Spirito Santo: um pesquisador musical e escritor desfazendo ruídos sobre as origens do samba e da cultura afro-brasileira.

(foto: Marina Alves)
Conjugando atividades em diferentes espaços Spirito Santo faz artesanato musical (organologia), milita na luta antiracismo e promove discussões que colaboram com o reconhecimento da contribuição negro-africana para a formação da cultura brasileira. Em seus trabalhos como professor convidado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor do livro “Do Samba ao funk do Jorjão”, produz esclarecimentos sobre o surgimento do samba brasileiro e do carnaval carioca, dois pilares de sustentação de nossa cultura e espaços de projeção de identidades afro-brasileiras.

Ao refletir sobre experiências acumuladas nas seis décadas de vida, o pesquisador avalia a presença do negro na vida social e cultural, levantando questões cruciais para acorrentar os afrodescendentes a estereótipos atribuídos no passado e mantidos nos presente. Atento aos movimentos necessários à desconstrução de rótulos e preconceitos, o autor faz colocações apropriadas sobre “o processo dramático de exclusão e da privação do negro dos direitos de cidadania na sociedade brasileira” e aborda ações que visam a combater tal exclusão aliando escrita, pesquisa e música ao empoderamento jovens afrodescendentes, à afirmação de identidade afro-brasileira e a transformações nas relações étnico raciais.

Ciranda Afro – Em 2011 você lançou o livro “Do Samba ao funk do Jorjão”. Esta iniciativa literária corresponde a comunicação que queremos, na qual o silêncio sobre as experiências e memórias negras é rompido, dando visibilidade à participação ativa da comunidade negra brasileira na criação da arte e cultura. Fale um pouco das dificuldades e prazeres envolvidos nesta experiência de pesquisar, registrar e transmitir memórias que contam a história do samba.

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Spirito Santo – Como sabemos, o Brasil tem no racismo um dos eixos principais de seu modelo de sociedade. É um modelo arcaico, superado há muito tempo pelas sociedades mais evoluídas (e por isto mesmo, mais prósperas). O que mais nos diferencia talvez seja o fato de ter-se adotado aqui – e mantido de forma renitente até hoje – um recorte supostamente racial, fenotípico de estratificação social, criado após a abolição da escravatura como pretexto para perpetuar a exclusão social tornando-a sistêmica. Esta prática de controle social (a qual damos o nome algo eufemístico de ‘racismo’) é no Brasil, apesar de não muito sofisticada, extremamente eficiente.

Esta fachada ‘racial’ (étnica, no caso) deu à Educação e à Cultura funções mais ou menos estratégicas do ponto de vista dos gestores do sistema. É mais ou menos evidente, portanto que o monopólio da Educação, da informação, principalmente dos meios de difusão cultural, tenha se tornado o calcanhar de aquiles do sistema.

É um processo, como disse acima bem vulgar, simples e arcaico, mas que funciona. Desqualificar, subestimar a expressão da cultura específica dos demais (a cultura ‘dos negros’ no nosso caso) é, pois, a principal barricada desta elite, o ‘trono’ onde o sistema está assentado e de onde teremos que escorraçá-lo um dia.

O caso do meu livro – da literatura quero dizer, entre outros meios, o teatro, o cinema, etc. – é emblemático neste sentido. Não foi visível, mas deu para perceber nos 7 anos entre a produção do texto e a busca de uma editora, que existem filtros muito rígidos – embora sutis, enrustidos em sete chaves – tornando muito difícil a publicação de certos livros, a difusão de certas ideias em nossos meios de comunicação e dispositivos de mídia mais convencionais.

Existem, é claro, espaços e expressões de cultura negra ‘permitidos’, ‘autorizados’, tolerados’. O grande prazer que encontrei nestes anos todos (a pesquisa que redundou neste livro tem já mais de 30 anos) foi, entre outros, portanto poder exercitar – e de certo modo vencer – o desafio de contar uma história provável do Samba para todos e não apenas do gueto para o gueto, não me conformar ser enquadrado num espaço apenas tolerado, permitido, não adequar o meu discurso aos lugares comuns de sempre, o que todos repetem por aí acerca deste tema tão caro à nossa autoestima.

Ciranda Afro – O título do livro aponta para um processo de criação e transformação do samba. Ao analisar as transformações no ritmo das baterias de escolas de samba cariocas sua pesquisa indica que a abertura de espaço para o funk resulta de um processo de comunicação entre sonoridades africanas. Este diálogo diaspórico enfraquece ou renova o samba e a cultura afro-brasileira?

