“Que coisa estranha, brincar de matar índio, de matar gente”

Foto: monumento em homenagem ao índio incendiado

Autores:
Alexandre de Oliveira Fernandes;
Manoel Santos Mota

Resumo

Este artigo discute o currículo como espaço de luta e poder, tendo no multiculturalismo uma atitude de resistência à contrapartida homogeneizante proposta pela globalização e o neoliberalismo. Tal recorte desponta em um mundo contrastante: há que se formar para os conhecimentos ditos básicos, mas também para a tolerância e a convivência com o diferente. Assim, apresentamos uma alternativa à lógica do currículo comum, partindo de experiência promovida pelo Instituto Associados Saber e Cultura – IASC, com suas “Aulas-cinema”.

Palavras-Chave: currículo, multiculturalismo, diversidade cultural; cinema.

Currículo e suas relações com o poder: à busca do multiculturalismo

Que coisa estranha, brincar de matar índio, de matar gente. Fico a pensar aqui, mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade, espantado diante da perversidade intolerável desses moços desgentificando-se, no ambiente em que decresceram em lugar de crescer.
Paulo Freire

Na sociedade brasileira, o pessoal de classe média e alta tem um poder de reivindicação muito maior do que o pessoal da periferia. Quando eles reclamam, costumam ser ouvidos. Já quando é o povo quem reclama, quem responde, às vezes, é a polícia.

Claudius Ceccon, Miguel Darcy de Oliveira, Rosiska Darcy de Oliveira

As epígrafes que abrem nosso texto são índices da educação contemporânea. Na primeira, Freire nos alerta contra a “desgentificação” do homem, contra o seu “decrescimento”. Enquanto a segunda, aponta para a grave exclusão social brasileira e suas conseqüências. Ora, não há como falar de escola, sem discutir a sociedade e suas mazelas: a escola é parte de uma engrenagem social maior, que é (re)produzida por meio de suas ações, por meio do currículo escolar.

Neste sentido, a escola tem parte de responsabilidade com o que ocorreu com o índio Galdino, assim como é de sua responsabilidade os Hitlers, Bushes, Stálins, Sharons, pós-modernos, que prosseguem fomentando guerras, morticíneos, opressão de negros e nordestinos. Quando jovens brincam de matar índio, vê-se todo o seu desprezo pela diferença, pela diversidade. Quando caçoamos do cabelo do colega na escola, porque não é liso… Quando rimos do jeito de falar do outro, não estamos tendo outra atitude que não aquela da intolerância. Dadas estas constatações e a importância da escola para a sociedade, temos como necessário o re-visar do currículo e suas relações com o poder.

A década de 1970 é marco para os estudos do currículo: é a partir das teorias ali desenvolvidas que o currículo passará a ser visto como um espaço de lutas. As teorias críticas e pós-críticas do currículo subvertem, neste sentido, a lógica das teorias tradicionais que se entendiam como “neutras”, “científicas”, “desinteressadas”. Esta subversão tem como ponto central a questão do poder. Assim, os estudos em torno do currículo escolar passam a tratá-lo como subjetivo, arbitrário, resultado de luta e poder, questionando-o de modo a desvelá-lo, como um sistema de signos ideológicos que movimenta a sociedade.

Em outras palavras, como nos informa Tomaz Tadeu da Silva (2004:17), estudioso do Currículo no Brasil, as teorias críticas e pós-críticas do currículo pautadas pelas questões da ideologia; reprodução cultural e social; poder; classe social; capitalismo; relações sociais de produção; conscientização; emancipação e libertação; currículo oculto; espaço de resistência; identidade; alteridade; diferença; subjetividade; significação e discurso; representação; cultura; gênero; raça; etnia; sexualiade; multiculturalismo, quer desvelar por que certos saberes são canonizados? Com que objetivos? Que atores sociais definem o currículo? O currículo tem servido de mecanismo para que a classe dominante transmita suas idéias, sua forma de ver o mundo, para a classe dominada? Como? Por quê? Há espaço para a subversão?

