Um nova eugenia em debate?

Recentemente, o geneticista norte-americano James Watson, considerado pai da biologia molecular e quem desvendou a dupla hélice do DNA, afirmou, sem nenhuma base científica, e ancorado no senso comum, que os povos da África são menos inteligentes em comparação com os povos do hemisfério Norte. Sua declaração foi recebida com duras críticas pela intelectualidade internacional e o obrigou a escrever um artigo se retratando. Entretanto, suas desculpas tiveram unicamente um caráter formal, pois, no mesmo artigo ele afirma que “eu sempre defendi que nós devemos basear nossa visão do mundo no nosso conhecimento, nos fatos, e não naquilo que gostaríamos que fosse”, disse em um dos trechos. A idéia de justificar diferenças econômicas entre continentes olhando pela janela dos países que ao longo dos últimos quinhentos anos nada fizeram além de criar teorias do senso comum para justificar a dominação dos povos.

Charles Murray, cientista político norte-americano e autor do livro “The Bell Curve”, (A Curva do Sino, Free Press, 1994), saiu na defesa das idéias de Watson. Já no seu livro ele afirma que testes de QI (quoficiente de inteligência) apontavam que há diferenças entre raças, com brancos se saindo em média melhor do que negros. Em certa medida as teses não são novas, mas o que há por trás deste movimento que reaparece com certa rotina?

Escondida atrás da idéia de que a ciência natural pode ser um instrumental de análise e determinação dos conflitos entre as classes sociais e ao mesmo tempo justificar o porquê determinadas nações ou povos têm supremacia econômica, em detrimento de razões objetivas nas relações de produção e ao contexto da chegada e dominação promovida pelos povos europeus na África e nas Américas, principalmente.

No Brasil, a eugenia teve grande importância no pensamento hegemônico que fundou as bases do Estado moderno no final do século 19 e durante a primeira metade do século 20.

Em certa medida, o movimento higienista e sanitarista, que tiveram Osvaldo Cruz (1872-1917) como um de seus principais defensores, foi incorporado oficialmente ao Estado em 1903. Ao ser nomeado pelo presidente Rodrigues Alves para a direção do serviço de saúde pública do Rio de Janeiro, seu pensamento e suas ordens deram suporte para o surgimento, em 1917, do pensamento eugênico com força no Brasil, por meio do médico Renato Kehl.

Ideologicamente, o higienismo de Osvaldo Cruz foi incorporado pela eugenia de Kehl, o que vitaminou as teses racistas na superestrutura do Estado brasileiro. A despeito da exclusão econômica promovida contra a população negra, mestiça e indígena em favor de um clareamento do fenótipo brasileiro, talvez o dilema do genoma possa ser a eugenia.

Ao fazer declarações polêmicas, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, reascendeu velhas feridas históricas do Brasil e especialmente da “Cidade Maravilhosa” ao ancorar-se e fazer referência às teses do livro “Freakonomics”, que seguem a velha fórmula da antropologia criminal de Cesare Lombroso (1835-1909). Cabral pisou em um terreno perigoso, colocou em risco seu histórico democrático e de quebra ainda fez coro com o neo-racismo eugenista.
A obra “O Homem Delinqüente”, cuja primeira edição apareceu em 1876, converteu Lombroso em celebridade de grande sucesso e reconhecimento científico à base de uma imprensa alimentada com os descobrimentos do fim do século 19 e de tendência positivista.

A visão criminalizante dentro do Estado de direito, usada para defender a legalização do aborto como forma de prevenir a criminalidade e a violência, promove uma confusão dentro do debate sobre o próprio aborto, que deve ser tratado no campo da saúde pública e como problema da sociedade brasileira.

Outro personagem brasileiro que acaba fazendo eco numa proporção menor é o médico Drauzio Varella, que no dia 14.04.2007, na Folha de S.Paulo, publicou artigo intitulado “Tal qual avestruzes”. No artigo, ele resgata uma resolução da World Scientific Academies de 1993 que afirma que “A HUMANIDADE se aproxima de uma crise. Durante o tempo de duração da vida de nossos filhos, nosso objetivo deve ser o de atingir crescimento populacional igual a zero”, profetiza.

