Coletivo em Defesa das Humanas se manifesta sobre o programa Future-se

Leia abaixo o texto na íntegra:

NOTA DO COLETIVO EM DEFESA DAS HUMANAS SOBRE O PROGRAMA FUTURE-SE

Na última quarta-feira, 17 de julho, o Ministério da Educação (MEC) anunciou o lançamento do “Future-se”, nome fantasia do Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras, desenvolvido pela Secretaria de Educação Superior (SESu) com o intuito de fortalecer a autonomia administrativa, financeira e de gestão das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) – entre elas as 68 Universidades Federais.

Em resumo, os dois grandes motores do programa apresentado são (i) as parcerias com Organizações Sociais (OSs); e (ii) o fomento à captação de recursos próprios, desenvolvidos em três grandes eixos, assim nomeados: (1) Governança, gestão e empreendedorismo; (2) Pesquisa e inovação; e (3) Internacionalização. O anúncio se dá em momento de grave crise financeira das Universidades Federais, afetadas pelo contingenciamento de gastos posto em prática pela atual gestão, e sinaliza a intenção do Governo Federal de ampliar a participação da iniciativa privada no financiamento do ensino superior público brasileiro.

A análise detalhada da proposta, em muitos pontos vaga e obscura, deixaremos para outro momento. Nesta nota, pretendemos apenas chamar a atenção da comunidade acadêmica e da sociedade em geral para alguns aspectos bastante específicos do programa que, num primeiro momento, julgamos merecer maior reflexão.

Pensamos merecer destaque, em primeiro lugar, a completa falta de diálogo entre o MEC e as universidades no processo de elaboração do projeto. Apesar de o documento afirmar, na abertura do texto, que “inúmeros especialistas foram consultados e puderam contribuir para o aperfeiçoamento do programa”, segundo o presidente da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), Prof. Reinaldo Centoducatte, “não houve participação ou consulta dos gestores e dos membros da comunidade universitária” em sua elaboração, algo “sem precedente”, dada a magnitude da transformação proposta. Além disso, o prazo estipulado para a consulta pública é extremamente exíguo – 4 semanas, de início, acrescidas de mais 1 semana, em virtude do protesto de alguns reitores –, incompatível, em nosso ver, com a importância do assunto em discussão.

O acento, em nosso ver exagerado, no empreendedorismo e na inovação é apresentado no programa sem levar em conta a heterogeneidade das universidades federais brasileiras e sem levar em conta, o que é mais importante, a heterogeneidade das próprias áreas que compõem cada uma das universidades. Desse modo, o MEC se desobriga a justificar de que maneira áreas com baixo ou nenhum potencial mercadológico, como é o caso das humanidades, da física teórica, da astrofísica, da matemática pura, etc., poderiam garantir sua saúde orçamentária num cenário em que o financiamento das pesquisas estaria praticamente subordinado aos valores concorrenciais do mercado. A vulgarização dos termos, nesse caso, acaba por transformá-los em mera panaceia.

Soma-se a isso um emprego irrefletido e gravoso das práticas de compliance como forma de assegurar o financiamento pleno das universidades. Há, de fato, um déficit de transparência na prestação de contas das instituições federais que justifique a elaboração de um novo “programa de integralidade”? Lembramos, a esse respeito, que a investigação da Polícia Federal (que, lamentavelmente, vitimou o ex-reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier) foi encerrada, por exemplo, sem nenhuma prova. Ao não apresentar indícios de que a gestão das universidades públicas atuais contém problemas, o MEC sugere, levianamente, a irresponsabilidade destas instituições com o manejo de seus recursos; mais do que isso, erra no diagnóstico quanto à causa real da crise orçamentária por elas enfrentadas: a PEC 55, que prevê o congelamento dos investimentos públicos em saúde e educação por 20 anos.

A saída proposta – ampliação da participação de capital privado no financiamento das universidades – é apresentada como única alternativa viável e tem em vista modelos americanos (como Harvard) cujas características são bastante diversas das universidades públicas brasileiras. A atual gestão do MEC parece desconhecer, por exemplo, o caso recente da Alemanha, que acaba de anunciar um aumento considerável (mais de 42 bilhões de euros) do investimento público em suas universidades. Afirmar, portanto, que o Future-se visa adequar nosso modelo de gestão universitária (atrasado, é preciso supor) ao que há de mais moderno no mundo é fazer um recorte bastante parcial das principais práticas orçamentárias em voga atualmente.

Há que se considerar, ainda, que essas medidas não garantem de fato a autonomia financeira propagandeada pelo programa. Pelo contrário, ao vincular a captação de recursos ao mercado, aspectos que estão nos alicerces de uma universidade, como a autonomia científica e administrativa, estarão ameaçados. Os proponentes do Future-se ignoram que a produção e a difusão do conhecimento possuem uma dinâmica própria, em muitos aspectos incompatível com a do mercado. Parecem ignorar também a existência do Plano Nacional de Educação (PNE), que em sua meta 20 estabelece a ampliação gradual do investimento público em educação, prevendo 7% de investimento do PIB até 2019 e 10% do PIB até 2024.

Entendemos, portanto, que o programa Future-se não possui os elementos necessários para solucionar os problemas que estão candentes na universidade brasileira atualmente. Elaborado sem que os cidadãos efetivamente envolvidos na vida cotidiana da universidade tenham sido ouvidos, não parte de um diagnóstico preciso das causas e especificidades desses problemas, e apresenta medidas que, na melhor das hipóteses, são confusas e imprevisíveis, e na pior, apontam na direção oposta às necessidades da universidade e virão para aprofundar seu sucateamento.

Sobre o Coletivo

Formado em abril de 2019, por estudantes de graduação, pós-graduação e professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), o coletivo “Em defesa das humanas” propõe a constituição de espaços de reflexão crítica, aberta e pública sobre temas sensíveis à sociedade brasileira, por meio do compartilhamento de pesquisas em desenvolvimento e do oferecimento de panoramas que auxiliem a população na compreensão de fenômenos complexos que permeiam a vida política, social e cultural do país.

Foto: Vermelho

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