Frente pela legalização do aborto realiza assembléia em São Paulo

Numa conjuntura latino-americana, em que as forças conservadoras estão mais unidas e organizadas, aconteceu em SP nos dias 6 e 7 de dezembro, a primeira Assembléia da Frente Nacional contra criminalização das mulheres e pela legalização do aborto. A assembléia contou com cerca de 150 mulheres, representando 13 Estados e o Distrito Federal. De São Paulo participam também 4 cidades do interior mais representantes do ABC.

O encontro começou com uma mesa de análise de conjuntura, desenvolvida por Silvia Camurça (AMB), Sonia Coelho (MMM), Natália (CFEMEA), José Genoíno e Janete Pietá (deputados federais pelo PT).

Para Silvia Camurça, secretária executiva da Articulação de Mulheres Brasileiras, “a conjuntura está marcada pelo cerceamento do debate sobre direitos, e no caso do aborto não é diferente de outras lutas dos movimentos sociais. O cerceamento do debate se faz principalmente pela estratégia de criminalizar os movimentos sociais, as lutas por direitos e também a luta feminista pela autonomia e auto-determinação reprodutiva das mulheres”.

“Há uma aliança”, diz a socióloga, “entre setores fundamentalistas cristãos e setores da tradicional oligarquia latifundiária com setores modernos do mercado das comunicações e da medicina privada. Atuam coletivamente no Congresso Nacional na defesa de seus interesses corporativos e fazem do debate sobre aborto uma moeda de troca”.

Sonia Coelho, da Marcha Mundial de Mulheres, começou sua análise destacando que “existe uma ofensiva do conservadorismo em toda a América Latina, articulada pela Igreja Católica e outras forças reacionárias, e esses setores conservadores tem se mostrado mais organizados, mais ousados”. Soninha também destaca que essa reação conservadora “ganhou mentes e corações de setores amplos, construindo novos interlocutores, que atuam com uma rede de parlamentares, unindo o local e o nacional”.

A estratégia desses setores, continua a feminista, combina “ação na sociedade, que eles estão chamando de sensibilização, com ações no Parlamento – como a tentativa de implantar a CPI -, ações no Judiciário e com a ocupação dos meios de comunicação.

Criminalizar as mulheres

Com a misoginia em alta, reproduzida amplamente pela mídia brasileira, a disseminação do ódio contra as mulheres parece ser o ponto mais sensível dessa estratégia, acredita Soninha. Projetos no Congresso com esse fim, são lembrados por ela, com destaque para o que pretende transformar o aborto em crime hediondo. “O que vemos na sociedade é a concretização das idéias conservadoras, com o reforço da família e da maternidade como lugar da mulher”.

O papel nefasto da Igreja Católica, como principal instituição ideológica, difusora de valores que colocam a mulher como subalterna, foi o destaque da fala do deputado José Genoíno, que afirmou estar ali como militante desta causa e não como representante de qualquer coisa. Para o deputado, estamos enfrentando a disseminação de um “conceito de submissão, que coloca o ser humano como mercadoria, não podendo mudar nada. A maneira mais cabal de realizar esse fim é através da criminalização dos movimentos, junto com a opressão a todas as diversidades”.

“A sacrossanta ideologia judaico cristã”, como Genoíno a chamou, “tem a força da institucionalidade secular, não é apenas cultural”. Mexemos com conceitos de radicalização da democracia, como pluralidade e diversidade, opina o deputado, avaliando que, novamente, é o feminismo que deverá provocar quebras nessa hegemonia conservadora.
Menos otimistas que o deputado foram as falas das lideranças das mulheres, algumas criticando o otimismo de Genoíno, inclusive por não conseguir passar um quadro mais promissor no Congresso. O deputado diz que inclusive em seu partido, o PT, cresceu muito o número de parlamentares conservadores. Assim como Genoíno, Janete Pietá também acredita na necessidade de alianças dentro do governo, e ações junto as bancadas da Câmara e do Senado. Mas Janete aponta também inúmeras dificuldades que temos a enfrentar, como discutir a questão do poder para as mulheres, inclusive entre as que aceitam o socialismo. “Como tratar a questão das religiões?” pergunta ela, “como enfrentar o poder ruralista, que une a questão da terra e da santa madre Igreja?”.

Além de CFêmea, que também apresentou sua visão na mesa, diversas organizações de mulheres e feministas, impulsionadoras desta Frente, colocaram seus pontos de vista e propostas. Com muitos pontos em comum, a maioria acredita que o grande desafio é conscientizar e mobilizar cada vez mais mulheres, ampliar as adesões à frente nacional criada, e construir cada vez mais a unidade nos objetivos específicos desta frente.

