Por Marisa Midori Deaecto, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
OPLS 49-2015, projeto de lei de autoria de Fátima Bezerra (PT), ex-senadora e atual governadora do Rio Grande do Norte, institui a política nacional de fixação do preço do livro. De forma resumida, a lei garante que o preço de capa definido pela editora não poderá ser alterado no prazo de um ano, a contar da data de edição. E os descontos geralmente praticados nos lançamentos não poderão exceder o limite de 10% sobre o valor originalmente estipulado para a venda do produivro..
Para se ter uma ideia do que a proposta da lei do preço único representa, de modo concreto, para o mercado editorial brasileiro, em 2023 os livros novos constituíram 24% do total de 45 mil títulos editados. A lei recai, portanto, sobre essa margem de lançamentos, os quais, como veremos mais adiante, trazem os retornos financeiros mais rápidos, capitalizando editores e livrarias – e, claro, toda a cadeia produtiva do livro.
Há quem pense que a Lei Cortez, ao limitar os descontos livremente estipulados nos pontos de venda, tornaria o livro mais caro. Será?
A questão do preço do livro, sabemos, é matéria complexa e exige uma abordagem interdisciplinar. Estão em jogo tanto as condições do ecossistema editorial, que influenciam os custos de produção e de distribuição do produto, quanto fatores menos palpáveis, que definem seu valor simbólico. Com vistas a centrar a presente exposição na Lei Cortez, aqui entendida como um mecanismo destinado a estimular e expandir o mercado editorial, uma abordagem histórico-sociológica talvez nos ajude a equacionar seus efeitos sobre o mundo dos livros e a vida dos leitores.
Mudança de paradigma
O projeto de lei que hoje tramita na Comissão de Educação, Cultura e Esporte, sob a relatoria da senadora Tereza Leitão (PT-PE), tem suas matrizes na legislação francesa. Na verdade, a Lei nº 81-766, mundialmente conhecida como Lei do Preço Único, ou Lei Lang, instituída em 10 de agosto de 1981, é menos branda do que a proposta brasileira, ao fixar o preço de capa e um limite máximo de 5% de desconto por um período de dois anos.
Passados mais de 40 anos, a Lei Lang mantém alta a sua popularidade, tanto entre os profissionais do livro, quanto por parte da opinião pública. Entre os mais jovens, que não vivenciaram a campanha acalorada que mobilizou os franceses nos anos 1970, a fixação do preço do livro na capa é algo “natural” e a expectativa de grandes descontos sobre uma edição recém-lançada inexiste.
Isso ocorre, entre muitos outros fatores que não podem ser ignorados, a começar pela alfabetização massiva e os altos índices de leitura que o país historicamente apresenta, porque, ao contrário do que vemos no Brasil, o preço do livro não é um tabu para os leitores franceses. A Lei Lang é um sucesso e faz parte da cultura do país, tanto quanto sua literatura, suas editoras e suas livrarias.
A Lei Lang se impôs frente a uma cultura de massas que se tornava hegemônica nos anos de 1970. O mercado editorial se viu então tomado por best-sellers – não raro, impulsionados pela televisão – que eram vendidos nas grandes redes de supermercados, com (desculpe o trocadilho!) superdescontos. Nessa mesma época, a ascensão do modelo de comércio multimidiático fundado pela Fnac viria ameaçar de uma vez por todas a tranquilidade das editoras e livrarias tradicionais que compunham a cena da vida parisiense e provinciana.
Como se não bastassem essas mudanças culturais profundas, é preciso considerar que a crise do petróleo alavancou as taxas de desemprego e a inflação na Europa, além de reacender a crença no Estado mínimo e na livre-concorrência como molas propulsoras do mercado. No mundo dos livros, isso queria dizer que editores e livreiros resistentes ou incapazes de se dobrar às novas tendências estariam fadados ao fracasso. Para os mais perspicazes, era evidente que a luta se colocava contra a tendência à verticalização das estruturas editoriais (dos mais fortes para os mais fracos) e ao funcionamento de dois circuitos: um de best-sellers impressos em altas tiragens, com forte apelo midiático e bem posicionados nas gôndolas das grandes redes varejistas, com descontos muito atrativos; e outro, mais modesto, de livros de vária sorte, legados ao anonimato, logo, vendidos a preços cada vez mais inacessíveis.
Diante desse cenário de crise, a Lei Lang representou uma resposta política a um problema econômico. Noutros termos, uma mudança de paradigma que consistiu em firmar um pacto do Estado com a sociedade civil, após a vitória do Partido Socialista, no início da era Mitterrand (1981-1995).
