O rumoroso processo contra a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que transformou em réu o seu líder maior, bispo Edir Macedo, tem como pano de fundo um fenômeno que não tem sido pautado pelos órgãos de imprensa. Mais que a confluência entre fé e finanças, tradicionalmente problemática, esse fenômeno revela a conformação, no Brasil recente, de um tripé no mínimo preocupante: igreja, partido político e radiodifusão (setor que abarca as emissoras de rádio e TV).
Recapitulemos rapidamente o teor das recentes acusações contra a IURD antes de entrarmos na análise desse fenômeno – que será apenas uma análise preliminar. Segundo o Ministério Público, os dirigentes da igreja teriam aplicado recursos obtidos de doações de fiéis na compra de bens e empresas em seus nomes pessoais. Agora, cabe à Justiça avaliar se eles aumentaram ou não aumentaram o seu patrimônio pessoal por meio da apropriação indevida dos donativos.
A lei brasileira proíbe essa prática, e as razões para isso são fáceis de entender. Igrejas não pagam impostos. A lei autoriza que o dinheiro arrecadado pelos religiosos seja inteiramente investido em obras de caridade ou na própria igreja, atividades que não têm finalidade lucrativa. Já as empresas privadas, estas sim estão obrigadas a recolher tributos, pois seu negócio tem finalidade de lucro. Caso alguns milhões de reais vindos de doações, sobre os quais não recai nenhuma taxação, migrem para abastecer negócios privados com fins de lucro, ou mesmo para aumentar patrimônio pessoal, a burla resulta evidente. Constitui crime.
No que se refere à ação criminal em curso, a Justiça decidirá. Mas as associações crescentes no Brasil entre a fé organizada, a radiodifusão e, às vezes, partidos políticos, essas parece que prosseguirão. Sequer têm sido estudadas, discutidas, compreendidas em sua complexa extensão. Eis o pano de fundo dessa história toda – pano de fundo que mal visualizamos.
Tratemos um pouco disso, então. Vejamos como tem recrudescido entre nós esse tripé: radiodifusão, partido político e igreja. Os três elementos deveriam caminhar separadamente, mas tem se aproximado cada vez mais. Quando se juntam, constituem um vetor que aponta para o poder. O tema é crucial para os que acompanham as comunicações no Brasil.
O tripé que espreita o poder
A radiodifusão, o primeiro dos três pés, é serviço público. Sim, ela pode ser explorada por empresas particulares, mas apenas mediante concessão pública. A Constituição estabelece, em seu artigo 221, que a radiodifusão deve dar preferência a finalidades “educativas, artísticas, culturais e informativas”, pois ela cumpre uma função de interesse comum e, nos conteúdos que veicula, não é desejável que as predileções de uns – predileções religiosas ou partidárias, por exemplo – difamem ou prejudiquem as preferências dos demais.
É por isso que, sobre a radiodifusão, como todos sabemos, pesam regulamentações que simplesmente não existem para os veículos impressos – que não operam a partir de concessões públicas. Isso significa que, de acordo com os princípios democráticos, que foram acolhidos pela Constituição, a radiodifusão é regida por regras que preservam o interesse geral, pois, vale repetir, é serviço público.
Os partidos políticos pertencem a outra esfera e devem assim permanecer, tanto que a lei faz restrições a vínculos entre candidatos e as emissoras. Um exemplo: o artigo 54 da Constituição impede que senadores e deputados mantenham contratos com empresas concessionárias de serviço público (e as emissoras são exatamente isso, concessionárias de serviço público).
A legislação eleitoral proíbe que candidatos a postos eletivos mantenham programas de rádio e televisão durante o período eleitoral. Essas restrições têm o objetivo de evitar que a radiodifusão deixe de ser um serviço público (serviço para todos) e se converta em serviço particular (para benefício de poucos) – ou seja, serviço que tem por único objetivo a promoção de interesses particulares. Esse tipo de legislação busca diminuir o risco de que as emissoras sejam instrumentalizadas por alguns candidatos em prejuízo de outros.
Se a lei consegue de fato atingir suas finalidades é outra conversa. Qualquer um é capaz de apontar dezenas de deputados e senadores que são, mais do que próximos, acionistas, donos ou dirigentes velados de emissoras. Não deveria ser assim, mas, infelizmente, é assim que é. Em várias regiões brasileiras, há clãs que se mantêm no poder graças ao uso abertamente partidário da radiodifusão.
Deixemos de lado essas tragédias, ao menos neste artigo. Tentemos aqui nos concentrar na lógica que orienta esses princípios democráticos. É uma lógica sábia, ainda que tão negligenciada. Tentemos identificar, apenas isso, identificar os motivos pelos quais a democracia, para funcionar melhor, tende a afastar, ou pelo menos tende a querer afastar a política partidária da condução dos meios de radiodifusão. Tentemos entender por que, para a própria saúde da democracia, é fundamental que a radiodifusão, como serviço público, e partidos políticos – que constituem feixes de interesses privados, mesmo quando se pretendem universais – operem segundo regras próprias, independentes uma da outra. Esse esforço nos mostrará que a radiodifusão articula e dá vida ao espaço público, espaço comum a todos, onde as disputas pelo poder têm lugar.