Um Estado nada laico

A vida lida apenas como a vida biológica, e não como um projeto a ser construído e vivido e o fortalecimento da maternidade como objetivo da vida das mulheres, valores disseminados com a utilização dos meios de comunicação pelos setores conservadores, é um dos principais obstáculos para que as mulheres alcancem a sua autonomia. Há uma relação da criminalização das mulheres que praticam aborto com a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais.

A aliança entre fundamentalistas evangélicos (para quem a ciência ameaça a fé, então defendem o criacionismo nas escolas, são contra pesquisas com células tronco, etc) e os conservadores mais ortodoxos, como os cristãos, em todo o mundo; o aumento da presença dessas igrejas na mídia (com compra de canais e ocupação do espaço nos debates públicos) e sua aliança com o judiciário e o congresso, estão por trás de diversos projetos de poder ora em curso.
Da mesma forma, as campanhas da medicina privada, como as de inseminação artificial; a mercantilização da maternidade e dos bebês; o movimento “paz e vida”, que no combate à violência, para a classe média tem associado o aborto à guerra; a terceirização do SUS tem colocado organizações religiosas como OSs para gerir hospitais; um isolamento da Secretaria de Políticas para as Mulheres em relação á pauta. A ministra defende o aborto publicamente, mas não há relação com as secretarias estaduais de mulheres, tampouco com os conselhos.

Na última legislatura, diminuiu a bancada evangélica e aumentou a bancada católica e espírita. Ao todo, são cerca de 30 parlamentares, que ocupam a presidência e assentos em comissões estratégicas (Direitos Humanos, Família e Seguridade Social, CCJ), assim como a relatoria de projetos-chave. Hoje há cerca de 40 proposições legislativas restringindo de alguma forma a liberdade sexual, incluindo o que define o aborto como crime hediondo, além da CPI, que até hoje não foi instalada – apesar de aprovada pela mesa diretora da Câmara – por pressão das feministas.

Sobre o acordo Brasil-Vaticano, somado à aprovação do Estatuto das Religiões: agora as igrejas vão falar livremente como professores nas escolas. Há, no entanto, algumas divergências pontuais entre as bancadas das igrejas (em relação à homossexualidade, criminalização da homofobia, e o próprio aborto). Mas, de fato, as igrejas estão no Congresso disputando que vai ter mais poder numa concepção de Estado não-laico.

O que fazer?

A Igreja continua a dizer que o ser humano já nasce pecador, quer que todos peçamos licença para viver e aceitemos o sofrimento como promissor para a “outra vida”. As mulheres conscientes, que defendem realmente a vida, querem ser sujeitas da história para construir um outro mundo possível, de solidariedade e livre exercício das humanidades.

Para isso, a construção de um verdadeiro Estado laico, republicano, o aprofundamento da democracia participativa e a mudança da imagem da mulher disseminada pela mídia, pela educação, pelo entretenimento, são tarefas imprescindíveis no curto prazo. Pois a legalização do aborto é uma luta de médio e longo prazo, pois implica em mudanças culturais, as feministas sabem.

“A questão é mesmo de disputa de projeto”, analisa Silvia Camurça, “entres forças democráticas, anti-patriarcais, anti-capitalistas com um projeto neoliberal conservador e com forte apelo fundamentalista. De outro lado o campo democrático-popular, que precisa compreender que é necessário unidade em torno do fim da criminalização das mulheres pela prática do aborto e o fim da criminalização dos movimentos sociais.”

Os problemas começam na concretização desse campo, no maior ou menor alargamento da Frente Nacional. “É necessário fazer o movimento para colocar o assunto na agenda política do país, sem clivagem de inimigo e aliado, colocar o assunto de forma a tirá-lo do gueto”, opina o deputado Genoíno. Os homens tem alguma dificuldade em entender o grau de importância de algumas coisas para as mulheres, talvez por isso, a grande maioria das Centrais Sindicais não esteja presente na Frente. Apenas a CUT participa.

Especialmente nestas questões de aborto, luta prioritária para as feministas, desde que elas puderam falar, pois está diretamente ligada ao grau de autonomia das mulheres. Capital, patriarcado e igreja católica não querem a autonomia das mulheres, pois este mundo em guerra constante construído pelos homens corre o risco de ser desmantelado. Por isso, é difícil penetrar em mundos politicamente masculinos e machistas, como o sindicalismo e outros organismos de poder.

Isabel Freitas, da MMM, lembrou bem que a luta pela legalização do aborto é a prioridade nas lutas feministas desde muitas gerações anteriores a nós, e que ainda precisamos conquistar a adesão das mulheres organizadas. “Precisamos massificar um discurso entre nós, entre as mulheres que se desdobram pelos direitos humanos, pela reforma agrária, pelos sindicatos, pela comunicação”, diz Isabel. “É preciso estancar essa sangria aberta pela institucionalidade e organizar a contra ofensiva”, conclama. “O acordo com o Vaticano viola a legalidade do Estado de Direito!”

