No dia 13 de agosto, a maioria das entidades empresariais que integrava a Comissão
Organizadora Nacional (CON) da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom)
abandonou a instância. O Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social estranha a
justificativa da saída apontada pelos empresários em nota à imprensa, segundo a qual a
defesa de princípios constitucionais como “a livre iniciativa, a liberdade de expressão e o
direito à informação e à legalidade” teria encontrado resistência junto a outros
interlocutores no interior da Comissão.
Em nenhum momento do processo qualquer entidade ou ente público da Comissão
Organizadora foi contra a defesa da Constituição Federal. Ao contrário, as entidades sociais
reforçaram que, além dos princípios elencados pelos empresários, deveriam constar outros
igualmente estabelecidos na Carta Magna, como a promoção da produção regional e
independente no rádio e na TV, a proibição de monopólio e oligopólio neste setor, o
respeito aos direitos humanos e a complementaridade entre os sistemas público, privado e
estatal. Dispositivos estes que não foram incluídos no rol de premissas apresentado. Partindo destes fatos, consideramos importante, para esclarecer o episódio em questão,
problematizar a justificativa apresentada pelas entidades empresariais que se ausentaram da
Comissão Organizadora.
Afirmamos enfaticamente que não aceitamos a atribuição do
rompimento ocorrido nessa quinta-feira à postura ou às propostas das entidades sociais.
Estranhamos a alegação dos representantes do setor empresarial de que “não têm interesse
algum em impedir a livre realização da Confecom”. É de conhecimento público as seguidas
tentativas dos empresários de embarreirar os debates no interior da CON, bem como as
articulações para cancelamento e o não comparecimento em reuniões decisivas da
Comissão. É contraditório que aqueles preocupados em não “impedir a livre realização da
Conferência” tenham sido os principais responsáveis pelo atraso de quase dois meses para
aprovação do regimento interno.
O fato de parte significativa dos empresários ter saído da Comissão Organizadora é
lamentável. No entanto, consideramos que este episódio, de maneira alguma, diminui a
importância e a legitimidade do Confecom como marco do debate sobre as políticas
públicas para as comunicações. A Conferência segue sendo um mecanismo de participação
popular fundamental para construir um conjunto de propostas visando reformar o marco
institucional das comunicações brasileiras à luz do processo de convergência tecnológica
com o foco da promoção da democratização dos meios de comunicação.
Ainda que fora da Comissão Organizadora, reconhecemos a importância da participação
dos empresários na Confecom como uma oportunidade histórica de travarem um debate
aberto, franco e democrático sobre o futuro das comunicações no país com o conjunto da
população e do Estado brasileiro.
Porém, com sua saída da organização do processo, as propostas em discussão sobre a
proporção dos delegados e o quórum para as votações devem ser totalmente reestruturadas.
Tais propostas, tal como foram apresentadas até agora, desvirtuam a natureza do espaço
democrático que representam as conferências, conferem a um setor uma presença
totalmente desproporcional à sua representação real na sociedade e, acima de tudo,
contradizem profundamente toda a trajetória deste governo no esforço de fortalecer a
participação popular nos espaços decisórios e formuladores de políticas públicas.
Uma dessas propostas diz respeito à composição dos delegados para a Conferência. Na
avaliação do Intervozes e de dezenas de organizações que estão construindo a Confecom
em âmbito nacional e estadual, não há qualquer justificativa razoável para que os
empresários do setor tenham garantidos, de antemão, 40% do universo dos delegados e
delegadas da Conferência, cabendo à sociedade civil não empresarial a mesma cota e, aos
entes do poder público, 20%.
Nas mais de cinqüenta conferências realizadas de 2003 até hoje não existe qualquer
precedente neste sentido. Levantamento realizado sobre a questão pelo Intervozes
comprovou que o máximo percentual já reservado aos empresários em conferências foi de
30%, caso único da conferência de meio ambiente. Nem na sociedade brasileira, nem no
Congresso Nacional, onde já se observa uma sobre-representação dos donos da mídia em
relação à população, o setor empresarial tem um peso tão expressivo quanto o que se lhe
pretende reservar na Confecom.
Tal proposta de composição torna-se ainda mais estranha ao espírito das conferências
diante da constatação de que as posições das empresas de comunicação já são
inegavelmente hegemônicas em toda a história da regulação do setor no Brasil. Atestam
isso os exemplos os processos de elaboração do Código Brasileiro de Telecomunicações
(CBT), da Constituição de 1988, da elaboração da lei da radiodifusão comunitária e da Lei
de Concessões, que exclui a radiodifusão da regulamentação das outorgas para serviços
públicos. Somam-se a estes casos os episódios da privatização das empresas de telefonia, a
abertura ao capital estrangeiro nas empresas jornalísticas, a definição do sistema de TV
digital adotado no país e a discussão sobre as propostas natimortas da Agência Nacional do
Audiovisual (Ancinav) e do Conselho Federal de Jornalismo.
No tocante à proposta de quórum qualificado de 60% para aprovação de “temas sensíveis”,
consideramos que a mesma, somada à reserva de 40% dos delegados para o setor
empresarial, na prática, conferirá um poder de veto a toda e qualquer proposta que gerar
polêmica e representar a mínima ameaça à hegemonia dos grupos dominantes na
comunicação brasileira. Ademais, consideramos impertinente a distinção de “temas
sensíveis”, uma vez que tradicionalmente não há qualquer tipo de diferenciação no
tratamento de votações sobre qualquer assunto em conferências nacionais.
Estas iniciativas, independentemente da correlação de forças políticas nos respectivos
campos, são instrumentos de democracia participativa que visam promover o direito
humano à participação política. Distorcer os princípios básicos desse instrumento – como a
participação majoritária da sociedade civil e o poder deliberativo por maioria – significa
restringir e marginalizar o poder de incidência da sociedade civil não empresarial no
processo, desde as etapas municipais até a nacional. Isso resumirá a Confecom a uma
grande mesa de negociação, onde as cúpulas dos principais atores políticos decidirão o que
pode se tornar resolução ou não.
É hora de inaugurarmos uma nova fase no processo da I Conferência de Comunicação. A
conclusão do regimento nacional faz-se urgente. Somente sua publicação imediata pode
minimizar os danos provocados pela intransigência dos empresários e pela tentativa de
negociação levada a cabo pelo governo ao calendário das etapas preparatórias e estaduais,
bem como à própria divulgação do processo da Conferência e dos importantes debates que
ela deve ensejar.
Espera-se, portanto, que, uma vez retiradas as demandas do segmento empresarial, os
termos do regimento sejam ajustados para prever a maior e mais democrática participação
de todos os setores da sociedade. Na avaliação do Intervozes, esta deve ser agora uma das
bandeiras das entidades envolvidas no processo hoje reunidas em torno da Comissão
Nacional Pró-Conferência e das 24 Comissões Estaduais em funcionamento no país. É a
democracia brasileira que está em jogo.
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
14 de agosto de 2009.