Honduras: América Latina acusa o golpe

Honduras: América Latina acusa o golpe

Independente do que vier a acontecer no país nos próximos dias e meses, a democracia no continente acaba de perder uma importante batalha. Mas a guerra ainda está longe de terminar… Infelizmente, parece que isso não será possível sem o sangue dos hondurenhos e talvez de outros hermanos

A América Latina, sem sombra de dúvida, já não é o “quintal dos Estados Unidos” que foi durante praticamente todo o século XX. A partir da virada do milênio, com a eleição fraudulenta que levou George W. Bush ao poder e os atentados de 11 de setembro de 2001, os olhos da política externa dos EUA se voltaram mais para a chamada “guerra das civilizações”, contra os mulçumanos de todo o mundo e em especial aqueles assentados sobre toneladas de petróleo. Assim, vários governos mais progressistas e não imediatamente alinhados aos EUA puderam vencer democraticamente processos eleitorais justos e serem empossados na Venezuela, Brasil, Uruguai, Argentina, Bolívia, Equador, Chile e, mais recentemente, no Paraguai e Nicarágua. É certo que houve reveses como no Peru e no México (esse também por meio de uma fraude eleitoral) e a Colômbia continua como aliada incondicional (tendo sido por isso poupada pela grande mídia quando Álvaro Uribe mudou a constituição do país para conseguir se reeleger e mesmo agora quando tenta mudar novamente a carta para uma nova reeleição). Mas o poder estadunidense continua se esvaindo por entre os dedos do Tio Sam.

Junto com a influência política, a presença militar dos EUA também está sendo posta em xeque na região. Depois que Lula paralisou, ainda no início de seu governo, as negociações em torno da cessão da base de Alcântara no Maranhão e Hugo Chávez passou a negociar armas com a Rússia, a nova constituição equatoriana proibiu a instalação de bases militares estrangeiras em seu território. Assim, o presidente Rafael Correa não renovou a concessão da base estadunidense de Malta, implantada em 1999 no Equador, e os EUA estão tendo de mudar suas tropas para as bases na Colômbia. É esse cenário, muito mais do que qualquer alegação da mídia de tentativa por parte do presidente eleito Manuel Zelaya de uma reeleição proibida, que ameaça “contaminar” a América Central e está por trás do golpe em Honduras.

Apesar do fato do governo de Barack Obama não ter reconhecido oficialmente os líderes golpistas como legítimos, não faltam figurinhas carimbadas dos EUA entre os conspiradores. O próprio embaixador estadunidense no país, Hugo Llorens, era um dos principais assessores de Bush sobre a Venezuela quando houve o golpe contra Chávez em 2002 e admitiu ter se reunido com os golpistas antes do sequestro e deportação do presidente legítimo de Honduras em 28 de junho. Em 4 de julho, ele declarou à imprensa hondurenha que “não se pode violar a constituição para criar uma constituição”, aceitando, portanto, a justificativa oficial para golpe. No entanto, ele não é a única “herança maldita” dos falcões de Bush na região. De fato, Honduras está cercada. O ex-subdiretor de Assuntos Cubanos do Departamento de Estado dos EUA, Robert Blau, tem um alto cargo na embaixada dos Estados Unidos em El Salvador. O ex-número dois da embaixada dos EUA na Venezuela em 2002 é o atual embaixador do país na Guatemala. E o embaixador na Nicarágua, Robert Callahan, depois de atuar na imprensa pela embaixada em Bagdá, foi um dos responsáveis pelo setor na criação da Direção Nacional de Inteligência (DNI) de Washington, com grande concentração de poder.