A Grã-Bretanha seguiu um curso contrário ao abolir o Net Book Agreement, em 1995, após a pressão das então novíssimas megastores e em virtude da esperança nutrida, por parte de alguns editores, de que a livre-concorrência entre os players viria dinamizar o mercado. Sete anos mais tarde, escreve o economista Markus Gerlach, em Proteger o Livro: Desafios Culturais, Econômicos e Políticos do Preço Fixo: “[o fim do NBA provocou] a constituição de um ‘mercado de duas velocidades’ que gera uma nova cultura de best-sellers. Com exceção dos 1% referentes aos best-sellers, os livros tendem a se tornar mais caros e menos disponíveis para o leitor. Os profissionais do livro se veem forçados a seguir uma dinâmica que desloca a concorrência da qualidade editorial e dos serviços para critérios puramente econômicos como a base financeira e o tamanho crítico das empresas”. Tanto no passado, quanto no presente, existe o entendimento de que a concorrência predatória acaba por se apresentar nociva ao ecossistema do livro. No caso britânico, o impacto não foi tão devastador em virtude do peso das edições anglo-americanas no comércio mundial. Ou seja, a macroeconomia acabou por equilibrar as fragilidades do mercado interno.
Uma campanha veiculada na França, em 2021, destinada a celebrar os 40 anos da Lei Lang, apoiou-se na seguinte divisa: “A qualidade de nossas livrarias é única. O preço do livro também”. Isso significa que em um mundo diverso, ou bibliodiverso, a concorrência se desloca do preço para a qualidade dos serviços, o que pode se traduzir em uma grande variedade de títulos. Ou, movimento já observado em muitos lugares, livrarias especializadas – nichadas.
Ademais, a padronização dos preços na fase de lançamento do produto, no momento em que há maior giro de capital, torna as estruturas de produção e venda mais dinâmicas, logo, mais diversificadas. E é nesse ponto que se verifica um ciclo virtuoso da economia.
Quanto maior a rede de distribuição, maior a capilaridade do produto, garantida pela ação do e-commerce e das livrarias, que atuarão sob as mesmas regras, mas também pelas feiras, salões, festivais, coletivos, rodas literárias, enfim, por qualquer iniciativa que aproxime o livro do público leitor. Nesse novo cenário, o editor poderá investir em tiragens mais robustas, de modo a diluir os custos de produção nos exemplares impressos, barateando, por consequência, o preço de capa. Parece igualmente correto afirmar que em um mercado estável e previsível as edições poderão ser lançadas com preços atraentes, uma vez que os editores não se sentirão mais coagidos a ceder descontos que comprometem uma margem minimamente segura para a continuidade de seus projetos.
Bibliodiversidade e desigualdade
É claro que a Lei Cortez não se apresenta como uma panaceia para todos os males do ecossistema editorial brasileiro. Ela já prestará um grande serviço se estimular a abertura de novas livrarias, considerando o caráter rarefeito e desigual de sua distribuição. Segundo dados publicados pela Associação Nacional de Livrarias (ANL), em 2023 foram recenseados 2.972 estabelecimentos. O País possui 5.570 municípios. “O Sudeste lidera com 1.814 espaços, seguido pelo Sul (561), Nordeste (334), Centro-Oeste (165) e Norte (98)”. Enquanto isso, 2.598 municípios não dispõem de livrarias.
Mas as desigualdades regionais levantam um outro sinal de alerta. Por isso, é difícil imaginar o êxito de um projeto de lei que interfere no preço do livro sem o apoio amplo e irrestrito da população. No México, por exemplo, a lei funciona bem na capital e em cidades desenvolvidas, mas ela se torna letra morta na medida em que se adentra nas regiões mais desfavorecidas do país.
Donde a importância do debate, da informação e do esclarecimento sobre o impacto positivo da lei para o público, considerando que as questões relacionadas ao acesso ao livro e à leitura precedem a barreira do preço.
O cenário atual é bastante favorável. O PLS 49-2015 voltou a tramitar no Senado e as entidades do livro não têm poupado esforços para difundir os propósitos da lei de regulação do preço.
Os noticiários estamparam nas últimas semanas matérias otimistas quanto ao futuro do livro impresso, no Brasil e no mundo. Segundo Chantal Retivo-Alessi, ceo da HarperCollins Publisher, “há um ressurgimento da leitura de livros, especialmente em formato físico” – e continua – “as pessoas estão cansadas das telas digitais”.