O educador Paulo Freire (2005:96), sobre o currículo, em seu conhecido livro Pedagogia do Oprimido, já declarou que o diálogo não pode estar distante da busca pelo conteúdo programático. Assim, apresenta dois tipos de educadores: o educador-bancário e o educador-educando. Para o primeiro, o conteúdo é mais importante do que qualquer diálogo com o educando. Sua preocupação é com o seu programa e não com os interesses que os educandos por ventura possam ter. Já o educador-educando, dialógico, problematizador, percebe que o conteúdo programático “não é uma doação ou uma imposição, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada”.

Por isso, quando falamos de relações de poder que perpassam o currículo estamos questionando o que pode e o que não pode “aparecer” nas escolas, uma vez que, o currículo é resultado de seleção de saberes que procura “modificar” as pessoas que vão segui-lo. Neste sentido, o currículo pode estar a serviço de um fim: domesticar, alienar, libertar, revolucionar. Não à toa, segundo Silva (2004:15), “o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade”.

A postura do educador, portanto, não pode ser neutra, nem ingênua em frente ao necessário desvelamento do currículo. A ele cabe percebê-lo como uma trama de relações que implica poder e ideologia e não recebê-lo passivamente reproduzindo-o como se fosse adestrado para isso. Em outras palavras, a educação que se faz nas escolas é resultado de lutas políticas, históricas e de poder, e o educador deve atentar para este fato, produtor de história e de lutas que o é.

Através dos currículos escolares são apresentados aos educandos e a toda uma comunidade, os ritos culturais, os saberes ditos legítimos, enquanto outros são excluídos, lançados à margem. Historicamente, foi o pensamento hegemônico do positivismo que definiu no século XIX os limites entre ciência e senso comum, estruturando o conceito de disciplina com o qual trabalhamos na modernidade. Assim, coube ao currículo determinar o que é conhecimento a ser discutido. Numa visão crítica, o debate em torno de como ensinar conteúdos, sai de cena dando lugar ao por que ensinar dado conteúdo; implicando, assim, outra questão: que conteúdos não estão sendo contemplados e por quê.

(Des)Tecendo esta rede ideológica, quem define o que deve ou não aparecer nos currículos também define o que deve ou não ser discutido nas escolas: eis a questão do poder. Por isso, a escola que se pretenda plural, deve estar atenta às demandas que extrapolam o currículo escolar, no intuito de contribuir para a produção de um conhecimento crítico que enfrente a homogeneização dos saberes e as engrenagens sociais responsáveis pela manutenção do status quo.

Importa destacar, também, que se o currículo segue uma lógica – que é a econômica -, de “disciplinarização do mundo”, exerce controle sobre estudantes, professores, professoras e instituições escolares. Quando questionamos por que é tão difícil mudar a sociedade, talvez a resposta se encontre nesta arena de luta: o currículo. Moreira e Macedo (1999:12), por exemplo, nos contam sobre como o Banco Mundial influencia a política escolar dos países subdesenvolvidos, e de que modo, o Estado, após as décadas de 1980 e 1990 passa a ser um Estado mínimo, tendo sua autonomia reduzida: há um novo processo de colonização, desta vez, promovido pela educação.

Ora, se a sociedade não é homogênea, que condição, que direito tem um grupo de determinar o que pode ou não ser ensinado. Quando um grupo determina, por meio de sua força, de que modo um outro setor social irá pensar, como irá agir, não está fazendo outra coisa senão legitimar sua crença, seu ritual, seu saber, uniformizando, homogeneizando toda uma sociedade. Sobremodo, sendo o Brasil um país continental, que conhecimentos estariam sendo contemplados, aqueles próprios do eixo Rio-São Paulo? Pautar nossa prática por esse discurso seria ir de encontro a uma tendência plural, tudo o que interessa à manutenção do sistema.

