fazíamos – sim – bom jornalismo. Havia, ao menos, um esforço nessa direção.
Na última década, em debates nas universidades, ou nas mesas de bar, a cada
vez que
me perguntavam sobre manipulação e controle político na Globo, eu costumava
dizer:
“olha, isso é coisa do passado; esse tempo ficou pra trás”.
Isso não era só um discurso. Acompanhei de perto a chegada de Evandro Carlos
de
Andrade ao comando da TV, e a tentativa dele de profissionalizar nosso
trabalho.
Jornalismo comunitário, cobertura política – da qual participei de 98 a
2006. Matérias
didáticas sobre o voto, sobre a democracia. Cobertura factual das eleições,
debates.
Pode parecer bobagem, mas tive orgulho de participar desse momento de virada
no
Jornalismo da Globo.
Parecia uma virada. Infelizmente, a cobertura das eleições de 2006 mostrou
que eu
havia me iludido. O que vivemos aqui entre setembro e outubro de 2006 não
foi ficção.
Aconteceu.
Pode ser que algum chefe queira fazer abaixo-assinado para provar que não
aconteceu. Mas, é ruim, hem!
Intervenção minuciosa em nossos textos, trocas de palavras a mando de
chefes,
entrevistas de candidatos (gravadas na rua) escolhidas a dedo, à distância,
por um
personagem quase mítico que paira sobre a Redação: “o fulano (e vocês sabem
de
quem estou falando) quer esse trecho; o fulano quer que mude essa palavra no
texto”.
Tudo isso aconteceu. E nem foi o pior.
Na reta final do primeiro turno, os “aloprados do PT” aprontaram; e
aloprados na chefia
do jornalismo global botaram por terra anos de esforço para construir um
novo tipo de
trabalho aqui.
Ao lado de um grupo de colegas, entrei na sala de nosso chefe em São Paulo,
no dia
18 de setembro, para reclamar da cobertura e pedir equilíbrio nas matérias:
“por que
não vamos repercutir a matéria da “Istoé”, mostrando que a gênese dos
sanguessugas
ocorreu sob os tucanos? Por que não vamos a Piracicaba, contar quem é Abel
Pereira?”
Por que isso, por que aquilo… Nenhuma resposta convincente. E uma
cobertura
desastrosa. Será que acharam que ninguém ia perceber?
Quando, no JN, chamavam Gedimar e Valdebran de “petistas” e, ao mesmo tempo, falavam de Abel Pereira como empresário ligado a um ex-ministro do “governo
anterior”, acharam que ninguém ia achar estranho?
Faltando seis dias para o primeiro turno, o “petista” Humberto Costa foi
indiciado pela
PF. No caso dos vampiros. O fato foi parar em manchete no JN, e isso era
normal.
O
anormal é que, no mesmo dia, esconderam o nome de Platão, ex-assessor do
ministério
na época de Serra/Barjas Negri. Os chefes sabiam da existência de Platão,
pediram a
produtores pra checar tudo sobre ele, mas preferiram não dar. Que jornalismo
é esse,
que poupa e defende Platão, mas detesta Freud! Deve haver uma explicação
psicanalítica para jornalismo tão seletivo! Ah, sim, Freud. Elio Gaspari chegou a pedir desculpas em nome dos
jornalistas ao tal
Freud Godoy. O cara pode ter muitos pecados. Mas, o que fizemos na véspera
da
eleição foi incrível: matéria mostrando as “suspeitas”, e apontando o dedo
para a sala
onde ele trabalhava, bem próximo à sala do presidente… A mensagem era
clara. Mas,
quando a PF concluiu que não havia nada contra ele, o principal telejornal
da Globo
silenciou antes da eleição.
Não vi matérias mostrando as conexões de Platão com Serra, com os tucanos.
Também não vi (antes do primeiro turno) reportagens mostrando quem era Abel
Pereira, quem era Barjas Negri, e quais eram as conexões deles com PSDB. Mas
vi
várias matérias ressaltando os personagens petistas do escândalo. E, vejam:
ninguém
na Redação queria poupar os petistas (eu cobri durante meses o caso Santo
André;
eram matérias desfavoráveis a Lula e ao PT, nunca achei que não devêssemos
fazer;
seria o fim da picada…).
