A evolução das novas mídias e a revolução dela decorrente se estende por diversos campos, inclusive o da cultura. A presença cada vez mais constante da tecnologia na vida dos indivíduos implica o surgimento de um novo modelo que pode ser batizado de cultura digital: distintas plataformas aumentam as possibilidades de produção, distribuição e consumo, implicando a inversão dos papéis de quem faz e recebe esse conhecimento.
Quem está no centro das discussões afirma que esse tema deve envolver a todos. Mas, acima de tudo, fica uma importante pergunta: como governo e os grupos interessados no assunto entendem e se preparam para esse novo conceito?
Para Rodrigo Savazoni, membro da coordenação-executiva do Fórum da Cultura Digital Brasileira, sócio da FLi Multimídia, empresa de estratégia em comunicação e cultura digital, definir esse novo formato não é tarefa simples. O coorganizador do livro ’CulturaDigital.br’, obra que reúne artigos de diversos autores sobre o tema, afirma que essa é uma cultura contemporânea, que envolve a colaboração, a liberdade, e é amplificada pela interconexão em rede. Ou seja, é um modelo aberto e receptivo. “É a cultura da recombinação, da ação em comum, da partilha e da dádiva. É a cultura das comunidades e dos coletivos de indivíduos. Uma cultura que tem muito a ver com a maneira como o brasileiro age e pensa”, diz Savazoni.
José Murilo Júnior, gerente de Informações Estratégicas do Ministério da Cultura (MinC) e também integrante do Fórum, conta que a pasta busca uma conceituação mais ampla do termo, construindo com a sociedade uma perspectiva abrangente do paradigma digital. “Trata-se de explorar a radical transversalidade do tema, suas possibilidades inovadoras e também evidenciar os riscos que os princípios de liberdade e abertura, tão caros ao ambiente digital, sofrem frente a concepções mais conservadoras”, comenta.
Papel e atuação do governo
A agenda de cultura digital do MinC prevê um plano nacional de digitalização e disponibilização de acervos. “Isso implica diretamente a revisão de dispositivos no marco regulatório do direito autoral”, emenda. O governo faz outros planos. “Pretendemos explorar novos modelos de negócio para a cultura no ambiente digital, discutir soluções técnicas e políticas que facilitem o acesso dos cidadãos à banda larga e debater novas linguagens criativas, assim como o fenômeno do ’remix’, no contexto do cada vez mais dinâmico campo da arte digital”, informa.
Murilo afirma que novos estudos e novas ações de cultura digital são desenvolvidos a partir da parceria entre MinC e a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP). Esses debates envolvem o desenvolvimento de redes sociais para usuários de bibliotecas e museus, prospecção de interatividade em conteúdos para a TV digital, desenvolvimento de ambiente de conteúdos e serviços de cultura, ciência e tecnologia para o público de lan-houses, proposta para ambientes de acesso wireless público em espaços multiuso, entre outros.
A apropriação das possibilidades digitais pela cultura, de acordo com o gerente do MinC, é uma diretriz de caráter estratégico. “As tecnologias digitais e o ambiente conectado em rede impactam de maneira radical na criação, produção, reprodução, distribuição, preservação, no armazenamento, nas modalidades de acesso e nas cadeias econômicas relativas aos conteúdos simbólicos e às expressões e bens artísticos e culturais. Além disso, os princípios de abertura e colaboração típicos da rede favorecem iniciativas de caráter público. Em nossa experiência com os Pontos de Cultura (programa do MinC para incentivo às iniciativas culturais da sociedade civil), aprendemos que a cultura cumpre importante papel em facilitar a compreensão e a apropriação das possibilidades da rede pelos novos usuários”, discorre.
Rodrigo Savazoni acredita que o governo está no caminho certo ao promover políticas nesse sentido. Para ele, o cenário é favorável à promoção da cultura digital, e o Brasil vive “uma situação muito especial”, reconhecida até mesmo internacionalmente. “O Ministério da Cultura é um exemplo de como uma estrutura do Estado pode e deve lidar com esse novo mundo; com coragem e confiança de que, por meio do digital, podemos superar desafios que o catastrófico século XX nos legou”, afirma.
Savazoni defende o reconhecimento do meio digital como um dos elementos que podem ajudar a superar a exclusão social, operando sempre a favor das transformações. “Em alguns países, a indústria e o Estado construíram alianças conservadoras em nome da propriedade. Aqui, temos sido felizes, sociedade civil e setores do governo, no combate a essa visão tacanha. Mas é preciso estar sempre alerta”, diz.
Pela difusão e preservação da cultura
Os impactos das tecnologias digitais sobre as cadeias produtivas, segundo Murilo, colocam o poder público diante da necessidade de contribuir para uma ampla difusão das habilidades de uso das novas mídias, promovendo a apropriação dos processos de produção e fruição das expressões simbólicas por toda a população. “Em vista da importância que as mídias digitais passam a exercer nos processos de identidade e de formação da memória, o Estado deve instituir programas de digitalização e oferta de acervos públicos de obras artísticas, conhecimentos e manifestações culturais”, considera.
Para Savazoni, o principal desafio da cultura digital é garantir acesso à banda larga a todos os cidadãos. Ele argumenta que o mercado e o Estado não devem restringir as liberdades emergentes propiciadas pela internet sob a obrigatoriedade de uma regulação. “Também é um desafio superar os preconceitos e o conservadorismo que se expressam diante do novo. O mundo de hoje é o mundo da transição permanente. É preciso aceitar que é assim”, completa.
Um dos primeiros passos a serem dados em direção a essa nova forma de cultura, segundo Murilo, é ajustar marcos regulatórios como o do direito autoral. “Hoje, ele não permite a digitalização de acervos, nem mesmo para preservação, e criminaliza ações comuns dos usuários na rede”, afirma, acrescentando que esse debate será estimulado pelo MinC por meio da apresentação de uma nova proposta de lei, que em breve será submetida a consulta pública.
Murilo lembra que, ao considerar os impactos culturais da convergência digital de forma localizada e setorial, a tendência é reconhecê-los como ameaças a papéis e funções sociais estabelecidos de acordo com as premissas e os conceitos regulatórios de um momento anterior.
“A perspectiva da cultura digital parte do princípio de que estamos em plena transição para a sociedade da informação e que as transformações decorrentes da mudança do paradigma devem ser compreendidas através de uma abordagem multidisciplinar e transversal que esteja aberta para o novo, sob o risco de assistirmos ao surgimento de bloqueios a processos inovadores emergentes fomentados pelo ambiente digital”, avalia.
Nesse sentido, o MinC é favorável à utilização de um ambiente em rede para promover e documentar todo o debate em torno dos novos marcos regulatórios para o setor. “O processo de construção colaborativa do ’Marco civil da internet’ já está em curso no blog do Fórum da Cultura Digital Brasileira, preparado para incentivar a participação dos interessados, e a consulta pública sobre a nova lei de direito autoral deve ser lançada em breve no mesmo ambiente, facilitando a visão integrada que as novas regulações devem contemplar”, conclui.
Texto: Gabriela Bittencourt