A mídia hegemônica, pois, também tem jogado seu jogo ao lado dos golpistas. Como em toda a América Latina, a imprensa é super-concentrada em Honduras, com apenas três famílias controlando os principais jornais do país e somente uma à frente das maiores redes de rádio e TV. Os meios internacionais tem mantido suas posições ideológicas tradicionais, a favor ou contra “o esquerdista” Zelaya, mas em geral têm nomeado o golpe de golpe. No Brasil, houve a princípio uma certa hesitação até mesmo para não serem desmentidos pelos fatos, como aconteceu com a Veja que anunciou em outdoors pelo país “a queda do presidente falastrão” em 2002 e chegou às bancas com Chávez já de volta ao poder. Mas como Zelaya não retomou seu posto legítimo em questão de horas, a exemplo do colega venezuelano, pouco a pouco tem mudado a forma como os jornais se referem a ele e ao usurpador Roberto Micheletti, agora chamado de “presidente interino” do “governo de provisório”. A única “honrosa” exceção, sempre ela, vem em nome do blogueiro oficial da Veja, Reinaldo Azevedo, o “tio rei”, que chama Obama pejorativamente de Barack Hussein, diz que o presidente dos EUA não devia ter medo de intervir militarmente, que Zelaya era quem queria dar um golpe nas instituições com o apoio de Chávez, Fidel Castro e Daniel Ortega, e completa seu raciocínio torto com uma frase lapidar: “Não é mais possível aceitar que bandoleiros recorram ao voto para matar o regime democrático, como já se fez na Venezuela, na Bolívia e no Equador”.

Honduras é fonte de matéria-prima e mão-de-obra baratas para o Império
Honduras é fonte de matéria-prima e mão-de-obra baratas para o Império

O último elemento explosivo do golpe é a questão da hegemonia econômica e cultural. A população pobre do interior de Honduras, assim como dos países vizinhos, sempre foi usada como massa trabalhadora barata e descartável pelas as empresas transnacionais, especialmente as “bananeiras” como a United Fruits. Já nas cidades maiores e no litoral caribenho, ela serve bem a pequena elite local e os vários estrangeiros em posição de mão-de-obra doméstica e para o turismo. Na paradisíaca ilha de Roatán, por exemplo, a poucos quilômetros do porto exportador de frutas de La Ceiba, boa parte dos moradores abastados sequer fala espanhol e a recente implantação do ensino de inglês básico nas escolas públicas é anunciada como o caminho para a futura “empregabilidade” da população de mais baixa renda. O dólar é moeda corrente tanto quanto a lempira hondurenha e pode ser sacado com cartões de crédito internacionais em qualquer caixa eletrônico. Nas fachadas dos estabelecimentos voltados ao turismo e nos cardápios dos restaurantes, o uso da língua de García Márquez é simplesmente dispensável.

No restante do continente, enquanto a economia mexicana caminha para o caos por sua vinculação estreita à dos EUA (a Cepal prevê uma retração de 7% em 2009), no Brasil, Argentina e Venezuela já não há necessidade de empréstimos e tutela do FMI. Ao contrário, investem em um banco sul-americano. Os recentes massacres de indígenas no Peru que protestavam contra a abertura da Amazônia à exploração de energia e recursos minerais e naturais por empresas transnacionais, na linha do TLC (Tratado de Livre Comércio) assinado com os EUA, empurram a população peruana para os braços da oposição, assim como a derrubada da privatização do sistema hídrico (incluindo as águas da chuva) em Cochabamba em 2000, levou a mobilizações sociais que culminaram com a eleição de Evo Morales em 2005. Mesmo em relação à Colômbia, os deputados estadunidenses hesitam em referendar o acordo de livre comércio por causa dos assassinatos de lideranças sindicais e populares. Aliás, os benefícios sociais e econômicos das iniciativas ligadas à ALBA (Aliança Bolivariana das Américas) atraem muito mais do que as falsas promessas da quase defunta ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e dos TLCs que os EUA assinaram por todo o continente. Esse também é o caso de Honduras que assinou um acordo com Cuba, aderiu à Alba e estava adquirindo petróleo da Venezuela a preços subsidiados.