Para Moreira (1999: 84) há uma preocupação da elite contra um currículo pautado pelo multiculturalismo. A elite crê que apenas seu modo de ver o mundo é o adequado, aceitável, ao passo que outros olhares, os dos marginais são uma ameaça à homogeneização cultural perseguida, o que faz com que sejam desvalorizados, descredibilizados, desrespeitados, oprimidos. Por isso, a grade curricular será um empecilho para que “saberes de fora” da escola se apresentem (ARROYO, 2000).

No campo do ideológico, por outro lado, as discussões em torno do currículo impõem desvelar a globalização e sua metáfora farsante: a “aldeia global” que promete benesses para todos. Segundo Moreira e Macedo (1999:18), a aldeia global não existe, vez que o projeto de globalização pressupõe: (i) a homogeneização das culturas e não o respeito às diferenças; (ii) a não reciprocidade de relações entre os países; (iii) que os conhecimentos científicos não sejam acessados de forma igualitária; (iv) invasão; destruição de manifestações culturais. Por isso mesmo, o professor Milton Santos (2006:40) chamar a “aldeia global” de fábula perversa.

Por outro lado, esta mesma globalização, segundo nos apresenta Ianni (1997), favorece que povos antes subjugados, possam articular seus elementos culturais, desenvolvendo perspectivas de auto-afirmação, autoconsciência e luta. Temos então um paradoxo que nos faz retornar à visão de arena de lutas do currículo.

Há, portanto, um espaço para a subversão. Diariamente, professores e professoras, estudantes do diversos níveis reinventam o currículo, numa atitude ousada de quem inova, de quem não se a-sujeita, promovendo uma outra história. O conteúdo formal é apresentado, mas uma série de saberes acaba “vencendo” a barreira curricular e se impõe como tema a ser discutido. Assim, uma nova teia de significantes e significados é produzida, a partir das “invenções cotidianas” (MOREIRA, MACEDO,1999). Reforçando a questão, Giroux, discutido por Silva (2004:53), entende que o currículo não é apenas e tão somente espaço de dominação e controle: “deve haver um lugar para a oposição e a resistência, para a rebelião e a subversão”.

Todavia, importa não cair novamente no discurso fabuloso. Estas manobras são possíveis porque o processo de globalização gesta em si o seu contrário, paradoxalmente. Lopes (1999:62) citando Ortiz (1994) traz uma reflexão bastante interessante sobre este assunto:

executivos de grandes transnacionais consideram que as sociedade globais e tecnificadas impõem a valorização das diferenças, da heterogeneidade, do pluralismo, ao contrário dos tempos do fordismo, em que nos era imposta uma cultura padronizada e homogênea. Afirmam, no entanto, que o mundo, especialmente do ponto de vista da sociedade de consumo, está cada vez mais idêntico. (…) padronização e diferença globalização e diversidade são partes, no contexto da sociedade de consumo, de um mesmo fenônemo – a universidade de um produto garante o elo entre as diversidades existentes.

Assim, a globalização, interage e infere na educação: é o avanço da globalização e do neoliberalismo, que determinará à contemporaneidade uma força antagônica e paradoxal. De um lado, há um clamor por uma escola pautada pela eficiência, produtividade e competitividade, mas também assistimos a uma postura política, em que dadas escolas estão mais preocupadas com a inversão desta lógica excludente. (MOREIRA, 1999:17).

Portanto, apesar do caráter uniformizante do currículo pautado pela lógica do trio capital-globalização-neoliberalismo, há um espaço de fuga. Sabemos que as relações entre o econômico e o cultural se apresentam como subordinação do segundo pelo primeiro, todavia, esta subordinação não é poderosa ao ponto de homogeneizá-la (CANCLINI, 1990). É aí que se nos apresenta o currículo multicultural.

O que é um currículo multiculturalista

Propor uma discussão epistemológica sobre “currículo multiculturalista” é fundamental, hajam vistas as diversas vertentes acerca do que seja currículo e multiculturalismo.