Spirito Santo – Na verdade, não há muita novidade nesta minha abordagem expressa pelo título. O que eu constatei é que há sim uma complexa rede de enganos, um manto de mistificações que ocultavam os aspectos mais profundos da experiência histórica e cultural dos africanos no Brasil. Este ‘processo de comunicação entre sonoridades africanas’ sempre ocorreu, até porque é humano que seja assim. Ele ocorreria de um modo ou de outro, nas circunstâncias em que se deu o sequestro, o translado forçado de tantas pessoas de um continente para o outro.

A cultura dos seres humanos – e não só a cultura negra – sempre se processou assim. Os africanos não eram, silvícolas de tanga, ‘povos tradicionais’ como certa antropologia reducionista os pinta até hoje. Eram – e são – em sua grande maioria, povos com larga e antiga – experiencia cultural e civilizatória, como se sabe. Além disto o mero convívio com a diversidade cultural do meio para o qual foram transplantados, a cultura de uns e de outros (inclusive a dos europeus, na dolorosa experiencia do colonialismo em África e na escravidão nas Américas, é claro) era natural que se ensejasse um processo de trocas com um resultado muito complexo e com traços e vocação para a modernidade.

As pessoas não se deram conta ainda, mas quando observamos mais profundamente certas caraterísticas específicas – historiológicas, antropológicas – dos modos de ser e pensar destes grupos étnicos africanos que a escravidão trouxe para as Américas, talvez se deva concluir que o próprio sentido do conceito cultura popular urbana (‘cultura pop’ como se diz mais grosso modo, no sentido mais amplo da palavra) pode ter sido criado aqui nas Américas, no início do século 19 e por força do transplante destas pessoas e suas almas cultas, espalhadas aos milhares, em multidões buliçosas, pelos principais grandes centros urbanos que se formaram na ocasião.

O eixo – um tripé – onde, neste processo o fenômeno, provavelmente se deu (e eu sugiro isto, diretamente no livro), foi o Caribe, o Brasil e o Sul dos EUA, uma linha evolutiva, de tempo que simbolicamente vai “…Do Samba ao Funk do Jorjão”.

É por isto que, neste sentido, não existe para mim, uma música negra ‘brasileira’, ‘nacional’, no sentido restrito e xenofóbico mais recorrente. As circunstâncias em que se deu a escravidão – para o bem e para o mal – produziram uma música popular única, partilhada pelos negros das Américas e tornada a música ‘do mundo’, ‘música pop’ universal, de todo o planeta.

O Samba para mim – como o Funk original, norte americano – sínteses destas sonoridades todas, são um reflexo claro desta ‘diasporidade’ maravilhosa, que nos une e que talvez seja, com seu espírito de união fazendo força, a nossa única chance de salvação um dia.

Ciranda Afro – Ainda sobre a trajetória do samba no Rio de Janeiro, desde as primeiras manifestações culturais organizadas em torno da sonoridade africana, a comunidade negra exerceu um protagonismo na criação artística. A organização das escolas de samba foi um marco deste protagonismo. No entanto, com a transformação do desfile das escolas de samba em evento de maior projeção no calendário cultural carioca, notamos um deslocamento da comunidade negra para a periferia do espetáculo. Qual sua impressão sobre este processo?

Spirito Santo – O que ocorreu no Rio de Janeiro a partir de 1910 está ligado diretamente a este fenômeno cultural diaspórico ao qual acabo de me referir. Não foi um fenômeno de modo algum isolado, envolvendo inclusive um processo muito intenso de transferência de populações de um estado para o outro. O reflexo musical deste processo na época, mais precisamente foi o surgimento das grandes bandas musicais e de fenômenos musicais típicos como a ‘Habanera’ cubana (a Salsa atual), o Rag Time de New Orleans e o Samba (e o Choro) carioca.
O que deflagra este processo do ponto de vista cultural aqui no Rio de Janeiro na verdade não é o nem o Samba apenas (que, aliás nem existia ainda como tal), mas de um lado a emergência dos hábitos baianos (como o ‘pastoril’ ou ‘Lapinha’ lusitana, aqui chamada de ‘Rancho Carnavalesco’ prevalecendo) e, de outro lado, pelo Jongo (que resultou no ‘Partido Alto’) trazido das fazendas de Café do Vale do Paraíba do Sul, na província do Rio de Janeiro (bom frisar também que o Candomblé não tem, a rigor nenhuma participação, assim direta ou relevante nesta mistura musical, no caráter de música urbana, profana, dela).