O que pedíamos era isonomia. Durante duas semanas, às vésperas do primeiro
turno, a
Globo de São Paulo designou dois repórteres para acompanhar o caso dossiê:
um em
São Paulo, outro em Cuiabá. Mas, nada de Piracicaba, nada de Barjas.!
Um colega nosso chegou a produzir, de forma precária, por telefone (vejam,
bem, por
telefone! Uma TV como a Globo fazer reportagem por telefone), reportagem com
perfil
do Abel. Foi editada, gerada para o Rio. Nunca foi ao ar!
Os telespectadores da Globo nunca viram Serra e os tucanos entregando
ambulâncias
cercados pelos deputados sanguessugas. Era o que estava na tal fita do
“dossiê”.
Outras TVs mostraram o vídeo, a internet mostrou. A Globo, não. Provava
alguma coisa
contra Serra? Não. Ele não era obrigado a saber das falcatruas de deputados
do baixo
clero. Mas, por que demos o gabinete de Freud pertinho de Lula, e não demos
Serra
com sanguessugas?
E o caso gravíssimo das perguntas para o Serra? Ouvi, de pelo menos 3
pessoas
diretamente envolvidas com o SP-TV Segunda Edição, que as perguntas para o
Serra,
na entrevista ao vivo no jornal, às vésperas do primeiro turno, foram
rigorosamente
selecionadas. Aquele diretor (aquele, vocês sabem quem) teria mandado cortar
todas
as perguntas “desagradáveis”. A equipe do jornal ficou atônita. Entrevistas
com os
outros candidatos tinham sido duras, feitas com liberdade. Com o Serra,
teria havido,
deliberadamente, a intenção de amaciar.
E isso era um segredo de polichinelo. Muita gente ouviu essa história pelos
corredores…
E as fotos da grana dos aloprados? Tínhamos que publicar? Claro. Mas, porque
não
demos a história completa? Os colegas que estavam na PF naquele dia (15 de
setembro), tinham a gravação, mostrando as circunstâncias em que o delegado
vazara
as fotos. Justiça seja feita: sei que eles (repórter e produtor) queriam dar
a matéria
completa – as fotos, e as circunstâncias do vazamento. Podiam até proteger a
fonte,
mas escancarando o que são os bastidores de uma campanha no Brasil. Isso
seria
fazer jornalismo, expor as entranhas do poder.
Mais uma vez, fomos seletivos: as fotos mostradas com estardalhaço. A fita
do
delegado, essa sumiu!
Aquele diretor, aquele que controla cada palavra dos textos de política,
disse que só
tomou conhecimento do conteúdo da fita no dia seguinte. Quer que a gente
acredite?
Por que nunca mostraram o conteúdo da fita do delegado no JN?
O JN levou um furo, foi isso?
Um colega nosso, aqui da Globo ouviu a fita e botou no site pessoal dele…
Mas, a
Globo não pôs no ar… O portal “G-1” botou na íntegra a fita do delegado,
dias depois
de a “CartaCapital” ter dado o caso. Era noticia? Para o portal das
Organizações
Globo, era.
Por que o JN não deu no dia 29 de setembro? Levou um furo?
Não. Furada foi a cobertura da eleição. Infelizmente.
E, pra terminar, aquele episódio lamentável do abaixo-assinado, depois das
matérias
da “CartaCapital”. Respeito os colegas que assinaram. Alguns assinaram por
medo,
outros por convicção. Mas, o fato é que foi um abaixo-assinado em defesa da
Globo,
apresentado por chefes!
Pensem bem. Imaginem a seguinte hipótese: a revista “Quatro Rodas” dá
matéria
falando mal da suspensão de um carro da Volkswagen, acusando a empresa de
deliberadamente não tomar conhecimento dos problemas. Aí, como resposta, os
diretores da Volks têm a brilhante idéia de pedir aos metalúrgicos pra
assinar um
manifesto em defesa da empresa! O que vocês acham? Os metalúrgicos mandariam
a
direção da fábrica catar coquinho em Berlim!