Em torno de currículo, este trabalho se apóia em Silva (2004:150), pesquisador que o define como lugar, espaço, território, relação de poder, trajetória, viagem, percurso, autobiografia, documento de identidade, espaço de luta e poder. E para multiculturalismo nos apoiamos em Moreira (1999:86), que relendo MacLaren (1997), apresenta-nos o multiculturalismo crítico, o qual, enfatiza “o papel da linguagem e das representações na construção do significado e da identidade.”

Santos (2004: 85) nos conta que um currículo multiculturalista implica em questões como diferença e identidade. Todavia, sua essência é visceralmente ambígua: de um lado, o multiculturalismo tem como origem as reivindicações dos grupos dominados no interior dos países do Norte; por outro lado, é visto como uma solução para os “problemas” colocados à sociedade dominante.

Não é intuito deste trabalho discutir em que aspectos o multiculturalismo serve à sociedade dominante, fruto de uma atitude pseudo-progressita, ao empurrar, delicamente, para debaixo do tapete seus problemas mais complexos; e em que aspectos ele é resultado de um conjunto de lutas.

Aqui, tomamos o multiculturalismo como um discurso que, ao transcender os campos da Antropologia, ganha o discurso da política, lançando a foco reivindicações que antes eram legadas ao descaso. Sobremodo, é a partir do discurso multiculturalista que a noção de supremacia das culturas será derrubada: agora não há mais por que se crer na hierarquização das culturas.

Como bem retrata Santos (2004: 90), “o multiculturalismo nos faz lembrar que a igualdade não pode ser obtida simplesmente através da igualdade de acesso ao currículo hegemônico”, é imprescindível alterar o cânon curricular, para refletir sobre “as formas pelas quais a diferença é produzida por relações sociais de assimetria”.

Neste aspecto, nosso discurso se coaduna ao multiculturalismo crítico, entendendo que a diversidade não pode ser um fim em si mesma: ela deve estar entrelaçada à justiça social. Neste caso, o multiculturalismo se apóia em uma ideologia que entende a diversidade numa perspectiva de mobilização política. A aceitação passiva de se acrescentar pontos de dada cultura em um discurso homogeneizador, pacífico, não se coaduna com os interesses do multiculturalismo crítico. Antes, uma atitude “multiculturalista crítica” rejeita a apropriação de seu discurso: luta por seu espaço de representação; querendo participar de diálogos inter-culturais, partindo-se do princípio de que toda e qualquer cultura apresenta pontos fortes e fracos, e nenhuma está em posição de superioridade em relação à outra.

Por isso, um currículo multicultural deve atender algumas expectativas: (i) preocupar-se em desfazer preconceitos e estereótipos; (ii) privilegiar a diversidade cultural, com a aceitação do diferente e do diverso, como base das relações sociais democráticas, em detrimento à homogeneização gestada à lógica do capital excludente; (iii) promover contatos inter-culturais; (iv) difundir e conhecer saberes diversos, em contrapartida àqueles validados pelo cânon da cultura dominante.

Outra razão por pautar nossos currículos pela multiculturalidade, é destacada por Moreira (1999:89), uma vez que o currículo pautado pelo multiculturalismo crítico contribui para que os saberes veiculados pela escola tenham um maior significado para o educando. Esta atitude, torna-se fundamental em “uma época marcada pelos conflitos e demandas relacionados com as identidades de raça, gênero, religião, etnia, classe social” (CANEN, 2005). Cremos que é através de uma postura multicultural crítica que a escola acolhe conhecimentos e valores historicamente marginalizados, subjugados, confrontando-os com os da classe dominante, a fim de criar conhecimentos significativos e relevantes em prol da transformação social.

Neste sentido, o Instituto Associados Saber e Cultura – IASC, está convencido da necessidade de promover atividades que primem por um espaço multicultural, tema de nosso próximo tópico.

Golpeando o sistema: o currículo do IASC em trans-form-ação

O Instituto Associados Saber e Cultura – IASC, é um espaço particular de ensino voltado para a educação básica. Tem seis anos de existência, contemplando hoje, em torno de 350 alunos.

