Entre os elementos que entrelaçam a malha de valores que envolve a única espécie sapiente do planeta, há cada vez mais fibra óptica e microchips que aproximam visões de mundo até então separadas pela geografia e delays da mídia de massa do século passado. A Internet colocou lado a lado na tela do computador xiitas e trekkies, zapatistas e donas de casa.
Essa mistura globalizada pode ser tão enriquecedora para os repertórios individuais dos cidadãos conectados, quanto perigosa, ao confrontar ideias e costumes.
Por isso, a “Diversidade Cultural e Linguística” foi elencada na Declaração Multissetorial do NETmundial, encontro internacional sobre o futuro da Governança da Internet, realizado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e a /1Net, nos dias 23 e 24 de abril de 2014 em São Paulo.
Lê-se no documento final do encontro: “A governança da Internet deve respeitar, proteger e promover a diversidade cultural e linguística em todas as suas formas”.
A influência norte-americana na Internet é alvo de críticas pela comunidade internacional há anos, que reivindicam o compartilhamento de decisões que afetam a segurança e a distribuição de recursos da infraestrutura da rede, hoje sob gerenciamento da ICANN (acrônimo em inglês para Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números), entidade sem fins lucrativos, subordinada ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos.
Diversidade Cultural: a ecologia dos símbolos
A resistência estadunidense a qualquer iniciativa contra-hegemônica é esperada em toda reunião internacional. Foi assim durante a Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança Climática em 1997, no qual o país se recusou a assinar o Tratado de Quioto pela redução da emissão dos gases na atmosfera por considerá-lo prejudicial à sua economia interna e foi assim também na Convenção sobre a Diversidade Cultural da UNESCO, realizada em Paris em 2005. A objeção norte-americana, desta vez, se deu por considerar a redação do texto “protecionista” e “ambígua” ao expressar que os países possam apoiar determinados produtos culturais, independentemente das regras de livre comércio.
Posturas unidimensionais sempre foram uma ameaça a diversidade. Seja ambiental ou cultural. Assim como a biodiversidade é considerada essencial para a vida na Terra, a diversidade cultural pode ser fundamental para a existência de uma sociedade equilibrada.
A professora Ana Carla Fonseca Reis, em seu trabalho apresentado no II Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (ENECULT), relacionou a similaridade existente entre as ameaças e desafios apresentados às diversidades cultural e biológica na Convenção pela Diversidade Biológica, em 1992: “A preservação e o uso duráveis da diversidade biológica reforçarão as relações amigáveis entre os Estados e contribuirão à paz da humanidade”, com o texto da Convenção pela Diversidade Cultural: “O respeito à diversidade das culturas, à tolerância, ao diálogo e à cooperação, em um clima de confiança e de entendimento mútuos, estão entre as melhores garantias da paz e da segurança internacional”.
Em uma entrevista para o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILPP), o Presidente da Fundación Redes y Desarrollo (FUNREDES), Daniel Pimienta, destaca que ainda existe um longo caminho a ser superado “para uma justa representação das línguas no mundo virtual, como um espelho do mundo real” em um ambiente ainda com uma forte predominância da língua inglesa. “De 6000 a 9000 línguas ainda existentes no mundo, menos de 500 têm uma existência digital (uma codificação que pode representá-los em um computador), a Wikipedia é, de longe, a aplicação que suporta a maior diversidade, tem 264 idiomas. O Google processa cerca de 54 línguas” lembra Pimienta.
O debate internacional sobre a Diversidade Cultural é realizado desde a criação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 1945. Desde então a organização realiza ações de fomento a salvaguarda do patrimônio cultural e a preservação de tradições orais, além de encontros como a Conferência Mundial sobre Direitos Linguísticos, realizada na Espanha, em 1996.
A Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais foi adotada pela Conferência Geral da UNESCO em 2005, mas só entrou em vigor em 2007, após ser ratificada por mais de 50 países.
No mesmo ano, o Brasil, que sediou o Seminário Internacional sobre Diversidade Cultural, também aprovou a Convenção no Senado, coroando um protagonismo nas articulações internacionais em prol da causa.
