A quem interessa fechar a EBC?

Morillo Carvalho, Medium – A Revista Época da primeira semana de campanha eleitoral estampa, na capa, uma reportagem que classifica a experiência da EBC como um “mico”. Em editorial, os jornalistas do periódico assinalam que o próximo presidente precisa dizer o que fará com a empresa, bem como ecoa as “vozes” de que deve ser fechada.

Mas… Pra quê?

Primeiramente, quanto custa a EBC? Custa, em 2018, R$249,5 milhões. Isso consome uma cócega do Orçamento Geral da União — aprovado, como você pode ler no link abaixo, em dezembro do ano passado com o valor de R$3,75 trilhões.

http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-12/orcamento-de-2018-e-aprovado-com-previsao-de-gastos-de-r-357-trilhoes

Era, portanto, 0h44 da manhã, quando os jornalistas Paulo Victor Chagas e Davi Oliveira (respectivamente, repórter e editor, conforme as assinaturas da reportagem) noticiaram a conclusão da votação. Ambos cumprindo suas funções públicas de informar ao público o resultado do trabalho parlamentar que impactaria no funcionamento do país este ano.

A Agência Brasil é um dos veículos da EBC — que, ao contrário do que sugere a capa da Época, não é sinônimo de TV Brasil. Esta é apenas um dos muitos veículos geridos pela empresa. Apenas para continuar neste mesmo exemplo, fiz uma busca com o título da reportagem no Google, usando aspas, para destacar apenas resultados exatamente iguais. Taí: 35 mil replicações. Aqui está a prova. O que quero dizer com isso?

Que todo e qualquer material produzido pela Empresa Brasil de Comunicação é livre, público e gratuito. Pode ser livremente reproduzido, desde que citada a fonte. Por isso, é muito provável que o leitor de portais como o Terra, o Estadão, entre muitos outros, seja um leitor indireto do trabalho da EBC.

Além da Agência Brasil, as rádios Nacional e MEC (Música, Educação e Cultura — e não “Ministério da Educação”, como originalmente foi) fazem parte do conglomerado. Igualmente todo o conteúdo produzido pelas emissoras pode ser livremente utilizado por qualquer emissora de rádio ou pessoa no país. Todas produzem alto nível de programação e tem — olha só — audiência relevante. Em Brasília, a Nacional FM é referência na difusão de música brasileira e local. A Nacional AM é a única autorizada a funcionar em altíssima potência na América Latina. E há uma, em particular, que por si só já justifica a existência de toda a empresa: a Rádio Nacional da Amazônia.

Não vou começar a falar sobre ela citando minha experiência de nove anos como parte de sua equipe. Vou começar por Marcelo Canellas, o premiado e excepcional repórter da TV Globo, o braço televisivo do mesmo grupo que edita a Época. Em 03 de dezembro de 2007, exatamente um dia após a entrada no ar da TV Brasil, começava a ser veiculada, no Bom Dia Brasil, a série de reportagens “Terra do Meio, Brasil Invisível”. Na primeira reportagem, aos 03’17’’, Canelas apresenta Chico Feitosa. Em um texto desses que só os melhores repórteres sabem usar, diz algo como “só muito recentemente seu Chico ouviu falar de televisão”. Que, pra ele, artista não tem cara. Desconhecia Regina Duarte. O contato com o mundo se dava pelo rádio.

Confira você mesmo aqui

Em 2012, Canellas apresentou esta série no congresso anual da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Participei, custeado pela EBC, como forma de capacitação. Ao final da apresentação, o questionei: “lembra qual era a emissora que seu Chico Feitosa ouvia?”. Prontamente: “a Rádio Nacional da Amazônia”. Como ela é sediada em Brasília e irradiada para a região por meio de ondas curtas, até ali eu não tinha visto o rosto de nenhum ouvinte. Orgulhosamente respondi: “sou repórter dela”. Canellas falou algo como “você não imagina a importância que vocês tem pra eles”.

É lá para o seu Chico Feitosa que eu falo, todos os dias, em meu programa de rádio. Lá, onde a Revista Época jamais chegou, jamais chegará. Lá, onde emissora comercial nenhuma terá interesse em estar — não haverá retorno financeiro para quem se arriscar numa empreitada como essa. Lá. E sim, o seu Chico tem direito à informação. É direito humano, aliás. Então onde a comunicação comercial não chega, a pública está. Sem transformar ouvinte em consumidor — ao contrário, conscientizando-o sobre consumo.

Temas recorrentes da cobertura jornalística da Rádio Nacional da Amazônia: escalpelamento, câncer de pênis, período do defeso, cotação do ouro, o Código Florestal, as pequenas centrais hidrelétricas, projetos como Belo Monte, Santo Antônio, Jirau (ouvindo muitas vezes aqueles que denunciavam o desastre social que se avizinhava), o desastre de Barcarena, a questão indígena, a questão quilombola, o festival de Parintins, o Círio de Nazaré, os inúmeros estudos que revelam as condições terríveis de mortalidade materna e a exploração sexual infanto-juvenil na região.