Localizada em uma cidade pequena do extremo sul da Bahia, Eunápolis, nossa escola é conhecida por ser um ambiente agradável, com árvores, quadra coberta, estrutura diferenciada, e, sobremodo, tem se constituído em diferencial cultural para a comunidade, seja por meio das diversas atividades que promove, individualmente, ou em parceria com outras instituições: Centro Federal de Tecnologia de Eunápolis – CEFET, Universidade do Estado da Bahia – UNEB e Faculdades Integradas UnisulBahia – UNECE.

Seu currículo é aquele comum às outras escolas da rede de ensino particular. Tem disciplinas, carga horária; como escola conveniada à Rede Pitágoras recebe o material didático e assessoria. Todavia, o diferencial talvez se encontre nas “invenções cotidianas” dos professores, que encontram espaço para trans-form-ar o currículo.

Os anos de 2007, 2006 e 2005, apontam atividades que procuraram transcender o currículo tradicional, lançando mão do multiculturalismo. São trabalhos permeados pela interdisciplinaridade e multidisciplinaridade que, pouco a pouco, trazem à tona conhecimentos marginalizados pela sociedade (LOPES, 1999: 60).

Para citar alguns, desde 2005, esta escola promove o que convencionou chamar de “Seminário Interdisciplinar”, já em sua quarta edição com o tema: “Desenvolvimento Sustentável: múltiplos olhares à busca de um outro mundo possível”. Trata-se de uma mesa de debates com três ou mais palestrantes, que podem ser os alunos, para discutir temas que extrapolam o currículo. Neste caso, a interdisciplinaridade faz com que as disciplinas “conversem” entre si e extrapolem os campos legitimados, esquadrinhados pelo currículo. Isto tem inegável importância para o aprendizado do educando. Outros temas que despontaram em momentos anteriores foram: “O centenário da Física Moderna e a Literatura do Século XXI; “O negro no Brasil de ontem e hoje”; “Questões pertinentes no (Mundo do) Oriente Médio”.

O IASC também tem um jornal bimestral com o nome de IASCInforma. Este periódico é produzido pelos educandos com entrevistas, charges, contos, crônicas e fotos.

No fim de 2006, o IASC também lançou um livro com ensaios produzidos pelos educandos da quinta série do Ensino Fundamental ao terceiro ano do Ensino Médio, com o título “Ensaios: por uma interferência crítica no mundo”. São mais de cem textos versando sobre os mais diferenciados assuntos, lidando, portanto, com as diversas áreas do conhecimento.

Todavia, a atividade que nos propusemos a discutir aqui, mais detidamente, é o que se convencionou chamar de “Aulas-cinema”. Trata-se de um espaço, sempre no horário vespertino, para assistir a um filme e discuti-lo o máximo possível. Desde o início das atividades, já foram apresentados mais de oitenta filmes para os educandos da oitava ao terceiro ano do Ensino Médio.

Interessante que quando a proposta foi lançada, havia uma série de preconceitos com a atividade, seja por parte dos professores, seja por parte dos educandos. Para eles, assistir a um filme não poderia ser considerado como aula, no sentido de que o conhecimento não seria assim produzido.

Esta atitude enviesada é resultado de um discurso autoritário de educação bancária e ingênua, que entende a aula como espaço de transmissão de saberes do professor para o aluno – sempre em sala de aula, como se o conhecimento estivesse preso naquele espaço!. A sala de aula, seria então, o espaço apropriado para os saberes, com cadeiras, quadro, alunos enfileirados um atrás do outro, preferencialmente em silêncio. Por outro lado, filme bom era apenas o norte-americano; películas de outras nacionalidades eram dispensáveis.

Uma atitude multicultural, progressista, que privilegie a diversidade, o diálogo, o “confronto” responsável e tolerante entre os diferentes não se resume apenas a estes espaços. Assim, vê-se justificada a proposta das “Aulas-cinema”.

