Para não dizerem que só ilustro como maus exemplos em meus artigos os projetos da Vale do Rio Doce, trago para reflexão e análise o exemplo bibliográfico oportuno, do final da década de 90, bastante didático e representativo do “modus operandi” habitual, citado por Vicente Rahn Medaglia em Sinópse da Filosofia do Meio Ambiente.
Esses conceitos estão presentes em se analisando um caso que ficou conhecido como mais um crime ambiental: a Hidrelétrica de Barra Grande, situada no Rio Pelotas, divisa com o estado de Santa Catarina. Mais de 5.000ha de mata nativa foram sacrificados em nome de geração de energia. Essa mata teria um potencial de serviços ambientais, como captação de CO2, regulação do clima, regulação dos ciclos hidrológicos, etc., perdido para sempre.
Para a construção da Usina Hidrelétrica de Barra Grande foi feito “como manda a lei”, um Estudo de Impacto Ambiental. O EIA foi elaborado por uma empresa, que, surpreendentemente, mentiu sobre a composição vegetal da área submersa pela barragem. No EIA foi dito que a área comportava somente capoeiras e capoeirões, estágios de sucessão ecológica que não são protegidos por lei. Ocorre que, de fato, metade da área era composta por vegetação primária, ou seja, que nunca havia sido derrubada pelo homem ou áreas em que se encontrava em estágio avançado de regeneração. Como sabemos, essas duas últimas formações são protegidas por lei, mas o IBAMA, órgão responsável por vistoriar o estudo e verificar se ele estava correto, não apurou essas irregularidades.
O Ministério de Minas e Energia comemorou mais essa mega-hidrelétrica como mais uma obra que aceleraria o crescimento econômico do país, mas não o desenvolvimento social. De fato, a construção dessa hidrelétrica, como todas as demais, só foi possibilitada pela alegação, por parte do poder público, de que ela era de “interesse público”.
Esse exemplo nos fornece elementos para que tenhamos uma idéia superficial sobre de que forma os conceitos filosóficos se aplicariam. Em primeiro lugar, tentemos identificar a cadeia de ações que aí está envolvida. Essa cadeia é estabelecida simplesmente perguntando-se o porquê de cada ação. Então, começando pelo fato “foi construída uma usina hidrelétrica que irá inundar uma grande floresta”. Por quê? “Pois se considera que a energia elétrica gerada é importante”. Por quê? “Pois com energia elétrica a economia do país pode crescer, e o crescimento econômico é algo importante”. Por quê? “Pois crescendo a economia, o país tem mais dinheiro, e ter dinheiro é importante” Por quê? “Pois dinheiro traz felicidade”. Em se chegando nesse ponto, não cabe mais perguntar ‘Por quê?’. Não faz sentido perguntar por que se quer ser feliz. O que se pode perguntar é o que é e a quem pertence a tal felicidade, já que é isso que determina toda a escala de valores. Em se assumindo que o dinheiro traz felicidade, fica então justificada a ação da construção da barragem.
Passemos ao modelo de felicidade presente na cadeia de justificativas apresentada. Em primeiro lugar, cabe notar que é conseqüência direta da construção da barragem a inundação de 5.000ha de mata considerados como área prioritária para conservação pelo próprio Ministério do Meio Ambiente. Assim, seja qual a justificativa dada ao empreendimento, ela deve contemplar esse fato.
Perguntemos quem é que ganha dinheiro com esse empreendimento. Pode-se considerar que são os trabalhadores da obra, mas o dinheiro que eles ganham é pouco. Quem de fato ganha dinheiro às claras são os acionistas, já que a barragem é um empreendimento totalmente privado. Poder-se-ia dizer que isso representa somente a contraparte da geração de energia, que é considerada igualmente um bem que contribui para a felicidade dos cidadãos que teriam energia em suas casas. Mas isso tampouco é o caso, já que a hidrelétrica foi construída por grupos industriais de produtos eletro intensivos, como alumínio (da Alcoa – Aluminium Company of America – com metade das ações do empreendimento), cimento e celulose (da Votorantin, também acionista), entre outros grupos. Essa hidrelétrica se coloca em um contexto de auto-geração, ou seja, os produtos dessas fábricas necessitam de muita energia e são muito rentáveis, logo, é ótimo negócio construírem suas próprias hidrelétricas.
Colocados esses pontos, a justificativa ética da obra ficaria mais complicada, já que, para tanto, o sistema de valores assumido deveria considerar lícito sacrificar um bem público, o meio ambiente, em nome de um bem privado, o lucro de algumas megacorporações multinacionais. Isso só seria factível se assumíssemos que o correto é que quem pode mais, ou quem possui mais poder, use todos os meios que considere cabíveis, possíveis, impossíveis, imagináveis e inimagináveis para perseguir seus interesses, doa a quem doer. Como poderíamos denominar essa posição? “Cratocentrismo” verde (do grego krátos, “força”), ou “Crematocentrismo” amarelo (do grego chrémata, “dinheiro”), ou simplesmente “Cratocrematocentrismo” cada vez mais verde e amarelo?