Talvez esta seja uma das explicações para o êxito da 27ª Bienal do Livro de São Paulo, ocorrida entre os dias 6 e 15 de setembro. Pelo menos, é o que apontam os resultados divulgados pela imprensa: mais de 722 mil visitantes, com destaque para o público jovem e aumento de 83% no faturamento diário. Ainda é cedo para avaliar os resultados reais dessa euforia para um desenvolvimento sustentável da bibliodiversidade, a médio e longo prazos. E embora não se possa mensurar com ferramentas preconcebidas a efetividade das redes sociais, ou mais propriamente, dos influencers na formação dos leitores, parece correto que uma nova onda de “leitores digitalizados” e seduzidos pelo velho códice impresso tem mudado significativamente a “cara” do mercado.
Da mesma maneira que as Bienais desempenham seu poder de atração junto ao grande público, as feiras universitárias têm um peso importante para a sustentação do ecossistema editorial. Nesse sentido, a Festa do Livro da USP se apresenta como uma jabuticaba legitimamente brasileira semeada no solo da Universidade. O evento surgiu há 26 anos como uma reação das editoras universitárias frente à dificuldade de tornar seus livros visíveis nas livrarias tradicionais. O modelo foi replicado por outras universidades brasileiras, embora sem a mesma magnitude que a iniciativa uspiana atingiu, sobretudo a partir de 2015, quando passou a ocupar uma área bem mais importante no campus Butantã. Segundo dados fornecidos pela Edusp, em 2024 a Festa recebeu 212 editoras, dentre as quais 32 universitárias, mais de 300 selos editoriais, com uma média de público na ordem de 10 a 12 mil pessoas por dia.
Hoje a Festa se apresenta como um verdadeiro laboratório da bibliodiversidade, tanto pelo número e variedade de editoras que reúne, quanto pela diversidade dos perfis de seus frequentadores.
A experiência uspiana demonstrou que é forte a interdependência de todos os setores do mercado editorial, desde as editoras especializadas em livros de alta vendagem até as acadêmicas. Afinal de contas, essa distinção se dilui na dinâmica da Festa. Se hoje esse modelo de venda direta, com 50% de desconto, parece nocivo às livrarias, é preciso considerar o impacto positivo da iniciativa para a formação de um público que vive não raro distante do mundo dos livros. Ademais, se aprovada, a lei de regulação do preço do livro virá apenas oficializar algumas tendências já verificadas nas últimas edições da Festa do Livro da USP: as grandes editoras tendem a não expor seus últimos lançamentos e as vendas são mediadas por representantes do setor livreiro.
Não existem estudos que permitam mensurar o impacto econômico da Festa do Livro da USP sobre as livrarias da cidade. Tudo o que se sabe é que as livrarias de rua apresentam um movimento ascendente, desde o fechamento das megastores Cultura e Saraiva. Por outro lado, não restam dúvidas quanto ao papel formador de gostos e de hábitos de leitura que a Festa desempenha, o que pode, certamente, favorecer os próprios livreiros e tantos outros circuitos de venda e de difusão da leitura na capital.
Diferente da França, exemplo evocado neste artigo, devemos considerar que o déficit de leitores e de livrarias no País constitui uma barreira multissecular, difícil de transpor. Mesmo em centros urbanos dinâmicos como São Paulo, as livrarias se concentram nos bairros de classe média. No limite, em áreas que agregam uma vida cultural própria, a exemplo do Centro expandido da capital, que passa por um processo de gentrificação, ou mesmo no tradicional bairro da Bela Vista. A cartografia das livrarias de São Paulo aponta para a necessidade de mecanismos de estímulo e suporte à abertura de mais pontos de venda e de cultura literária – além das bibliotecas, é claro! – em todos os quadrantes da cidade, algo que a Lei Cortez, por suas limitações, não pode instituir.
Mas a bibliodiversidade não diz respeito exclusivamente às questões do mercado. Bibliodiversidade se apresenta, hoje, como uma ideia-força para qualquer abordagem que assuma o ecossistema editorial, as bibliotecas e o futuro dos livros e dos leitores como temas capitais para o desenvolvimento material e humano do País. Sob tal perspectiva, a Lei Cortez representa uma mudança de paradigma necessária nas relações entre a economia e a cultura. Ela é a porta de entrada para um debate que está longe de se esgotar.