O convite era para que os educandos fossem assistir aos filmes não “como quem come pipoca em casa – apenas” -, mas como aquele pesquisador que quer perceber semioticamente como os diversos interlocutores do discurso se unem para produzir sentido. Com que ideologia está me sendo proposto dado discurso?

Para tanto, um período de amadurecimento do educando foi necessário. Hoje, o educando consegue perceber e desmontar ideologias dos filmes, dos anúncios, das entrevistas, dos diversos textos que lhe são apresentados.

Assim, não se trata de apresentar conteúdos curriculares de um modo diferente, utilizando-se da linguagem cinematográfica. A proposta das “Aulas-cinema”, vai além: os assuntos a serem debatidos semanalmente extrapolam as áreas do conhecimento e por isso mesmo, exigem do educando e do professor uma postura constantemente crítica e agentiva, própria mesma de um pesquisador.

Não há como discutir um filme criticamente sem perpassar por áreas diversas como física e sociologia, matemática e lingüística. Aprendendo a coadunar estes discursos, o educando vai aprendendo a respeitar saberes, a lidar com o diferente. Aprendendo a ver o outro, a ler a cultura do outro, ele vai compreendendo que há outras possibilidades de ver o mundo que não apenas o prisma hegemônico estabelecido pelo currículo escolar. Além do que, como quer Beane,

A adição do conhecimento popular e do dia a dia não só fornece novos significados ao currículo, como também refresca os pontos de vista, uma vez que, frequentemente, reflete interesses e compreensões de um espectro muito mais amplo da sociedade do que apenas as disciplinas escolares. (BEANE, 2003).

A escolha dos filmes deve ser, neste sentido, a mais diversa possível. Assim, foram discutidos: Narradores de Javé; A máquina; Anjos do Sol; Ônibus 174; O elo perdido; Gheto; Divas no Divã; Madagaskar; Zuzu Angel; Os contos proibidos do Marquês de Sade; Cidade de Deus; Clique; Lisbela e o prisioneiro; O jardineiro fiel; A Odisséia; Olga; O carteiro e o poeta; Volver; Jornada da Alma; O crime do Padre Amaro; Diários de Motocicleta; Elefante; Converse com ela.

Não cremos ser necessário apresentar aqui a sinopse de cada um dos filmes, haja vista que são de domínio público e/ou qualquer pesquisa na internet lança o leitor às informações sobre diretores, atores, de que tratam os filmes, seu contexto histórico. Cremos ser necessário, no entanto, apresentar pontos de discussões em sala com os educandos acerca dos filmes, sem a pretensão de querer esgotar os conhecimentos que são construídos nos debates após a apresentação dos filmes. Em essência, o resultado dos momentos de discussão é intransponível para qualquer papel, de modo que, aqui, tentaremos apenas imitá-lo.

Pensamos para tanto, apresentar “Cidade de Deus”, um filme brasileiro, com vistas a perceber como, a partir de “inovações cotidianas”, é possível refazer o currículo, levando-o a uma atitude multicultural.

A película “Cidade de Deus” propõe discussões como flash back e digressão, jogo de cores, utilização da tela com recortes em que diversas cenas são apresentadas concomitantemente: todos termos que podem ser discutidos à luz da linguagem cinematográfica e da literatura. Vê-se a luta de classes, a relação entre os “pessoal” da favela e os “playboy” (sic) da cidade; os apelidos dos personagens são emblemáticos: Cabeleira, Zé Pequeno, Madalena, Dadinho, Mané Galinha, Bené, Paraíba, Marreco – e aí discussões em torno do marxismo, das questões históricas, são necessárias -; cultura popular e cultura elitizada; utilização de linguagem padrão e não-padrão como índice de certo grupo social e poder.