Era, portanto um processo de muita efervescência social no qual o negro assume o protagonismo não exatamente por ser negro (ou africano) mas por ser o ‘povo’ real e visível, a maioria populacional nestes centros urbanos principais que se formaram (Rio de Janeiro, Salvador e Recife) que acumularam uma massa impressionante de ex escravos em busca de trabalho e sobrevivência.

Há que se considerar também que há no processo um recorte social muito sutil que a historiografia brasileira omite ou subestima: Os baianos que chegam à Corte (uma pequena colônia oriunda de Salvador, na verdade) são uma espécie de classe média emergente, já desde a Bahia com um grau importante de assimilação dos valores pequeno burgueses brancos que surgiam. Eles tinham um espírito de corpo, uma vocação elitista muito forte marcada por agudos anseios de ascensão social. Este perfil de colônia negra orgulhosa, atraiu – e iludiu – a inteligentsia branca da época (como ilude a academia branca ainda hoje), criando um conceito de ‘pureza’ negra, de ‘supremacia ‘yorubaiana’ (que eu chamo no livro de ‘reducionismo nagô’) bem questionável à luz de estudos mais aprofundados.

Ciranda Afro – Além das transformações rítmicas abordadas em seu livro, as escolas de samba realizaram muitas transformações visuais. No cenário das escolas houve aumento de luxo e da profissionalização, com um visível embranquecimento da equipe técnica e dos componentes das escolas. Como ficou o protagonismo da comunidade negra no atual samba carioca? Nesta trajetória de profissionalização do carnaval, como explicar o distanciamento dos afrodescendentes das posições de comando das escolas de samba e órgãos ligados à organização dos desfiles cariocas?

Spirito Santo – As Escolas de Samba são um excelente microcosmo para se analisar o processo dramático de exclusão e da privação do negro dos direitos de cidadania na sociedade brasileira. O processo que descrevi entre 1910 e 1930 é virtuoso para o negro. O Rancho Carnavalesco deixa de ser uma manifestação pequeno burguesa luso baiana e, embora já tocada por negros, assume de vez, com a chegada do Samba dos jongueiros entre outras influências, características negro africanas bem mais definidas.

Já com este perfil estético essencialmente negro africano, as Escolas de Samba catalizam então tudo que é cultura de massa no âmbito do Carnaval da cidade. De certo modo, o Carnaval de rua da elite, da classe média carioca (que no geral já se isolara nos salões) passa a ficar reduzido apenas às Chamadas ‘Grandes Sociedades’, desfiles de imensos carros alegóricos.

No livro se pode observar nitidamente que ficou mais ou menos evidente no pós guerra (e por razões que não cabe analisar aqui) a agudização do processo de empobrecimento, exclusão geral da comunidade negra. Iniciativas como o Teatro Experimental do Negro, num rol de iniciativas culturais dos negros urbanos que começa antes de 1950, demonstram claramente que o racismo se agravou muito e que algo precisava ser feito.

É nesta fase que o processo de degradação das Escolas de Samba atual, aparentemente se inicia também, sutilmente a princípio, para se agravar muito nas décadas seguintes, 1960 e 1970. O sinal mais evidente desta decadência política das Escolas de Samba, como representação de nossa cultura negro africana, consiste nas ‘transformações visuais’ que são, nada mais nada menos do que a inserção das ‘Grandes sociedades’ burguesas, seus gigantescos carros alegóricos e seus artistas plásticos ‘carnavalescos’, no contexto de uma manifestação antes inteiramente ‘popular’, ‘de pobres negros’, numa espécie de democratização às avessas.

Os resultados deste longo processo (que não é exclusivo das Escolas de Samba, pois a proliferação de favelas e bairros miseráveis para negros se inicia nesta época também) pode ser claramente observado hoje, quando de Samba – e de sambistas – mesmo as Escolas de Samba já não têm quase nada do que tinham no passado.

Ciranda Afro – O crescimento do carnaval de rua e a profissionalização das escolas de samba são oportunidades para a inclusão da comunidade negra em atividades culturais remuneradas e valorizadas economicamente?

Spirito Santo – Infelizmente não. E estes são os outros aspectos omissos da questão. O espaço político e econômico do negro nas Escolas de Samba foi inteiramente usurpado por interesses espúrios os mais diversos há muito tempo, desde os anos 1970, à época da ditadura militar pelo menos. Os interesses comerciais pelo gigantesco valor econômico dos eventos são muito poderosos.