Mulheres no poder

Além da educação laica, atingida por esse acordo, na área da saúde, constantemente citada nos movimentos como exemplo de bem utilizada institucionalidade, é considerado nefasto o papel das Pastorais religiosas que a dominam. Falta atuação, condições e organismos reais de controle social para as políticas públicas conquistadas. Os que mais precisam delas são os que menos podem participar.
“Temos uma grande responsabilidade pela vida das mulheres brasileiras”, constata Socorro (Assembléia Popular da Paraíba). “Nossa teoria na questão do aborto é citada em tribunais de outros países, somos referência onde legalizaram o aborto e temos a oportunidade de eleger uma mulher para presidir o país. Entretanto, vivemos momentos de ofensiva por parte do Estado brasileiro contra as lutas e a mobilização das mulheres”, avalia e pergunta: “Mulheres no poder significa mais poder para as mulheres?”

Ano eleitoral na porta determina o calendário de curto prazo. Assim, propostas para saírem mais mulheres candidatas, para a utilização das campanhas para colocar a questão do aborto na rua não faltaram. Também propostas para apresentarmos nossa plataforma aos partidos e candidatos e candidatas, inclusive a presidente. “Devemos resistir nas comissões e nas ações de guerrilha no Congresso”, acredita Janete Pietá, “pois se esta questão for hoje a plenário, perdemos. A SPM precisa se tornar ministério para ter mais verba e mais autonomia, precisamos conversar com Dilma e as nossas bases, porque Lula fica refém dos aliados, precisamos eleger uma grande bancada dos setores de esquerda, mais poder para as mulheres e mais mulheres no poder”.

Como construir a necessária unidade?

Citada nas falas de muitas das lideranças, a unidade é necessária, mas em torno do que? Quais limites à unidade e à ação conjunta nos são impostos por determinadas parcerias? As mulheres querem ampliar o trabalho de conversa com todos os movimentos sociais existentes, a partir do nível local, para juntarmos no regional, no nacional. A UNE promete a campanha entre os estudantes, diversas redes e organizações de mulheres, em várias áreas, dizem estar divulgando a causa por todo o país.
O exercício para construir a Conferência Nacional de Comunicação está sendo um exemplo da dificuldade de construir unidade no campo da esquerda. Mas também mostra que é possível, principalmente para atuarmos na institucionalidade. Nesta queda de braço com a elite ideológica da direita, com os oligopólios da comunicação, o movimento de mulheres tem uma de suas mais importantes reivindicações: Pelo fim das concessões de emissoras de radiodifusão a toda e qualquer Igreja!

Polêmica, até entre os poderosos, pois enquanto a Globo criminaliza o aborto na novela do horário mais assistido, a Record topou a campanha pelo direito de escolha da mulher. Há setores dos movimentos que acham importante as instituições religiosas estarem nos meios de comunicação. Parte das mulheres defende a participação maior nos conselhos institucionais, outras acham que isso não é prioridade. “Ter o foco na autonomia das mulheres e nas conseqüências do aborto clandestino”, recomenda Soninha, da Marcha.

“Fortalecer quem acredita no coletivo”, opina Dulce Xavier, das Jornadas. “O protagonismo das mulheres é questão política séria, somos NÓS que temos que estar lá”. Como Dulce, várias outras defenderam a necessidade de termos mais mulheres diretamente na política, de termos gabinetes feministas que de fato priorizem as questões das mulheres.

“Hoje no Brasil, parte dos algozes da inquisição com suas vestes e capuzes tem uma nova face: o paletó, o jaleco branco, a toga, que no legislativo, nos tribunais, serviços de saúde, delegacias se arvoram a prender, julgar, punir e condenar as mulheres que, em situação limite de sua vida, optaram pela prática do aborto como ultimo recurso diante de uma gravidez indesejada”, diz a declaração final da Assembléia Nacional (Box), aprovada no domingo pelas mulheres de todo o Brasil.

Diante do avanço do conservadorismo, são várias as tarefas para a construção da tão necessária unidade, e neste momento algumas foram tiradas para atuação na Conferência Nacional de Comunicação – Confecom, defendendo bandeiras como o fim das concessões para igrejas e a participação das mulheres em espaços de controle social da mídia. As resoluções finais foram afinadas pelas discussões em grupo, constituirão uma plataforma para a ampliação da Frente, sintetizada pelo chamamento da declaração final:
“Convocamos todas as mulheres a mobilizarem sua inquietude, rebeldia e indignação na luta feminista em defesa das mulheres! Convocamos os setores democráticos a somarem-se em aliança contra a criminalização das mulheres e dos movimentos sociais!”