A comunicação está no centro da acirrada batalha ideológica que se trava atualmente na América Latina para assegurar a continuidade de transformações sociopolíticas, econômicas e culturais. O eixo do enfrentamento entre o poder público e os interesses privados localiza-se nos quatro países (Argentina, Venezuela, Bolívia e Equador) onde os governos não abrem mão de regular democraticamente a mídia. O que está em jogo é a necessidade inadiável de se promover a diversidade informativa e cultural nos meios de difusão, especialmente na radiodifusão sob concessão pública (rádio e televisã).
Trata-se de modificar o cenário caracterizado historicamente pela concentração monopólica da mídia e por desigualdades nos acessos, usos e usufrutos das tecnologias. Foi destes temas que tratei nas entrevistas concedidas aos jornalistas Jorge Vilas, da Revista Acción, de Buenos Aires, e Fernando Arellano Ortiz, do Observatório Sociopolítico Latinoamericano, de Bogotá. Decidi traduzi-las ao português e mesclá-las no texto a seguir. Meu propósito é tentar evidenciar não apenas as linhas gerais do quadro de disputas e desafios por uma outra comunicação possível, como também o que está por trás das agressivas campanhas dos grupos midiáticos contra medidas governamentais e reivindicações sociais que coincidem na exigência de respeito ao direito humano à comunicação como bem comum dos povos.
Por que você usa a palavra “cruzada” para referir-se à situação da mídia na América Latina? (refere-se ao livro de Dênis, “La cruzada de los medios en América Latina”, 2011).
Dênis de Moraes – O campo da comunicação de massas está no centro de uma das principais batalhas da contemporaneidade: a luta pela hegemonia cultural e política. Esta é uma disputa que opõe, por um lado, os interesses mercantis e empresariais, sobretudo dos grupos midiáticos nacionais, regionais e transnacionais; e, de outro, dois blocos que recusam a lógica mercantilista. O primeiro é integrado pelos governos progressistas ou mais ou menos progressistas. Eles são vítimas de campanhas sistemáticas da mídia e de seus sócios nas classes dominantes. O segundo bloco reúne os movimentos sociais e comunitários. Refiro-me ao sentido público da comunicação. Então, há uma disputa de sentidos pelo controle das possibilidades de expressão, de criação, de circulação e de distribuição de bens simbólicos. Sobretudo a informação. É por isso que os termos “cruzada”, “batalha” ou “disputa” ingressaram na cena contemporânea com uma intensidade inusitada. Está em jogo o domínio do imaginário social: como e, principalmente, quem deve fixar os valores hegemônicos numa determinada sociedade. Em vários países latino-americanos percebemos convergências ou alianças entre governos progressistas e áreas da sociedade civil organizada, em especial os movimentos sociais e comunitários que, de maneira geral, são discriminados e excluídos dos noticiários; suas reivindicações costumam ser vistas com desconfiança pelos grupos que dominam o sistema de comunicação. Essa espécie de aliança entre os governos progressistas e segmentos reivindicantes da sociedade civil organiza-se em torno da ideia de que todas as vozes sociais precisam expressar-se livremente, sem as intermediações e os controles midiáticos, sem sujeição os métodos que as grandes empresas do setor adotam para estabelecer as agendas ou os assuntos que devem chegar à sociedade.
Em seu livro Mutações do visível, você menciona uma “batalha pelos fluxos informativos”. Crê que as empresas midiáticas se veem ameaçadas pela possibilidade de produção e circulação de conteúdos alternativos?
D. M – Não creio que se sintam propriamente ameaçadas, porque são muito poderosas e têm capacidade financeira, estratégica e logística, o que lhes garante uma solidez difícil de ser abalada. Os meios hegemônicos veem, isso sim, que a intervenção do Estado no setor de comunicação afeta seus seus interesses econômicos e políticos, sobretudo quando altera legislações e normas para coibir monopólios, ou quando desenvolve políticas públicas de estímulo à produção independente, a redes alternativas de comunicação e projetos comunitários sem finalidades lucrativas.