Na verdade as Escolas de Samba – entidades legais sem fins lucrativos – se transformaram em espécies de lavanderias de dinheiro escuso de variados tipos de máfia, entre as quais os chamados ‘contraventores’ – que, aliás vão perdendo terreno rapidamente para outras máfias mais poderosas – são apenas um grupo a mais. Isto sem contar nos interesses midiáticos mais evidentes.

No livro conto um curioso e emblemático exemplo da tentativa de organização de uma entidade profissional de ritmistas de Samba (iniciativa de um mestre de bateria nos anos 80) que foi rapidamente abortada e esquecida depois do que pareceu ser uma sutil ameaça de morte lançada no ar por um famoso (e falecido) ‘patrono’ contra o ex-quase sindicalista sambista.

A relativa ausência de negros nos inúmeros blocos de Carnaval de rua do Rio de Janeiro de hoje em dia é também um sintoma bem claro desta situação que, como disse é dramática.

Ciranda Afro – Além da cultura, e do carnaval, outras frentes de atuação foram abertas pela comunidade negra. A partir dos anos 1970, militantes negros/as tomaram lugar na produção de ações práticas e reflexões teóricas que têm garantido a inserção de questões afro-brasileiras na comunicação. Nos atuais tempos de cultura digital, a web abre espaço para experiências promotoras da democratização da informação. No Brasil, ativistas da luta pela igualdade racial e estudiosos das relações étnicoraciais têm recorrido ao blog como ferramenta que amplia a circulação de conhecimentos e de questões importantes para afirmação da cultura e dos afro-brasileiros. Em que medida estes espaços constituem um novo modelo de militância?

Spirito Santo – Esta é sem dúvida a grande virada nesta questão. O caráter amplamente democrático da internet quebra a espinha dorsal de um sistema baseado no controle da informação, na medida em que mais e mais pessoas vão aprendendo a utilizar estas novas mídias disponíveis e vão podendo exercer os seus direitos culturais a coisa muda, rapidamente. Eu mesmo sou um fruto deste processo aí, pois, velho militante da cultura negra que sou, só agora, me valendo destas ferramentas é que consegui dar alguma fluidez e visibilidade às ideias que já manifestava desde os anos 70.

Há muito que se fazer no entanto no campo da Educação e da difusão de nossa cultura real, pois de modo geral, ainda temos uma ideia bem estereotipada de nós mesmos, e os mecanismos de acesso do negro à fontes de pesquisa – o acesso à Educação formal em suma – ainda estão inteiramente controlados pelos mesmos agentes de sempre. Pessoalmente acho que ainda estamos muito submissos, subordinados a uma ideia de história e cultura negras mistificadas e tuteladas pela academia ‘branca’. No livro apelo veementemente por um amplo processo de revisão destas mistificações todas que nos impuseram e que ainda reproduzimos de forma totalmente acrítica.

Ciranda Afro – A união de música e educação gerou o projeto Musikfabrik. Jovens afrodescendentes travaram contato com o processo de criação de instrumentos tradicionais africanos durante a atividade. Com base nos resultados deste projeto, qual é a importância do acesso a conhecimentos resguardados pela matriz africana para despertar nos jovens uma identidade afro-brasileira?

Spirito Santo – O Musikfabrik é uma experiência muito positiva no sentido da utilização à nosso favor de mecanismos pedagógicos muito eficientes, mas em geral totalmente desprezados pela Educação convencional, burguesa. Este mecanismo é a Linguagem Musical, fonte poderosíssima de transmissão de conteúdos gerais, história, antropologia, matemática, física, um mecanismo fundamental à sobrevivência da cultura africana no Brasil por força da grande experiência dos africanos com dispositivos pedagógicos de transmissão de conhecimentos de natureza oral (acústicos, por suposto).

Sempre ressaltamos nestes mais de 15 anos de Musikfabrik a enorme eficiência de mecanismos ligados às ‘múltiplas linguagens’ nos processos de escolarização de nossa população, não só negros ou afro descendentes, diga-se porque nossa cultura é fortemente marcada por valores negro africanos sim, mas todos, negros e brancos estamos sujeitos, afeitos a ela, pois é a cultura de todos nós.

Contudo, com exceção de algumas poucas parcerias que estabelecemos, a adesão das instituições convencionais de ensino – inclusive a UERJ, instituição a qual , por enquanto, ainda pertencemos – a estas nossas ideias sempre foi mínimo. No geral, apesar de nossa longevidade e visibilidade sempre nos subestimaram como experiencia educacional, tentando nos reservar apenas espaços subalternos como uma oficina de instrumentos musicais exóticos, folclóricos ou curiosos ‘para negros’. A despeito dos preconceitos rasos e clássicos (e típicos de nosso racismo sistêmico), contudo, o sucesso e a pertinência desta nossa experiência são reconhecidos internacionalmente.