Aqui, na Globo, muitos preferiram assinar. Por isso, talvez, tenhamos um
metalúrgico
na Presidência da República, enquanto os jornalistas ficaram falando
sozinhos nessa
eleição…
De resto, está difícil continuar fazendo jornalismo numa emissora que obriga
repórteres
a chamarem negros de “pretos e pardos”. Vocês já viram isso no ar? Sinto
vergonha…
A justificativa: IBGE (e, portanto, o Estado brasileiro) usa essa
nomenclatura. Problema
do IBGE. Eu me recuso a entrar nessa. Delegados de policia (representantes
do
Estado) costumavam (até bem pouco tempo) tratar companheiras (mesmo em
relações
estáveis) como “concubinas” ou “amásias”. Nunca usamos esses termos!
Árabes que chegaram ao Brasil no início do século passado eram chamados de
“turcos”
pelas autoridades (o passaporte era do Império Turco Otomano, por isso a
nomenclatura). Por causa disso, jornalistas deviam chamar libaneses de
turcos?
Daqui a pouco, a Globo vai pedir para que chamemos a Parada Gay de “Parada
dos
Pederastas”. Francamente, não tenho mais estômago.
Mas, também, o que esperar de uma Redação que é dirigida por alguém que
defende a
cobertura feita pela Globo na época das Diretas?
Respeito a imensa maioria dos colegas que ficam aqui. Tenho certeza que vão
continuar se esforçando pra fazer bom Jornalismo. Não será fácil a tarefa de
vocês.
Olhem no ar. Ouçam os comentaristas. As poucas vozes dissonantes sumiram.
Franklin
Martins foi afastado. Do Bom dia Brasil ao JG, temos um desfile de gente que
está do
mesmo lado.
Mas sabem o que me deixou preocupado mesmo? O texto do João Roberto Marinho
depois das eleições.
Ele comemorou a reação (dando a entender que foi absolutamente espontânea;
será
que disseram isso pra ele? Será que não contaram a ele do mal-estar na
Redação de
São Paulo?) de jornalistas em defesa da cobertura da Globo:
“(…)diante de calúnias e infâmias, reagem, não com dúvidas ou incertezas,
mas com
repúdio e indignação. Chamo isso de lealdade e confiança”.
Entendi. Ele comemora que não haja dúvidas e incertezas… Faz sentido.
Incerteza
atrapalha fechamento de jornal. Incerteza e dúvida são palavras terríveis.
Devem ser
banidas. Como qualquer um que diga que há racismo – sim – no Brasil.
E vejam o vocabulário: “lealdade e confiança”. Organizações ainda hoje bem
populares
na Itália costumam usar esse jargão da “lealdade”.
Caro João, você talvez nem saiba direito quem eu sou.
Mas, gostaria de dizer a você que lealdade devemos ter com princípios, e com
a
sociedade. A Globo, infelizmente, não foi “leal” com o público. Nem com os
jornalistas.Vai pagar o preço por isso. É saudável que pague. Em nome da
democracia!
João, da família Marinho, disse mais no brilhante comunicado interno:
“Pude ter certeza absoluta de que os colaboradores da Rede Globo sabem que
podem
e devem discordar das decisões editoriais no trabalho cotidiano que levam à
feitura de
nossos telejornais, porque o bom jornalismo é sempre resultado de muitas
cabeças
pensando”.
Caro João, em que planeta você vive? Várias cabeças? Nunca, nem na ditadura
(dizem-me os companheiros mais antigos) tivemos na Globo um jornalismo tão
centralizado, a tal ponto que os repórteres trabalham mais como bonecos de
ventríloquos, especialmente na cobertura política!
Cumpro agora um dever de lealdade: informo-lhe que, passadas as eleições,
quem
discordou da linha editorial da casa foi posto na “geladeira”. Foi
lamentável, caro João.
Você devia saber como anda o ânimo da Redação – especialmente em São Paulo.
Boa parte dos seus “colaboradores” (você, João, aprendeu direitinho o
vocabulário
ideológico dos consultores e tecnocratas – “colaboradores”, essa é boa… Eu
não sou
colaborador, coisa nenhuma! Sou jornalista!) está triste e ressabiada com o
que se
passou.
Mas, isso tudo tem pouca importância.