Temas que afirmo, de olhos fechados, passam distantes da cobertura de semanários como a Revista Época. Aqui, uma reportagem minha de quando eu era repórter, em que ambientalistas criticam diretamente o projeto Belo Monte e o próprio Ibama (para quem desconfia que a cobertura da empresa, sendo pública, precisa ser chapa branca):

http://memoria.ebc.com.br/radioagencianacional/materia/2011-06-01/ambientalistas-cristicam-emiss%C3%A3o-de-licen%C3%A7-de-instala%C3%A7%C3%A3o-para-belo-monte-no-rio-x (publicada na Radioagência Nacional, veículo da EBC responsável por distribuir, de graça, o conteúdo jornalístico e radiofônico produzido ali)

“Câncer de pênis, escalpelamento”? Sim. O primeiro, doença recorrente na região (que resulta em alto número de amputações). O segundo, acidente terrível e recorrente na Amazônia. Que, por mobilização da radialista Mara Régia, desta emissora, resultou em lei encampada pelo então vice-presidente José de Alencar, que obriga donos de embarcações a usarem tampa nos eixos dos seus motores, evitando a continuidade da mutilação de centenas de mulheres.

Para conscientizar sobre o tema do escalpelamento, a Nacional da Amazônia realizou, por exemplo, uma radionovela. Com roteiro da radialista Artemisa Azevedo e participação de empregados da casa (eu, dentre eles) na atuação, trabalhamos este e inúmeros outros temas. Também o fizemos em reportagens, entrevistas na programação, etc.

Não cheguei à TV Brasil, nem vou me alongar em excesso aqui. Mas não me recordo de assistir, em outra emissora, uma cadeirante como repórter, nem uma pessoa com síndrome de down, nem de um jornal exclusivamente produzido em Libras. Nem de assistir programação infantil na televisão aberta, com qualidade, produzida por brasileiros. Sem incentivar as crianças a tornarem-se pequenas consumidoras de tulhas e tulhas de brinquedos. É muito tranquilo qualificar a emissora como um “desastre” com base em dados de audiência, desqualificando seu público cativo.

Não vou nem me dar ao trabalho de fazer a contagem de quantos prêmios o programa “Caminhos da Reportagem” já recebeu. Neste link, outra busca no Google revela pelo menos 204 resultados para uma frase boba como “Caminhos da Reportagem recebe prêmio”. E o quê isso significa? Significa reconhecimento pela alta qualidade na produção jornalístico-documental da emissora.

Também não vou me alongar sobre a importância das outras emissoras todas da EBC. Mas desconheço a presença comunicacional eficiente da Revista Época em uma região vulnerável do estado do Amazonas como a que está a Rádio Nacional do Alto Solimões. Instalada em Tabatinga, a pequena emissora atende à tríplice fronteira, combalida por inúmeras questões sociais como a presença macica do tráfico internacional de drogas. Coordenada até 2013 por Lana Micol, sentimos naquele ano na carne a perda dela para o feminicídio tão denunciado e combatido inúmeras vezes naquela programação.

Voltando aos números e à pergunta que entitula este artigo. A quem interessa destruir o projeto de comunicação pública que ocupa menos de 0,1% do Orçamento federal? Certamente o encerramento de nossas atividades — sou jornalista nessa empresa, concursado, há quase 11 anos — serve bem para uma demonstração de “mão forte” de um governante, cairá bem nas manchetes como quem conseguiu “enxugar o Estado”, sendo que não fará cócegas para a resolução dos graves problemas da sociedade brasileira. Mas deixará bastante orgulhosos a jornalista que assina a matéria da Época e seus editores, bem como a Andreza Mattais (da Coluna do Estadão), a Daniela Lima (da Folha), o Cláudio Humberto e o povo do Antagonista. E a galera do MBL. Achar-se-ão heróis da Nação. Satisfarão seus eguinhos frágeis por terem “combatido o mal”. Fazendo o mal a milhões de pessoas que, certamente, precisam destes serviços todos, que somente a comunicação pública será capaz de prestar. Não vocês.

É um golpe que se avizinha.

E eu fui chamado, certa vez, de profeta do caos e do Apocalipse. Mas nem em minha pior previsão poderia pensar em tanta mesquinharia.

PS: a reportagem da Época considerou os números de audiência de junho da TV Brasil, quando a própria aparece entre as 10 mais vistas do país?

http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-08/audiencia-da-tv-brasil-cresce-64-em-dois-anos

(terminaria esse texto com aquele emoji de olhinhos virados pra cima)

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