Por Marisa Midori Deaecto, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
OPLS 49-2015, projeto de lei de autoria de Fátima Bezerra (PT), ex-senadora e atual governadora do Rio Grande do Norte, institui a política nacional de fixação do preço do livro. De forma resumida, a lei garante que o preço de capa definido pela editora não poderá ser alterado no prazo de um ano, a contar da data de edição. E os descontos geralmente praticados nos lançamentos não poderão exceder o limite de 10% sobre o valor originalmente estipulado para a venda do produto.
Para se ter uma ideia do que a proposta da lei do preço único representa, de modo concreto, para o mercado editorial brasileiro, em 2023 os livros novos constituíram 24% do total de 45 mil títulos editados. A lei recai, portanto, sobre essa margem de lançamentos, os quais, como veremos mais adiante, trazem os retornos financeiros mais rápidos, capitalizando editores e livrarias – e, claro, toda a cadeia produtiva do livro.
Há quem pense que a Lei Cortez, ao limitar os descontos livremente estipulados nos pontos de venda, tornaria o livro mais caro. Será?
A questão do preço do livro, sabemos, é matéria complexa e exige uma abordagem interdisciplinar. Estão em jogo tanto as condições do ecossistema editorial, que influenciam os custos de produção e de distribuição do produto, quanto fatores menos palpáveis, que definem seu valor simbólico. Com vistas a centrar a presente exposição na Lei Cortez, aqui entendida como um mecanismo destinado a estimular e expandir o mercado editorial, uma abordagem histórico-sociológica talvez nos ajude a equacionar seus efeitos sobre o mundo dos livros e a vida dos leitores.
Mudança de paradigma
O projeto de lei que hoje tramita na Comissão de Educação, Cultura e Esporte, sob a relatoria da senadora Tereza Leitão (PT-PE), tem suas matrizes na legislação francesa. Na verdade, a Lei nº 81-766, mundialmente conhecida como Lei do Preço Único, ou Lei Lang, instituída em 10 de agosto de 1981, é menos branda do que a proposta brasileira, ao fixar o preço de capa e um limite máximo de 5% de desconto por um período de dois anos.
Passados mais de 40 anos, a Lei Lang mantém alta a sua popularidade, tanto entre os profissionais do livro, quanto por parte da opinião pública. Entre os mais jovens, que não vivenciaram a campanha acalorada que mobilizou os franceses nos anos 1970, a fixação do preço do livro na capa é algo “natural” e a expectativa de grandes descontos sobre uma edição recém-lançada inexiste.
Isso ocorre, entre muitos outros fatores que não podem ser ignorados, a começar pela alfabetização massiva e os altos índices de leitura que o país historicamente apresenta, porque, ao contrário do que vemos no Brasil, o preço do livro não é um tabu para os leitores franceses. A Lei Lang é um sucesso e faz parte da cultura do país, tanto quanto sua literatura, suas editoras e suas livrarias.
A Lei Lang se impôs frente a uma cultura de massas que se tornava hegemônica nos anos de 1970. O mercado editorial se viu então tomado por best-sellers – não raro, impulsionados pela televisão – que eram vendidos nas grandes redes de supermercados, com (desculpe o trocadilho!) superdescontos. Nessa mesma época, a ascensão do modelo de comércio multimidiático fundado pela Fnac viria ameaçar de uma vez por todas a tranquilidade das editoras e livrarias tradicionais que compunham a cena da vida parisiense e provinciana.
Como se não bastassem essas mudanças culturais profundas, é preciso considerar que a crise do petróleo alavancou as taxas de desemprego e a inflação na Europa, além de reacender a crença no Estado mínimo e na livre-concorrência como molas propulsoras do mercado. No mundo dos livros, isso queria dizer que editores e livreiros resistentes ou incapazes de se dobrar às novas tendências estariam fadados ao fracasso. Para os mais perspicazes, era evidente que a luta se colocava contra a tendência à verticalização das estruturas editoriais (dos mais fortes para os mais fracos) e ao funcionamento de dois circuitos: um de best-sellers impressos em altas tiragens, com forte apelo midiático e bem posicionados nas gôndolas das grandes redes varejistas, com descontos muito atrativos; e outro, mais modesto, de livros de vária sorte, legados ao anonimato, logo, vendidos a preços cada vez mais inacessíveis.
Diante desse cenário de crise, a Lei Lang representou uma resposta política a um problema econômico. Noutros termos, uma mudança de paradigma que consistiu em firmar um pacto do Estado com a sociedade civil, após a vitória do Partido Socialista, no início da era Mitterrand (1981-1995).