A novidade é a atitude dos Estados? Porque os movimentos sociais atuam faz tempo nesta disputa pela pluralidade informativa…
D. M. – O quadro de transformações na América Latina não surgiu de maneira espontânea. No fim dos anos 1990 e começo da década de 2000, em vários países houve reações, protestos e mobilizações contra a herança nefasta do neoliberalismo para a sociedade (desemprego estrutural, cortes de direitos trabalhistas e previdenciários, agravamento da pobreza, da miséria e das desigualdades sociais). Na Argentina, Venezuela, México, Equador e Bolívia, os movimentos sociais conseguiram se rearticular para enfrentar o neoliberalismo. Neste contexto, incluíram em suas agendas de lutas a comunicação como direito humano. A maior novidade foi a posterior adesão dos governos à causa da democratização da comunicação, que passa, em primeiríssimo lugar, por mudanças nos marcos regulatórios e nas leis herdadas das ditaduras militares, que favoreciam os grupos empresariais. A participação protagônica do poder público nas questões comunicacionais é indispensável. O neoliberalismo tentou nos convencer de que o mercado seria capaz de distribuir conhecimentos de maneira equânime. Uma mentira, já que o mercado é elitista e está estratificado, o que marginaliza os setores populares de maneira dramática. Então, numa região marcada por desequilíbrios e profundas desigualdades, o Estado precisa intervir para garantir a soberania nacional e maior justiça social, o que, na atualidade, tem muito que ver com o acesso às tecnologias. Da atitude firme de alguns governos resultaram novas legislações de caráter antimonopólico. Por exemplo, a chamada Lei de Meios na Argentina e a Lei de Radiodifusão Comunitária no Uruguai, ambas consideradas, pelo Comitê Mundial para a Liberdade de Expressão da Unesco, as legislações mais avançadas do mundo. No Uruguai, a radiodifusão comunitária está sendo legalizada e descentralizada. Por sua vez, a lei argentina rompe com a cadeia de submissão às ambições lucrativos de grupos privados. A vigência da Lei de Meios, com todas as dificuldades que vem enfrentando, particularmente por manobras protelatórias que o grupo Clarín articula através de sucessivas medidas cautelares, é um fato espetacular não somente para a sociedade argentina, como também para a América Latina, porque é um paradigma a seguir, por seu valor como instrumento antimonopólico e de fomento ao pluralismo. Ao coibir a concentração das atividades comunicacionais nas mãos de poucos grupos, a lei estimula um fluxo informativo com opiniões e perspectivas diversas, o que abre a possibilidade de maior equilíbrio entre os três setores envolvidos (o estatal, o privado e o social não lucrativo). O Brasil deveria seguir o exemplo da Argentina, mas, infelizmente, nos últimos dez anos, os governos Lula e Dilma (pelo menos até agora) não têm demonstrado interesse em dotar o país de uma legislação de comunicação moderna, democrática e antimonopólica.
Quando se debateu no Parlamento argentino a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, os meios mais poderosos a qualificavam como uma restrição à liberdade de imprensa. Essa situação existe nos outros países da região?
D. M. – Sim. A maioria dos grupos midiáticos adota critérios e controles editoriais que frequentemente excluem o contraditório, invisibilizam as posturas críticas e as visões alternativas. Então, com que autoridade se apresentam na cena pública para defender a liberdade de expressão que não praticam em seus próprios veículos? As corporações confundem liberdade de imprensa com liberdade de empresa. A liberdade de expressão está ameaçada, isso sim, por monopólios que tentam silenciar ou depreciar as vozes discordantes. Querem a liberdade de empresa para conservar privilégios mercantis, que se sobrepõem, muitas vezes, aos interesses coletivos. Além disso, há em seus editoriais e noticiários tendenciosos um excesso de críticas aos governos progressistas, justamente porque esses governos estão travando uma batalha contra os grupos monopólicos e seus interesses corporativos, em defesa da diversidade informativa e cultural. Não é casual o fato de que as campanhas opositoras dos grandes meios latino-americanos sejam orquestradas. Você percebe que as mesmas matérias hostis a governos progressistas são republicadas, em vários países, por jornais parceiros, todos eles batendo na tecla de que a liberdade de expressão está em risco. Utilizam argumentos falaciosos, que distorcem tudo aquilo que envolve a regulação democrática da mídia e ocultam da opinião pública suas pretensões políticas e econômicas. As corporações não admitem ceder os privilégios conquistados, inclusive durante as ditaduras militares. As campanhas são mais incisivas nos quatro países onde os governos se opõem com mais firmeza à dominação histórica da mídia: Argentina, Venezuela, Bolívia e Equador. São governos comprometidos – de maneiras e intensidades diferentes, de acordo com os contextos e circunstâncias de cada país – com a ideia de que a comunicação é um direito humano que tem que ser respeitado, não pode ser apropriado por ambições lucrativas que o limitam e o restringem dramaticamente.