Os partidos são partes interessadas no poder e, portanto, não podem gerenciar as emissoras que prestam serviço público. Isso é – ou deveria ser – tão simples como é simples entender que o técnico de um time de futebol não pode dar ordens para o juiz e para os bandeirinhas. Isso é – ou deveria ser – tão óbvio como seria óbvio entender que a concessionária de uma rodovia federal não pode impedir a passagem dos automóveis cuja cor a desagrade. A concessionária de uma estrada mantém a estrada em bom estado, de modo a melhor atender os viajantes – ela não é dona da estrada. Do mesmo modo, a concessionária de uma freqüência de ondas eletromagnéticas não é dona da freqüência; ela apenas a explora para melhor atender os cidadãos.
E quanto às igrejas? Desde que a democracia assumiu como valor fundamental o respeito à liberdade religiosa de cada um – separando de uma vez por todas o Estado e a religião -, as igrejas pertencem à esfera privada. Por isso, dentro da lógica democrática, elas ocupam um terceiro campo em relação aos outros dois. Se emissoras de TV são serviço público e dependem de concessão do Estado para ser objeto da atividade econômica de particulares, as igrejas nascem, prosperam e morrem sem que o Estado seja chamado a interferir em seus destinos. Nem imposto elas pagam.
Se os partidos políticos, nascidos também na esfera privada, articulam-se com o objetivo de conquistar postos de comando da máquina pública, as igrejas cuidam de outros assuntos, cujo alvo não deve ser o poder político. Se o Estado é laico, não é concebível que uma religião pretenda disputar cargos eletivos para, a partir deles, imprimir aos poderes da República a sua doutrina particular. Lembremos, outra vez, a Constituição. Agora, o artigo 19:
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Outra vez, alguém vai dizer que isso tudo não passa de declaração inócua de boas intenções. Dirá que, na prática, a promiscuidade entre igreja e Estado no Brasil é intensa, é histórica etc., etc., etc. É verdade, mas, de novo, não importa. Não aqui. O objetivo deste texto não é denunciar que as leis são ineficazes. O meu propósito, repito, é identificar as razões de fundo da democracia nessa matéria. Importa visualizar, ainda que de longe, os motivos pelos quais a cultura democrática faz mais sentido quando sabe manter em seus domínios próprios a radiodifusão, a religião e a política.
No ideal democrático, se um cidadão gosta de ser dono de uma cadeia de TV, ele será concessionário de serviço público, mas, caso ele faça essa opção, não poderá ser ao mesmo tempo, digamos, um senador. (Tudo isso, claro, segundo o espírito da lei, segundo aquele ideal antigo, que anda meio empoeirado, mas que vive lá, mesmo que esquecido.) De outro lado, se um sujeito se sente chamado por Deus e se consagra à vida religiosa, ele não está autorizado a, nessa condição, postular o poder para subordinar o Estado aos ditames de sua fé. O Estado, afinal, é de todos, inclusive daqueles que não comungam dessa fé. Se o Estado é de todos, também são de todos os órgãos públicos, as estatais, as universidades públicas e… os serviços públicos – serviços públicos como a radiodifusão.
As telerreligiões e seus desdobramentos políticos
O proselitismo religioso pela TV se popularizou nos Estados Unidos e só depois aportou no Brasil. Aqui, fez escola não apenas entre evangélicos. Também o catolicismo se arrisca em redes próprias de emissoras. O uso de câmeras, microfones, estúdios, holofotes e antenas para pregar a suposta palavra do Senhor, segundo receitas variadas, é hoje um denominador comum entre seitas, agremiações confessionais e igrejas nacionais ou mesmo globalizadas. Nem de longe, essa vertente é uma exclusividade da Rede Record, reconhecidamente identificada com a IURD. Até mesmo no “campo público” – o das emissoras não-comerciais – o fenômeno se verifica. Várias emissoras públicas e mesmo estatais reservam horários em suas grades para a transmissão de missas católicas e apenas raramente, ou quase nunca, enxergam cerimônias de outros credos.
Também nas televisões públicas, portanto, é possível localizar a opção preferencial por uma forma de culto, o que equivale à segregação dos demais. A Record apenas chamou atenção, hoje, porque atingiu dimensões continentais. O que incomoda, nela, não é a promiscuidade entre fé e radiodifusão: o que nela incomoda é a escala, a proporção, a magnitude. Não fosse isso, pouca gente iria perder seu tempo falando disso.
O problema, entretanto, não é de escala, mas de conceito. Religiões e emissoras deveriam ser negócios muito mais separados do que de fato são. Se quiséssemos seguir à risca o ideal democrático e o que estabelece a Constituição, até poderíamos considerar admissível que igrejas comprassem faixas de horários em algumas programações, mas jamais toleraríamos como um dado natural que igrejas, de forma velada ou aberta, fossem simplesmente as proprietárias de grandes redes. Não toleraríamos porque, quando isso acontece, o caráter de serviço público da radiodifusão sai muito, mas muito arranhado. Ou mesmo mutilado.
No caso da Record e de seus vínculos com a IURD, há um terceiro elemento que deveria ser considerado: o Partido Republicano Brasileiro (PRB). Seu principal expoente no Congresso Nacional é o senador Marcelo Crivella, do Rio de Janeiro, também bispo (licenciado) da Universal. O partido soma apenas cinco parlamentares em Brasília (dois senadores e três deputados federais), cujos nomes costumam figurar nas listas da chamada “bancada evangélica”, que não para de crescer. O PRB se posiciona bem. Seu presidente de honra é ninguém menos que José Alencar, vice-presidente da República. Mangabeira Unger, um de seus filiados, foi titular de uma pasta no ministério do governo Lula.
Quais as reais relações entre a IURD e o PRB? Por enquanto, essa pergunta fica no ar.