Partindo do filme, uma série de pontos para discussão podem ser lançados:

(i) ironias e hipocrisias de um mundo “Cidade de Deus”;
O nome do filme, Cidade de Deus, quando confrontado com o conteúdo da obra, por si só constitui-se em uma ironia: a realidade representada nada tem a ver com uma cidade protegida por Deus – “de” Deus. Esta cidade, antes, é espaço para agressões, para o banditismo, para a humilhação dos mais fracos. Nela vê-se a polícia recebendo propina, o rico subindo o morro para comprar suas drogas e financiar o tráfico. Uma cena bastante interessante é a da jornalista, Mariana, que convida Buscapé para fumar um baseado e transa com ele. Sobremodo, a decisão de Bené de não mostrar as fotos que havia tirado dos policiais envolvidos com o crime, é símbolo da relação hipócrita e cínica com a qual o tema tem sido tratado.

(ii) a miséria, a violência, a vida animal presente em Cidade de Deus;
De que modo articulam-se a violência e a miséria, sendo produto e produtor das mazelas sociais? Sabe-se que há quem ganhe com a violência: desvelar estes atores, é atentar para a necessária postura crítica diante do mundo. Em “Cidade de Deus”, logo após um assalto a um hotel, perseguidos pela polícia, os rapazes se escondem na floresta. A cena é bastante interessante pela sua característica realista: estão pendurados em árvores como macacos. É esta a sensação que se tem: pessoas se desumanizando, se desgentificando. Ainda naquele momento, um deles diz que gostaria de trabalhar, mas isso não lhe traz boas recordações, até porque ser trabalhador é sinônimo de ser otário. Por que não discutir a escravidão ao longo dos tempos: seria o trabalhador hoje, o escravo de ontem?
A vida animal também se faz sentir na metáfora da cobra que engole o próprio rabo: uma “boca de fumo” quebrando a outra; os policiais municiando os bandidos contra eles mesmos e contra a sociedade, e depois lutando para reaver estas armas e prender os bandidos.
Outra cena grotesca em “Cidade de Deus” é o ritual de “iniciação” dos meninos do tráfico, tendo que atirar em outro para provar ser digno de confiança.

(iii) limites entre realidade e ficção;
A discussão pode perpassar o simulacro e a realidade: as fotografias tiradas por Buscapé e a sua função como free lancer de um jornal tem papel importante de aproximação entre realidade e ficção.
Em que aspectos aquelas pessoas que ali estão sendo retratadas fazem parte de nosso dia-a-dia. A ficção constrói a realidade e por ela é construída. O que fazemos com elas? De que modo são tratadas? Como dialogamos com elas? Em que aspectos nós também estamos ali sendo retratados?

(iv) a favelização do mundo;
As favelas estão superlotadas. Isto é um fato. As cidades estão superlotadas e nas suas periferias crescem o número de favelas e desabrigados. Há uma lógica excludente sendo reproduzida. Assim, como agem os governos diante do necessário saneamento básico, do analfabetismo e do atendimento médico precário? Vê-se que apenas parte da população é atendida, enquanto à outra é legado um tratamento desigual. O êxodo rural é um tema que se faz importante, neste aspecto, vez que as cidades estão inchadas e seu impacto é sentido inclusive na natureza com a criação de favelas próximas a áreas com nascentes de rios. Por que as pessoas largam suas vidas, sua história e vão às cidades? Há emprego para todos? O que produz o desemprego?
A favelização das grandes cidades e, consequentemente, do mundo é um problema crônico, pois contribui para o aumento da violência; sobremodo, o instinto de opressão e a xenofobia se fazem presentes. Assim, o estrangeiro, o emigrante, encontrará um ambiente hostil por onde passe; e uma série de estereótipos será neles fixados como modo de manter o outro e a sua cultura sendo excluída.