Um dos artigos, intitulado “Os filhos deste solo”, ele usa o determinismo, condena a pobreza à não reprodução e evoca conceitos elaborados por Malthus, como a teoria da taxa de reposição quando afirma que “Para manter constante a população de um país, cada casal deveria ter dois filhos. Um para substituir a mãe quando ela morrer, e outro para substituir o pai. É a chamada “taxa de reposição”. O paradigma malthusiano apresentou um bode expiatório – o crescimento ilimitado da população – para explicar a fome, as guerras e os vícios. Varella segue a mesma receita, usa os gráficos de crescimento populacional brasileiro que apontam uma taxa média de filhos por família de 6,3 em 1950, contra uma taxa média de 2,3 em 2000 (IBGE, 2000). Ele questiona a média e os dados dizendo que
“Quarenta anos atrás, no Brasil, cada família tinha em média seis filhos. Hoje, as estatísticas mostram que estamos muito próximos do equilíbrio populacional, com pouco mais de dois filhos por mulher. Mas as estatísticas refletem a média, e as médias podem ser traiçoeiras…”

Em seu livro “Cidade Febril”, Sidney Chalhoub resume a visão da elite no auge do higienismo no Brasil (…)os pobres passaram a representar perigo de contágio no sentido literal mesmo. Os intelectuais médicos grassavam nesta época como miasmas na putrefação, ou como economistas em tempo de inflação: analisavam a “realidade”, faziam seus diagnósticos, prescreviam a cura, e estavam sempre inabalavelmente convencidos de que os hábitos de moradia dos pobres eram nocivos à sociedade, e isto porque as habitações coletivas seriam focos de irradiação de epidemias, além de, naturalmente, terrenos férteis para a propagação de vícios de todos os tipos (…)(Chalhoub, 1996, p.29).

Quando se trata de formular políticas públicas de saúde, a favela é onde supostamente há um descontrole demográfico apesar das estatísticas oficiais negarem “A Favela Jardim Edith, em São Paulo, é cheia de crianças. Construídas quase na rua, as casas de madeira e papelão ocupam toda a calçada de uma das avenidas mais movimentadas da cidade.” (Varella, http://drauziovarella.ig.com.br/)

Thomas Malthus trabalhou sob as “leis” da inevitabilidade biológica de uma superpopulação humana e que a economia do século 19 não daria conta de prover os meios necessários para alimentar todos. A ação dos eugenistas na América Latina, como descreve de forma brilhante Nancy Leys Stepan, em “The Hour of Eugenics”, parte da aplicação e difusão dos conceitos de Galton, que constrói as teses que se incorporarão o higienismo em 1917, no Brasil, afirmando que as habilidades naturais dos homens são derivadas por herança. Para exemplificar o raciocínio eugênico: para obter boas raças de cachorro ou cavalos é só realizar uma seleção permanente de espécies que possuem, por exemplo, um peculiar poder para correr, você poderá obter espécies que conservem estas características por gerações. Portanto, se mulheres de boa raça se casarem com homens de boa raça, poderemos obter boas raças em gerações seqüenciais. (Stepan, 1991)

Inspirados pelos ideais da medicina social, como aponta Michel Foucalt e o papel da intelecualidade na formação da superestrura do Estado, como sugere Gramsci, os médicos foram incorporados à administração estatal e auxiliaram na legitimação científica e moral das ações, pois como intelectuais e detentores dos conhecimentos das ciências naturais não poderiam ser contestados em plena era da razão e da ciência. O que se seguiu foram ações que modificaram, além da paisagem urbana, também e profundamente as relações do Estado com a população da nova sociedade em formação.

No Brasil, as desigualdades sociais e o racismo possuem um ponto de partida semelhante, o que nos possibilita uma investigação a partir da construção dos pressupostos eugenistas e higienistas que colocaram os negros e seus descendentes em uma escala de inferioridade social. Para conduzir este processo, o papel do pensamento biologizado difundido pelos intelectuais, principalmente os médicos, são sentidos até os dias atuais.

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