Ciranda Afro – A educação brasileira elegeu o livro como principal ferramenta didática, mantendo pouco explorado o potencial didático dos muitos sambas de enredo que ensinam a história do Rio de Janeiro, do Brasil e de figuras significativas nestas histórias. Quais as perdas resultantes desta falha de comunicação entre a escola e um ritmo tão presente no cotidiano de grande parte dos estudantes?

Spirito Santo – É precisamente o tema da pergunta anterior. A educação brasileira, pensada para excluir a maioria das pessoas e manter uma casta minoritária no poder, é uma das mais atrasadas do mundo. Agora mesmo, como um país burro empacado, estamos perdendo avanços importantes por falta de quadros preparados para ocupar postos de trabalho gerados pelo nosso relativo sucesso econômico.

Fica cada vez mais evidente de que este atraso recorrente se dá em todos os níveis, desde o ensino elementar e fundamental e seus processos ‘deseducativos’ até a universidade, renitentemente aristocrática, anti democrática, burra mesmo porque trabalha com princípios elitistas de transmissão de apenas alguns conhecimentos para poucos, apenas o suficiente para manter a mesma elite no poder (como em uma terra de cegos).

Os filtros sutis aos quais me referi que dificultam a publicação de certa literatura ou a fruição de certas ideias nos meios de comunicação convencional são a prova desta nossa endêmica ‘burrice acadêmica’.

Ciranda Afro – A Conferência Rio +20 tem por proposta renovar o comprometimento político com o desenvolvimento sustentável e incentivar a economia verde como uma saída para a erradicação da pobreza. Que discussões podem ser promovidas nesta Conferência para colaborar com políticas que auxiliem na ampliação de cidadania e sustentabilidade da comunidade negra?

Spirito Santo – À comunidade negra foram relegados os piores espaços de ocupação do espaço urbano. Negados historicamente seus direitos de acesso à terra no interior do país, deixaram que o negro – e agora o nordestino – ocupasse as áreas mais degradadas das grandes cidades ou, por absoluta falta de alternativas, áreas que ele mesmo, favelado foi obrigado a degradar.

De certo modo o negro foi transformado pelo sistema numa espécie de predador do meio ambiente urbano, empurrado para periferias cada vez mais afastadas dos serviços urbanos essenciais garantidos apenas aos poucos de sempre, e barrado também de alternativas ligadas ao acesso a terra para plantar. O nível de favelização de cidades brasileiras como o Rio de Janeiro por exemplo – um problema ecológico mais que evidente – é, por isto mesmo o de uma cidade em coma, estrangulada por sua imensa periferia.

Sou pessimista diante destas iniciativas macro de desenvolvimento sustentável porque elas as vezes ignoram problemas ambientais básicos de nossas sociedades, aqueles ligados às pessoas, como é este caso de nossas favelas, por exemplo. É óbvio que o sistema econômico hegemônico que nos rege é o grande responsável por nosso dramático desequilíbrio ambiental. As soluções propostas, contudo (e o conceito +20 tem um peso de contagem regressiva assustador) não se atrevem a questionar o sistema em nenhum grau e são sempre paliativas, retóricas, quase nunca – notadamente no Brasil – considerando as pessoas como um componente essencial desta equação ecológica, deste ‘mundo a ser salvo’.

As políticas atuais aplicadas no Rio de Janeiro, por exemplo claramente estimuladas por interesses financeiros e turísticos imediatistas, ‘de ocasião’, no que diz respeito à gestão dos problemas socioambientais e de moradia (saneamento básico, saúde, transporte, etc.) ligados à comunidade favelada (negra e nordestina) são a prova candente deste descalabro oportunista e ecologicamente irresponsável.
É provável que a criação, por parte do negro, de um sentimento cultural de pertencimento a esta sociedade a ser transformada (sair do isolamento deste gueto emocional em que se encontra), um sentimento de revolta franca e ampla que estimule a organização de formas de luta coletiva mais eficazes, sejam as únicas formas de quebrar a lógica paliativa do sistema que, ao que parece vai querer sempre ‘mais 20’, ‘mais 20, com o negro – o excluído de sempre – no papel de predador de si mesmo.

O poder da cultura e seus mecanismos de comunicação social, como força coercitiva destas mudanças me parece, neste aspecto crucial.

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