Dinheiro público para a concentração privada

Ilustração: Provokat

O BNDES – banco estatal de fomento às políticas públicas e governamentais – acaba de reduzir sua taxa de juro anual de 6% para 4,5% nos financiamentos destinados às empresas de comunicação social que estão incorporando a tecnologia digital ao sistema de TV. O SBT, de Sílvio Santos, já embolsou 9,2 milhões de reais do BNDES e tudo indica que a Globo, Bandeirantes, Record e Rede TV tenham conseguido algo parecido, mas sem divulgação pela imprensa.

Em princípio, parece um negócio cristalino e inquestionável num país dominado pelo capitalismo neoliberal. É algo que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, também chamaria de sinal de “prosperidade”. Afinal, grandes empresas estão recebendo incentivos do tesouro nacional para modernizarem seu patrimônio – com a aquisição de equipamentos de última geração. Afinal, o Brasil avança na tecnologia de ponta que é usada apenas em alguns poucos países ricos e desenvolvidos do mundo globalizado.

Por trás dessa transação aparentemente normal entre Estado e iniciativa privada, estão encobertos os equívocos cometidos nas decisões governamentais contrários aos interesses do País e do povo brasileiro. Se governar é saber definir corretamente as prioridades, a escolha errada das prioridades denuncia um governo ruim. No caso, a maneira como a adoção do padrão digital da radiodifusão está sendo implantada merece uma boa reflexão e vários questionamentos – já que caberá à sociedade brasileira pagar todas as contas dos eventuais desatinos.

Primeiramente é preciso questionar porque o Brasil tem urgência em mudar todo o sistema de radiodifusão para uma tecnologia nova e mais sofisticada. Trata-se realmente de uma prioridade nacional? O sistema atual se tornou inviável? Essa análise é pertinente porque o investimento feito na nova tecnologia da radiodifusão, destinado especialmente para o sistema privado, poderia ser aplicado em outras necessidades mais urgentes, como um programa de moradias, a melhoria do sistema de saúde, a abertura de novas universidades federais, a reforma agrária, a modernização das estradas – enfim, no atendimento de várias demandas sociais e, ao mesmo tempo, em obras e empreendimentos geradores de mais empregos do que a mudança do modelo tecnológico.

Talvez a mais forte justificativa para a mudança de tecnologia esteja no fato de que o modelo digital possibilita democratizar o sistema de radiodifusão existente, na medida em que multiplica a capacidade de canais abertos de TV e abre espaço para a concessão de novos canais públicos e comunitários – para segmentos e setores da sociedade excluídos e sem acesso aos meios de comunicação de massa. Somente a democratização efetiva do sistema pode justificar uma política pública voltada para essa modernização tecnológica da radiodifusão.

Em segundo lugar, ainda não está claro para a sociedade porque o governo optou pelo modelo digital japonês, defendido pela TV Globo, e desprezou o modelo brasileiro desenvolvido por pesquisadores de várias universidades. É algo incompreensível que se abra mão do domínio do conhecimento e da tecnologia, com patente brasileira, para se adotar um modelo importado. Como é possível que o ministro das Comunicações e o presidente da República tenham escolhido a tecnologia japonesa sem que a sociedade, a comunidade científica e universitária, o Congresso Nacional, os trabalhadores e o Judiciário tenham debatido democraticamente tal decisão? Está claro que a opção feita é danosa ao Brasil, não apenas por aumentar a dependência tecnológica, mas, sobretudo, por aumentar a evasão dos recursos financeiros, o pagamento de royalties e a remessa de lucros para o exterior. Com certeza o Brasil perdeu uma boa chance de estimular o crescimento de seu parque industrial, a geração de empregos mais qualificados e de desenvolver uma tecnologia que pudesse ser compartilhada no Mercosul e com todos os países da América Latina.

Dinheiro público

Em terceiro, precisam ser questionadas as razões que levaram o governo federal a oferecer dinheiro público para o programa de mudança tecnológica, com juros privilegiados, sabendo que o setor da radiodifusão é altamente concentrado e controlado por alguns poucos grupos empresariais privados. É mais difícil entender porque as mesmas condições não são oferecidas aos pequenos agricultores, comerciantes e industriais que tenham projetos de expansão, já que estes têm possibilidade de gerar mais empregos e movimentar mais a economia do que a mudança de tecnologia dos grupos privados da radiodifusão. Enquanto o cidadão comum, no seu dia-a-dia paga juro mínimo de 3% ao mês, nos financiamentos e compras a crédito, e a maior parte dos agricultores, comerciantes e industriais precisa se socorrer no sistema bancário privado, submetidos à agiotagem legalizada dos mercados, os grandes grupos da comunicação têm linha de crédito especial no BNDES com 4,5% ao ano. Tudo indica que essa é apenas mais uma forma de transferir renda e recursos públicos para uma minoria empresarial e rica do País.

Finalmente, a sociedade precisa questionar porque os critérios adotados pelo BNDES são preenchidos facilmente pelos grandes grupos e não pelas emissoras isoladas. Tudo indica que a linha de crédito foi montada para favorecer a incorporação do padrão digital pelas principais redes de TV e deixar de fora as emissoras com poucos recursos patrimoniais e financeiros, as pequenas redes locais, educativas, universitárias e comunitárias. Uma das exigências do Programa de Apoio à Implementação do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (PROTVD) é o valor mínimo do financiamento fixado em R$5 milhões, com garantias pessoais, algo completamente fora da realidade da grande maioria das emissoras isoladas de TV.

Mais uma vez a decisão governamental parece apenas uma exigência de garantia financeira, uma medida recomendável para assegurar que o financiamento do BNDES tenha o devido retorno. No entanto, as restrições colocadas provocam conseqüências diretas na realidade do sistema de radiodifusão, entre as quais o distanciamento tecnológico – de qualidade nas transmissões – entre a elite poderosa dos concessionários de radiodifusão e os demais concessionários; a disputa desigual da audiência e no faturamento comercial; e, mais grave, a real possibilidade de ocorrer maior concentração do sistema de comunicação social nas mãos das grandes redes.

Nas condições atuais, as emissoras isoladas de TV não terão recursos próprios para comprar a nova tecnologia, correm o risco de serem incorporadas pelos grandes grupos ou deixarão de existir nos próximos anos, já que o modelo digital começa a vigorar no dia 2 de dezembro deste ano. Ou seja, o “avanço tecnológico” forçado, não prioritário para o Brasil, ao invés de proporcionar a democratização do sistema de radiodifusão, se transformou em mais um mecanismo contrário à democratização e que favorece ainda mais a concentração da comunicação social. Tudo isso com a conivência deliberada do governo federal.

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Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor da PUC-SP.

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