Grave mesmo é a tela da Globo – no Jornalismo, especialmente – não refletir
a
diversidade social e política brasileira. Nos anos 90, houve um ensaio, um
movimento
em direção à pluralidade. Já abortado. Será que a opção é consciente?
Isso me lembra a Igreja Católica, que sob Ratzinger preferiu expurgar o
braço
progressista. Fez uma opção deliberada: preferiram ficar menores, porém mais
coesos
ideologicamente. Foi essa a opção de Ratzinger. Será essa a opção dos
Marinho?
Depois, não sabem porque os protestantes crescem…
Eu, que não sou católico nem protestante, fico apenas preocupado por ver uma
concessão pública ser usada dessa maneira!
Mas, essa é também uma carta de despedida, sentimental.
Por isso, peço licença pra falar de lembranças pessoais.
Foram quase doze anos de Globo.
Quando entrei na TV, em 95, lá na antiga sede da praça Marechal, havia a
Toninha –
nossa mendiga de estimação, debaixo do viaduto. Os berros que ela dava em
frente à
entrada da TV traziam uma dimensão humana ao ambiente, lembravam-nos da
fragilidade de todos nós, de como nossa razão pode ser frágil.
Havia o João Paulada – o faz-tudo da Redação.
Havia a moça do cafezinho (feito no coador, e entregue em garrafas
térmicas), a tia dos
doces…
Era um ambiente mais caseiro, menos pomposo. Hoje, na hora de dizer tchau,
sinto
saudade de tudo aquilo.
Havia bares sujos, pessoas simples circulando em volta de todos nós – nas
ruas, no
Metrô, na padaria.
Todos, do apresentador ao contínuo, tinham que entrar a pé na Redação.
Estacionamentos eram externos (não havia “vallet park”, nem catraca
eletrônica). A
caminhada pelas calçadas do centro da cidade obrigava-nos a um salutar
contato com
a desigualdade brasileira.
Hoje, quando olho pra nossa Redação aqui na Berrini, tenho a impressão que
estou
numa agência de publicidade. Ambiente asséptico, higienizado. Confortável, é
verdade.
Mas triste, quase desumano.
Mas, há as pessoas. Essas valem a pena.
Pra quem conseguiu chegar até o fim dessa longa carta, preciso dizer duas
coisas…
1) Sinto-me aliviado por ficar longe de determinados personagens,
pretensiosos e
arrogantes, que exigem “lealdade”; parecem “poderosos chefões”falando com
seus
seguidores… Se depender de mim, como aconteceu na eleição, vão ficar
falando
sozinhos.
2) Mas, de meus colegas, da imensa maioria, vou sentir saudades.
Saudades das equipes na rua – UPJs que foram professores; cinegrafistas que
foram
companheiros; esses sim (todos) leais ao Jornalismo.
Saudades dos editores – que tiveram paciência com esse repórter aflito e
procuraram
ser leais às minúcias factuais.
Saudades dos produtores e dos chefes de reportagem – acho que fui leal com
as pautas
de vocês e (bem menos) com os horários!
Saudades de cada companheiro do apoio e da técnica – sempre leais.
Saudades especialmente, das grandes matérias no Globo Repórter – com aquela
equipe de mestres (no Rio e em São Paulo) que aos poucos vai se desmontando,
sem
lealdade nem respeito com quem fez história (mas há bravos resistentes
ainda).
Bem, pelo tom um tanto ácido dessa carta pode não parecer. Mas levo muita
coisa boa
daqui.
Perdi cabelos e ilusões. Mas, não a esperança.
Um beijo a todos.
Rodrigo Viana
Repórter da Globo conta tudo
O dificil é convencermos que ainda existe um atrito entre a esrfêra política e a mídia Brasileira. Parece ser um conto de fada e as pessoas aceitam a “desinformação” – assim como estipulada a palavra na campanha de Edward Murrow contra o caçador de comunista nos EUA, Senador McCarthy – enquanto ela é erronea e ameaça a nossa democracía.
Parabens pelo texto, me sinto feliz em saber que esse controle “patronista” se desvanece para certos ex-funcionários. Que a palavra seja dita. Acordemos, Brasil.