Você acredita que, neste processo, pela primeira vez se põe em questão se a mídia diz ou não a verdade? Antes nunca tinha sido questionada deste modo, ao menos na Argentina.
D. M. – Os principais meios de comunicação sempre tentaram convencer a sociedade de que são produtores da vontade geral, que são neutros, que têm como missão informar em nome dos interesses coletivos. É uma mistificação, porque esses veículos são de origem empresarial, privados e, quase todos, pertencentes a grupos econômicos muito poderosos. Então, a construção do consenso em torno de valores, mentalidades e visões de mundo sempre se associou a tudo o que aparecia nos jornais, nos canais de televisão e demais veículos. E para a opinião pública isto não merecia a mínima discussão. Questionar tais mecanismos de dominação ideológico-cultural não é algo complexo e difícil. Porque os grupos midiáticos sãi poderosos e dispõem de uma coisa que a sociedade e que quase todos os governos não têm. Refiro-me aos grandes canais de difusão que constroem e direcionam as maiores audiências, com um público de massa que os segue. Portanto, têm uma influência completamente desproporcional na sociedade, colocando-se, não se sabe com delegação de quem, acima do poder público eleito pelo voto popular. Há uma clara diferença entre o poder dos grandes meios de comunicação e os canais de que dispõem a sociedade civil e os governos progressistas. No entanto, há uma mudança importante na percepção da opinião pública, em alguns países latino-americanos, sobre o que é o direito à comunicação e sobre a necessidade de que todas as vozes sociais tenham a possibilidade de expressar-se livremente, sem as limitações impostas unilateralmente pelos grupos midiáticos. Trata-se de entender de uma vez por todas que a mídia não recebeu mandato popular para isso nem pode continuar definindo, autoritariamente, as opções e preferências das pessoas, o tempo todo e em toda parte. Você não pode mais aceitar que um setor que expressa interesses empresariais detenha o poder de determinar o que a sociedade pode ler, ouvir e ver. Creio que há efetivamente uma reação cidadã, em determinados países, não somente contra os grandes meios e sua manipulação, como também também contra o modelo neoliberal e suas nefastas consequências sociais. Há um questionamento mais claro e acentuado por parte de setores da sociedade civil com respeito às “verdades” entre aspas que são transmitidas pelos meios de comunicação. Por mais difícil que seja ampliar esse questionamento ao conjunto da sociedade, já que a grande mídia neutraliza os posicionamentos críticos que lhe são desfavoráveis. Por outro lado, ainda que exista uma concentração dramática de meios, tecnologias, plataformas e suportes comunicacionais, também há, aqui e ali, uma desconcentração de opinião, há mais conflitos que se expressam na sociedade fora do alcance dos grupos midiáticos, em particular no âmbito de Internet. Então, que situação vivem as empresas midiáticas? Observam que as coisas estão de alguma forma mudando, que há mais fontes de informação outras vozes estão se manifestando, através de redes sociais, portais, blogs e agências de notícias alternativas, etc. Nesse sentido, a Internet é um motivo de preocupação para a mídia hegemônica, porque muitas opiniões e visões de mundo estão surgindo e circulando socialmente fora das margens estabelecidas por seus mecanismos habituais de controle.
Na Argentina, a lei estabelece 33% para os meios sociais sem fins de lucro. É um desafio enorme, porque como se sustentam esses meios? Você acredita que faz falta uma política por parte do Estado para criar as condições que permitam a esses novos meios sustentar-se no tempo?