Na
Na

Desse modo, Honduras se tornou o grande palco inicial da luta imperialista no final da primeira década do novo milênio. Os reacionários nos EUA aprenderam muito com o fracasso do golpe na Venezuela em 2002, mas os movimentos populares também têm se fortificado desde então. Diferentemente de Chávez, no entanto, Zelaya parece não poder contar com boa parte de seus militares, que ao invés de nacionalistas são na maioria treinados e aculturados na Escola das Américas, a fábrica estadunidense de ditaduras e torturadores desde os anos 1960. Na verdade,o próprio presidente era um “homem do sistema”, que serviu em altos cargos em diversos governos anteriores e se tivesse visto a oportunidade, talvez até tivesse sido totalmente cooptado.

De qualquer modo, os fatos de Zelaya não ter sido reempossado rapidamente e da possibilidade cada vez maior de uma guerra civil de duração e consequências imprevisíveis já são uma derrota para o povo hondurenho, a democracia na região e as forças socialistas de todo o mundo. Isso sem falar na possibilidade de uma intervenção “força de paz da OEA” comandada pelos EUA como ocorreu na República Dominicana em 1965 impedindo a volta do presidente Juan Bosch, deposto por um golpe. Ainda que o quadro seja revertido sem um banho de sangue, pelo menos duas pessoas já foram mortas pelo exército na primeira tentativa de regresso de Zelaya (algumas fontes falam em mais de 150 execuções desde o golpe) e inúmeras outras (inclusive estrangeiros) estão detidas sem que sejam reconhecidos os seus direitos. E tudo isso porque o presidente decidiu perguntar à população se gostariam de mudar sua própria constituição…

Box – Um pouco de história

Para entender os fatos do último dia 28 de junho, é importante conhecer um pouco da história do país e da região. O termo “República de Bananas” foi criado na primeira metade do século XX para designar pejorativamente os países latino-americanos, e especialmente da América Central, onde o poder de fato esteve historicamente nas mãos das grandes transnacionais estadunidenses do setor de frutas. Essas empresas, com destaque para a United Fruits (atualmente chamada Chiquita Brands), dominavam e ainda dominam grandes parcelas das elites locais e empossavam ou destituíam governos títeres ao sabor de seus interesses imediatos.

Honduras é o exemplo perfeito dessa política. Maior produtor de bananas do mundo em 1924, teve sua população original (os Maia) massacrada no século XVI, teve o litoral caribenho acossado por piratas nos séculos XVII e XVIII, e viu o sonho de Bolívar de uma América Central unida destruído por egos militares e disputas fratricidas no século XIX. Desde 1900 teve inúmeras constituições diferentes. E após 1956, o governo foi deposto por golpes militares nada menos do que sete vezes. O território também foi invadido militarmente por tropas estadunidenses, com o propósito explícito de defender os interesses das companhias de frutas ou derrubar governos, pelo menos em 1903, 1907, 1910, 1912 e 1924.

Desde os anos 1950 os EUA mantém uma base militar no país atualmente com cerca de 500 a 600 soldados em Soto Cano, a apenas 97 quilômetros da capital Tegucigalpa (assim como outras em El Salvador, Porto Rico e Cuba). Foi a partir dessa base que os estadunidenses armaram, treinaram e financiaram, a guerrilha dos Contra na Nicarágua que fustigou o governo do socialista Daniel Ortega durante boa parte dos anos 1980. Como diz a jornalista Elaine Tavares, “era o tempo em que um batalhão especial liderado por um general hondurenho anti-comunista, promoveu massacres contra lideranças da esquerda de toda a região”.

Também foi de lá, e das bases no Panamá do ditador de ocasião e ex-agente da CIA Manuel Noriega (depois deposto pelos marines e atualmente preso nos EUA) que a marinha e a aeronáutica de Ronald Regan tiveram apoio para a invasão de Granada, em 1983, que derrubou o primeiro-ministro de tendência socialista Maurice Bishop, posteriormente executado. Honduras, como o Panamá, foram estratégicos para frear o “perigo comunista” de movimentos mais à esquerda também em El Salvador e na Guatemala, ainda sob a influência da Guerra Fria. A manutenção da presença militar estadunidense no país, portanto, não pode ser descartada como um dos motivos do novo golpe. Afinal, uma nova constituição poderia, em tese, refutar essa presença.

Textos e Fotos: Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá