Se perguntarem o que de mais importante aconteceu no Brasil em 2009, não foi a vitória sobre a tão alardeada “crise econômica mundial”, nem a maior inserção do país no cenário mundial e tampouco a escolha do Rio de Janeiro para as Olimpíadas de 2016. O principal evento do ano aconteceu no apagar das luzes, na segunda quinzena de dezembro e recebeu uma cobertura pífia da Grande Mídia, especialmente da televisão: a I Conferência Nacional de Comunicação. Realmente não era de se estranhar esse tratamento. Afinal, num setor dominado nacionalmente por apenas seis ou sete famiglias, qual delas teria interesse em divulgar, e ainda por cima com isenção, as iniciativas para a sua democratização?
Mas num país em que há mais famílias com televisor do que com geladeira e quase mais celulares do que pessoas, discutir como se faz, se acessa e se distribui os produtos da comunicação é, para se dizer o mínimo, essencial. Especialmente num mundo pós-moderno de convergência e portabilidade das mídias e tecnologias audiovisuais, mediando as relações interpessoais e formatando as visões que temos desse mundo! Estranho mesmo foi ver chegar os caminhões de todas as redes de TV e um batalhão de repórteres ao prédio da Assembléia Legislativa de São Paulo, onde acontecia no final de novembro a etapa estadual da Confecom. Só depois do susto descobrimos que ali seria velado o corpo do ex-prefeito da capital, Celso Pitta. A comunicação, claro, estava fora da pauta dos noticiários e nenhuma das câmeras apontou para os debates.
Contudo, apesar de todas as dificuldades e percalços para convocação e realização da I Confecom, a conferência foi um tremendo sucesso. Primeiro pela enorme mobilização que ela gerou durante todo o ano e pelas múltiplas oportunidades públicas para um debate que era quase tabu no Brasil. Sem contar os inúmeros encontros preparatórios e reuniões esparsas de interessados no tema, somente nas etapas municipais e estaduais da Confecom participaram oficialmente cerca de 30 mil pessoas para que fossem eleitos os 1.684 delegados (20% representantes do poder público, 40% da sociedade civil não-empresarial como ONGs, sindicatos e movimentos sociais; e 40% dos empresários do setor).
Ao todo, foram aprovadas 672 propostas, das quais somente 71 tiveram de ir a votação na plenária final, por tratarem de temas divergentes, e 601 receberam mais de 80% de aprovação ainda nos grupos de trabalho, tornando desnecessária a votação (a lista completa pode ser baixada no endereço http://www.confecom.com.br/propostas_aprovadas ). O próprio critério de votação foi uma vitória em si, já que no momento de abertura dos trabalhos os grandes empresários tentaram novamente mudar o regimento interno para ter mais controle sobre os chamados “temas sensíveis” antes da plenária. Com alguma flexibilidade e muita maturidade as partes conseguiram chegar a um acordo que garantiu a instalação e a continuidade da conferência. “O grande saldo da Confecom foi mesmo a pavimentação de uma estrada de diálogo entre os diferentes seguimentos da comunicação que certamente permitirá novos avanços políticos no setor”, acredita Renato Rovai, editor da revista Fórum e um dos articuladores do grupo de “empresários progressistas” que participou do evento. “Pode não ser tudo o que esperávamos, mas não se conquista o céu por decreto e o processo democrático de fato demanda tempo, organização e ampliação dos campos de debate”. Nesse sentido, segundo ele, foi fundamental a atuação dos 20 “empresários progressistas” paulistas e de mais cerca de 20 vindos de outros estados que estavam ideologicamente mais alinhados aos movimentos sociais.
Entre as propostas importantes aprovadas na Confecom, Rovai cita algumas que sequer precisam passar pelo Congresso para serem efetivadas. “Com o aval de mais de 80% de aprovação por parte de empresários, ONGs e do próprio governo, propostas como a da criação do Conselho Nacional de Comunicação Social, que necessita apenas de um despacho ou decreto do executivo, ganham condições políticas para virarem realidade rapidamente”, diz. “O mesmo pode acontecer com a descriminalização das rádios comunitárias e a retirada do poder de fechamento pela Policia Federal, ou a melhor distribuição da propaganda governamental em veículos regionais, ou ainda a possibilidade dos Correios se tornarem uma alternativa para distribuição de jornais e revistas, quebrando o quase monopólio da Abril no setor com a fusão das distribuidoras Dinap e Chinaglia”.
A Secretária de Comunicação da CUT Nacional, Rosane Bertotti, que fez parte do Comitê de Organização da Confecom, segue pela mesma linha. “Foi uma conferência bem diferente das outras que tiveram participação da CUT, com necessidade muito maior de maturidade, diálogo e negociação com os diversos setores da sociedade representados”, analisa. “Mas mesmo propostas importantes para nós que não foram aprovadas na votação final, como por exemplo o ‘direito de antena’ para o movimento sindical garantir espaço dentro da programação das TVs privadas, tiveram mais de 55% dos votos, o que cria uma possibilidade real de conquistarmos esse direito mais à frente”. Ela lembra que na Argentina o povo teve de ir às ruas para o governo conseguir aprovar a nova lei de comunicações do país e que talvez isso também seja necessário no Brasil. “Mas para isso precisamos nos rearticular já a partir do Fórum Social Mundial, no final do mês em Porto Alegre, e seguir mobilizados para garantir a implantação, ainda esse ano, do Conselho Nacional de Comunicação Social, da regulamentação das rádios comunitárias e da exigência de formação profissional em comunicação”, afirma. “Além dessa pauta prioritária, devemos também iniciar os preparativos para II Confecom em 2012”.
João Brant, um dos coordenadores do Coletivo Intervozes, grupo bastante atuante na luta pela democratização dos meios de comunicação, também acredita ser fundamental manter e fortalecer a mobilização conquistada na I Confecom. “A conferência provou que é possível debater os diferentes pontos de vista sobre a comunicação e que apesar das divergências, até por interesses comerciais ou de poder político, há um grande espaço para mudanças consensuais”, atesta. “Temos de manter e ampliar esse saldo organizativo da sociedade civil não-empresarial para batalhar pela implementação das propostas e para isso já estamos começando a organizar novas reuniões estatuais”. Para Brant, as propostas aprovadas por consenso representam um enorme avanço e definem uma boa agenda para temas como um novo marco regulatório para as concessões e renovações de concessões de rádio de TV; para o fornecimento de banda larga de internet em regime público; para o fortalecimento do sistema público de comunicação; para o incentivo à produção nacional e regional (cujas propostas ainda precisam ser melhor trabalhadas); a proibição da propriedade cruzada de meios de comunicação; a imposição do respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente na propaganda; a garantia de tratamento condigno para mulheres, negros e população LGBT; etc.
Por Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá
Publicado originariamente na Ideias em Revista nº27
Jan/Fev 2010
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