(v) a relação entre o traficante e o povo da favela; entre o traficante e os policiais;
Há na sociedade contemporânea um problema ético a ser respondido: quem são os “bandidos”? Há um problema moral: a polícia que se locupleta do tráfico pode nos proteger? Com o Estado tendo seu papel reduzido pela globalização e o neoliberalismo, sua ação e presença nos locais onde possa se proliferar o tráfico, a miséria, a violência fica bastante comprometida. No filme, há uma cena em que Cabeleira assalta um caminhão de gás. A população da favela recolhe os botijões e o dinheiro que é lançado pelos rapazes. Quem são os bandidos? Certamente, para aquele povo oprimido, eles serão vistos com outros ohos.
Dentre as diversas cenas de abuso policial, há um personagem que diz: “após o roubo do Hotel, todo dia alguém apanha na favela”. Além da cena em que, um rapaz “de bem”, ao ser confundido com um bandido, corre e é baleado pelos policiais. Ao perceberem o equivoco, os policiais “plantam” uma prova, colocando uma arma na mão do “agora” bandido.

(vi) a educação como condição para mudança social;
Marreco é um personagem que só se dá mal na história. Leva tapa do pai, sente-se burro. Mas, não deixa o irmão ir para o crime. Entende que seu irmão tem que estudar para não ter que pegar em arma.

(vii) visão maniqueísta do mundo;
Dadinho e Bené são opostos: um representa o mal, tem “signos da feiúra”, é ambicioso, estuprador, usa roupas de cores escuras, procura Exu – divindade do culto aos orixás, aqui representado como o diabo dos cristãos -, usa fio de contas preto e vermelho, está sempre de cara amarrada, carrancudo, seu nome Dadinho, lembra diabinho, doudinho; o outro, seu oposto, Bené, tem nome que lembra benesses, ben-efícios, bondade, tem livre trânsito na favela, inclusive nas bocas inimigas, usa roupas alegres, conquista uma namorada, tem sorriso bonito e apaziguador.

Diversos outros questionamentos podem ser colocados, naturalmente. O diferencial deste tipo de atividade é que não se está preso a uma “grade curricular”, com um saber pronto a ser lançado ao educando. Com as “Aulas-cinema” é permitido fletar com as diversas culturas e diversas áreas do conhecimento. Pensa-se, portanto, que atividades assim possam contribuir para uma atitude de respeito frente à diversidade, com um posicionamento diante do mundo para além do conhecimento propedêutico. O que se quer é evitar o sujeito alienado, acrítico, que prossiga matando índios como quem brinca.

Declarações finais?

Arroyo (2000) nos ensina que o cotidiano escolar é espaço privilegiado de produção curricular, quando extrapola as propostas oficiais. Cremos que ao propor para nossos educandos as atividades com os filmes, outra relação de ensino-aprendizagem ocorre, de modo mais criativo, ampliando a visão daquilo que poderia ser absorvido em um dado texto. A dimensão que se alcança com estas atividades é muito mais qualitativa do que quantitativa. Assim, não interessam “a decoreba” das regras gramaticais, a aplicação da nomenclatura da tabela periódica, o registro de veias e artérias, mas sim, um conhecimento que transcende os bancos escolares e promove a circulação de informação com respeito ao diferente. Com as “Aulas-cinema”, espera-se que uma outra educação esteja sendo produzida, legitimada, à despeito da “propriedade do status quo educacional que controla os sistemas escolares” (BEANE, 2003).

Quer-se com esta pequena contribuição que ora denominamos multicultural, evidenciar a pluralidade cultural rompendo com preconceitos e estereótipos, a fim de formar cidadãos capazes de atuar em uma sociedade brasileira tão complexa, contrastante e diversa.

Neste sentido, quer-se participar da formação de um educando agentivo, capaz de lidar com a identidade do outro e a sua própria identidade, pautado pela tolerância e respeito aos direitos humanos. A escola do século XXI não tem como se fechar para questões tão prementes: raça, poder, identidade, significado, ética, trabalho, currículo, multiculturalismo. Ir na contramão seria um ostracismo capaz de continuar produzindo os rapazes que mataram Galdino, e se transformaram/ tranformam em Hither, Bush, Stálin, Sharon. E isso, não queremos.

Referência Bibliográfica
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