O Ministério da Cultura brasileiro já promovia políticas direcionadas à proteção e promoção da diversidade através do programa Cultura Viva, direcionado aos diversos segmentos sociais como os indígenas, os quilombolas, ribeirinhos, público LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) desde o início da gestão de Gilberto Gil, durante o governo Lula, criando em 2003 uma secretaria específica para a Identidade e a Diversidade.
Em consonância com a Convenção da Diversidade cultural, o MinC realizou ações que incidiram sobre o fenômeno cultural em ações transversais pelo prisma da diversidade cultural. Uma destas ações foi a realização do Seminário e Oficina de Indicação de Políticas Públicas para a Cultura e Comunicação no Rio de Janeiro, em 2012. O objetivo do evento foi o debate e proposição de políticas públicas para a construção do Programa Comunica Diversidade, que visa a promoção e difusão da diversidade cultural.
Outra contribuição brasileira para o debate da Diversidade Cultural no mundo foi a aprovação do Marco Civil da Internet, em Abril de 2014, durante a NETMundial.
O Marco Civil trata de pontos prioritários no que se refere à proteção e promoção da diversidade cultural na Internet, ao regulamentar a neutralidade, privacidade, proteção e liberdade de expressão na rede.
Diversidade analógica e digital
Durante a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação na Tunísia, em 2005, onde a diversidade cultural e linguística no ciberespaço foi identificada como uma das prioridades, foi lançada pela Academia Africana das Línguas a “Rede Maaya” com a missão de valorizar e promover a diversidade linguística como base fundamental da comunicação.
Os objetivos da Rede Maaya são os seguintes:
Incentivar governos e instituições a adotar e implementar medidas que favoreçam um multilinguismo equitativo;
Promover uma educação bi- e/ou multilingue baseada na língua materna, em todos os níveis da educação no mundo inteiro a fim de garantir igualdade social e entre os sexos;
Promover a localização de “software” bem como o acesso de todas as línguas no ciberespaço;
Facilitar o empoderamento das comunidades linguísticas no mundo inteiro no desenvolvimento e uso da sua própria língua;
Contribuir para a criação e o intercâmbio de recursos linguísticos;
No Fórum de Governança da Internet (IGF), realizado em 2007 no Rio de Janeiro, ocorreu a reunião da Coalizão Dinâmica pela Carta de Direitos da Internet, que tratou sobre a diversidade cultural na Internet.
Durante o evento, em entrevista para a Observatório do Direito à Comunicação, Catherine Trautmann, do Parlamento Europeu, declarou que a verdadeira questão de fundo do documento foi “como podemos compreender e respeitar as diferenças étnicas e a diversidade cultural em um acesso universal, em um espaço que é internacional”.
Um dos maiores desafios para promover maior diversidade na rede é a expansão do conteúdo em outras línguas. Dentro desta problemática, a UNESCO assinou um acordo em 2009 com a ICANN, que prevê o registros de domínios que não pertençam ao alfabeto latino, passando a aceitar endereços de websites em caracteres de alfabetos não-latinos, como árabe e chinês.
Países como Tailândia e China já usavam mecanismos para driblar a dificuldade, conseguindo usar endereços completos no alfabeto local. O primeiro site a adotar oficialmente o endereço em Árabe foi o do Ministério das Comunicações do Egito, e, ironicamente, o primeiro domínio registrado com alfabeto Árabe naquele país foi do então presidente Mohamed Mubarak (مبارك.مصر), o mesmo, que anos depois, durante a Revolução Egípcia de 2011 mandaria derrubar a internet no país para abafar o poder de articulação dos manifestantes, que utilizaram as mídias sociais para articular os protestos que resultaram em sua renúncia.
No capítulo dedicado à “Comunicação e conteúdo cultural” do Relatório de 2013 da UNESCO, o documento alerta para o fato de que, mesmo com a ampla digitalização da imprensa, cinema, literatura e televisão deve-se considerar até que ponto essas expressões traduzem a realidade e a dinâmica da Diversidade Cultural no mundo.
O abismo digital entre aqueles que ainda não possuem acesso a rede mundial de computadores continua a limitar as oportunidades de um verdadeiro intercâmbio cultural.
A Internet tem potencial para fortalecer a democracia através da promoção da identidade e interesses de minorias. Este potencial pode superar o desequilíbrio de poder político e econômico entre o local e o global, e transpor as fronteiras entre os diferentes grupos da sociedade.