A Grã-Bretanha seguiu um curso contrário ao abolir o Net Book Agreement, em 1995, após a pressão das então novíssimas megastores e em virtude da esperança nutrida, por parte de alguns editores, de que a livre-concorrência entre os players viria dinamizar o mercado. Sete anos mais tarde, escreve o economista Markus Gerlach, em Proteger o Livro: Desafios Culturais, Econômicos e Políticos do Preço Fixo: “[o fim do NBA provocou] a constituição de um ‘mercado de duas velocidades’ que gera uma nova cultura de best-sellers. Com exceção dos 1% referentes aos best-sellers, os livros tendem a se tornar mais caros e menos disponíveis para o leitor. Os profissionais do livro se veem forçados a seguir uma dinâmica que desloca a concorrência da qualidade editorial e dos serviços para critérios puramente econômicos como a base financeira e o tamanho crítico das empresas”. Tanto no passado, quanto no presente, existe o entendimento de que a concorrência predatória acaba por se apresentar nociva ao ecossistema do livro. No caso britânico, o impacto não foi tão devastador em virtude do peso das edições anglo-americanas no comércio mundial. Ou seja, a macroeconomia acabou por equilibrar as fragilidades do mercado interno.
Uma campanha veiculada na França, em 2021, destinada a celebrar os 40 anos da Lei Lang, apoiou-se na seguinte divisa: “A qualidade de nossas livrarias é única. O preço do livro também”. Isso significa que em um mundo diverso, ou bibliodiverso, a concorrência se desloca do preço para a qualidade dos serviços, o que pode se traduzir em uma grande variedade de títulos. Ou, movimento já observado em muitos lugares, livrarias especializadas – nichadas.
Ademais, a padronização dos preços na fase de lançamento do produto, no momento em que há maior giro de capital, torna as estruturas de produção e venda mais dinâmicas, logo, mais diversificadas. E é nesse ponto que se verifica um ciclo virtuoso da economia.
Quanto maior a rede de distribuição, maior a capilaridade do produto, garantida pela ação do e-commerce e das livrarias, que atuarão sob as mesmas regras, mas também pelas feiras, salões, festivais, coletivos, rodas literárias, enfim, por qualquer iniciativa que aproxime o livro do público leitor. Nesse novo cenário, o editor poderá investir em tiragens mais robustas, de modo a diluir os custos de produção nos exemplares impressos, barateando, por consequência, o preço de capa. Parece igualmente correto afirmar que em um mercado estável e previsível as edições poderão ser lançadas com preços atraentes, uma vez que os editores não se sentirão mais coagidos a ceder descontos que comprometem uma margem minimamente segura para a continuidade de seus projetos.
Bibliodiversidade e desigualdade
É claro que a Lei Cortez não se apresenta como uma panaceia para todos os males do ecossistema editorial brasileiro. Ela já prestará um grande serviço se estimular a abertura de novas livrarias, considerando o caráter rarefeito e desigual de sua distribuição. Segundo dados publicados pela Associação Nacional de Livrarias (ANL), em 2023 foram recenseados 2.972 estabelecimentos. O País possui 5.570 municípios. “O Sudeste lidera com 1.814 espaços, seguido pelo Sul (561), Nordeste (334), Centro-Oeste (165) e Norte (98)”. Enquanto isso, 2.598 municípios não dispõem de livrarias.
Mas as desigualdades regionais levantam um outro sinal de alerta. Por isso, é difícil imaginar o êxito de um projeto de lei que interfere no preço do livro sem o apoio amplo e irrestrito da população. No México, por exemplo, a lei funciona bem na capital e em cidades desenvolvidas, mas ela se torna letra morta na medida em que se adentra nas regiões mais desfavorecidas do país.
Donde a importância do debate, da informação e do esclarecimento sobre o impacto positivo da lei para o público, considerando que as questões relacionadas ao acesso ao livro e à leitura precedem a barreira do preço.
O cenário atual é bastante favorável. O PLS 49-2015 voltou a tramitar no Senado e as entidades do livro não têm poupado esforços para difundir os propósitos da lei de regulação do preço.
Os noticiários estamparam nas últimas semanas matérias otimistas quanto ao futuro do livro impresso, no Brasil e no mundo. Segundo Chantal Retivo-Alessi, ceo da HarperCollins Publisher, “há um ressurgimento da leitura de livros, especialmente em formato físico” – e continua – “as pessoas estão cansadas das telas digitais”.