D. M. – Em primeiro lugar, para que as transformações comunicacionais estruturais tenham permanência, são necessárias três coisas: vontade política, compromisso com a democratização da comunicação e respaldo popular. Estes são três elementos que se articulam e que não podem faltar para que os outros tenham força. Creio que a participação dos meios alternativos é fundamental para a descentralização, a desconcentração e portanto, a democratização. Mas, claro, existem sérias dificuldades de recursos financeiros, logísticos e técnicos nos meios alternativos. Então, é fundamental que o Estado apoie projetos sociais e comunitários de comunicação, para permitir a emergência constante de novas vozes, que sejam, inclusive, independentes do discurso governamental de turno. E mais: criar procedimentos que favoreçam as condições adequadas de sustentabilidade aos meios alternativos. Não adianta apenas colocar em prática projetos alternativos de comunicação sem uma base real de sustentabilidade; o desafio, que reputo imenso, é como alcançar condições objetivas (financeiras, logísticas, tecnológicas) para que as experiências possam se consolidar. Por isso, chamo a atenção para a necessidade de políticas públicas específicas para a comunicação alternativa e comunitária, notadamente para o fomento às iniciativas mais consequentes e com potencialidades para prosperar e oferecer uma contribuição social e cidadã, alinhada com o princípio da diversidade informativa e cultural. Esperar que a iniciativa privada ou as chamadas “forças do mercado” invistam em projetos que se contrapõem à lógica mercantil é o mesmo que acreditar na quadratura do círculo…
No marco desta batalha pelo direito à informação e à comunicação na América Latina, que importância real lhe atribui à potencial apropriação por parte de setores populares e sociais das novas tecnologias?
D. M. – As novas formas de apropriação das tecnologias de comunicação pela sociedade civil organizada são um avanço significativo. Este é um tema que desperta expectativas positivas nos movimentos sociais e comunitários. De fato, o ecossistema comunicativo da Internet é muito propício e resulta favorável à expressão autônoma e independente de poucas pessoas e, em particular, dos movimentos reivindicantes. A Internet é um ecossistema descentralizado e interativo, a partir do qual as tecnologias digitais permitem que as pessoas se transformem em emissores e receptores ao mesmo tempo, sem intermediações e controles externos. É um espaço comunicacional de novo tipo, no qual podemos conviver e usufruir do poder de emitir, de divulgar nossas opiniões, nossos valores, nossas ideias, nossas contradições e nossas paixões. É uma ferramenta fundamental para descentralizar os modos e espaços de expressão, de criação, de sociabilidade, de participação, de informação e de entretenimento. As metodologias de atuação, de organização e de articulação que as redes permitem são inovadoras já que valorizam a cooperação e a colaboração sem fins mercantis ou lucrativos. Então, hoje temos, por exemplo, coletivos de comunicação que atuam de uma maneira independente, à margem das estruturas empresariais da mídia. O jornalismo em rede e contra-hegemônico se revela tendencialmente mais cooperativo, participativo e ético. Mas tais avanços não significam que a Internet seja a solução de todos os problemas, porque sabemos que não é assim. Há imensos desafios pela frente, como, por exemplo, a sustentabilidade financeira dos projetos alternativos e contra-hegemônicos, a necessidade de universalizar os acessos e usos das tecnologias. E devemos considerar a crescente mercantilização do ciberespaço; há uma invasão dos bárbaros midiáticos no que diz respeito ao comércio, publicidade e serviços online. As corporações alastram-se pelo ciberespaço e, como sempre, com finalidades mercantis e particulares. Em síntese: a Internet e as chamadas redes tecnológicas são progressos importantes, mas não são os únicos canais nem os únicos meios de reivindicação e luta. É no âmbito presencial da sociedade organizada e das relações humanas que se trava e se travará a luta fundamental pela liberdade de expressão e pela democratização da comunicação. Por fim, não podemos perder de vista que, por maiores que sejam os benefícios proporcionados à sociedade, as tecnologias não têm o poder de desfazer desigualdades. Há enormes contingentes populacionais no mundo, inclusive na América Latina, que seguem com acessos irrisórios às tecnologias. Isso tem a ver com a reprodução, no âmbito tecnológico, dos desníveis e descompassos entre uma minoria aquinhoada e uma amplíssima maioria excluída, entre países ricos e países periféricos, As corporações obtêm dividendos competitivos e enormes vantagens com o domínio das inovações tecnológicas e suas aplicações voltadas à maximização do lucro, da rentabilidade e dos rendimentos monopólicos. São necessárias políticas públicas que estimulem o acesso, o uso e o usufruto pelas massas dos benefícios e possibilidades tecnológicas. No caso da América Latina, os governos progressistas precisam aprofundar os investimentos em programas inclusivos e abrangentes de desenvolvimento tecnológico com finalidades sociais, educativas e culturais.