Talvez esta seja uma das explicações para o êxito da 27ª Bienal do Livro de São Paulo, ocorrida entre os dias 6 e 15 de setembro. Pelo menos, é o que apontam os resultados divulgados pela imprensa: mais de 722 mil visitantes, com destaque para o público jovem e aumento de 83% no faturamento diário. Ainda é cedo para avaliar os resultados reais dessa euforia para um desenvolvimento sustentável da bibliodiversidade, a médio e longo prazos. E embora não se possa mensurar com ferramentas preconcebidas a efetividade das redes sociais, ou mais propriamente, dos influencers na formação dos leitores, parece correto que uma nova onda de “leitores digitalizados” e seduzidos pelo velho códice impresso tem mudado significativamente a “cara” do mercado.
Da mesma maneira que as Bienais desempenham seu poder de atração junto ao grande público, as feiras universitárias têm um peso importante para a sustentação do ecossistema editorial. Nesse sentido, a Festa do Livro da USP se apresenta como uma jabuticaba legitimamente brasileira semeada no solo da Universidade. O evento surgiu há 26 anos como uma reação das editoras universitárias frente à dificuldade de tornar seus livros visíveis nas livrarias tradicionais. O modelo foi replicado por outras universidades brasileiras, embora sem a mesma magnitude que a iniciativa uspiana atingiu, sobretudo a partir de 2015, quando passou a ocupar uma área bem mais importante no campus Butantã. Segundo dados fornecidos pela Edusp, em 2024 a Festa recebeu 212 editoras, dentre as quais 32 universitárias, mais de 300 selos editoriais, com uma média de público na ordem de 10 a 12 mil pessoas por dia.
Hoje a Festa se apresenta como um verdadeiro laboratório da bibliodiversidade, tanto pelo número e variedade de editoras que reúne, quanto pela diversidade dos perfis de seus frequentadores.
A experiência uspiana demonstrou que é forte a interdependência de todos os setores do mercado editorial, desde as editoras especializadas em livros de alta vendagem até as acadêmicas. Afinal de contas, essa distinção se dilui na dinâmica da Festa. Se hoje esse modelo de venda direta, com 50% de desconto, parece nocivo às livrarias, é preciso considerar o impacto positivo da iniciativa para a formação de um público que vive não raro distante do mundo dos livros. Ademais, se aprovada, a lei de regulação do preço do livro virá apenas oficializar algumas tendências já verificadas nas últimas edições da Festa do Livro da USP: as grandes editoras tendem a não expor seus últimos lançamentos e as vendas são mediadas por representantes do setor livreiro.
Não existem estudos que permitam mensurar o impacto econômico da Festa do Livro da USP sobre as livrarias da cidade. Tudo o que se sabe é que as livrarias de rua apresentam um movimento ascendente, desde o fechamento das megastores Cultura e Saraiva. Por outro lado, não restam dúvidas quanto ao papel formador de gostos e de hábitos de leitura que a Festa desempenha, o que pode, certamente, favorecer os próprios livreiros e tantos outros circuitos de venda e de difusão da leitura na capital.
Diferente da França, exemplo evocado neste artigo, devemos considerar que o déficit de leitores e de livrarias no País constitui uma barreira multissecular, difícil de transpor. Mesmo em centros urbanos dinâmicos como São Paulo, as livrarias se concentram nos bairros de classe média. No limite, em áreas que agregam uma vida cultural própria, a exemplo do Centro expandido da capital, que passa por um processo de gentrificação, ou mesmo no tradicional bairro da Bela Vista. A cartografia das livrarias de São Paulo aponta para a necessidade de mecanismos de estímulo e suporte à abertura de mais pontos de venda e de cultura literária – além das bibliotecas, é claro! – em todos os quadrantes da cidade, algo que a Lei Cortez, por suas limitações, não pode instituir.
Mas a bibliodiversidade não diz respeito exclusivamente às questões do mercado. Bibliodiversidade se apresenta, hoje, como uma ideia-força para qualquer abordagem que assuma o ecossistema editorial, as bibliotecas e o futuro dos livros e dos leitores como temas capitais para o desenvolvimento material e humano do País. Sob tal perspectiva, a Lei Cortez representa uma mudança de paradigma necessária nas relações entre a economia e a cultura. Ela é a porta de entrada para um debate que está longe de se esgotar.
Jornal da USP, 16/10/2024