O Brasil chega aos 119 anos da assinatura da Lei Áurea, que aboliu a escravidão no país, e ainda mostra pesada carga de desigualdade e injustiça social em relação à população negra
Deixados de fora das políticas de acesso à terra e ao emprego logo depois da abolição, negros e negras, com raras exceções, continuam até hoje marginalizados na sociedade. Tanto é assim que pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que o rendimento recebido por negros e pardos (cerca de R$ 409,00) é praticamente a metade do que recebe a população branca (aproximadamente R$ 812,00).
Esse dado é apenas um dos que ilustram o quanto a população negra está à margem dos benefícios sociais. Para mudar isso, estudiosos apontam que é necessário aumentar o acesso ao ensino superior, dando início assim a um círculo virtuoso: a tendência natural é que os filhos de pais com graduação universitária sigam o mesmo caminho, o que servirá para consolidar uma classe média e uma elite negras e para melhorar a distribuição de renda no país.
De acordo com o subsecretário de Articulação Institucional da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) da Presidência da República, João Carlos Nogueira, a situação atual é resultado de uma decisão histórica, tomada em dois momentos cruciais do desenvolvimento do país: a própria abolição e o processo de industrialização. Doutorando em sociologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ele explica que a elite da época decidiu que formaria classe média com visão eurocêntrica e, por isso, incentivou a imigração. “Não estou dizendo, com isso, que os imigrantes não tiveram dificuldades no Brasil. Mas eles tiveram acesso ao que é fundamental: terra e emprego. Isso contribuiu para construir uma desigualdade permanente no país”.
Número médio de anos de estudo
Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1999.
Nota: * A população negra é composta por pardos e pretos
ANALFABETISMO – Estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre as desigualdades raciais na década de 1990 corrobora a tese de Nogueira ao mostrar que as origens históricas e institucionais da desigualdade brasileira são múltiplas. E o pior: sua continuidade ao longo do século fez com que o convívio com ela passasse a ser encarado pela sociedade como algo natural. Assim, o primeiro passo para combater a exclusão dos negros seria “desconstruir essa naturalização da desigualdade”, aponta a pesquisa.
Uma das faces mais cruéis dessa exclusão se mostra na educação, ponto visto como fundamental para aumentar a participação social dos negros, possibilitando, inclusive, o desenvolvimento de uma classe média negra no país. A taxa de analfabetismo na década de 1990, por exemplo, da população negra e parda foi de 34%, enquanto a da população branca ficou em apenas 7,5%. O estudo do Ipea mostra ainda que a escolaridade média de um jovem negro de 25 anos gira em torno de 6,1 anos de estudo, enquanto a de um branco da mesma idade é de 8,4 anos. Essa diferença de 2,3 anos vem se mantendo historicamente desde 1929. Parte dessa desigualdade já vem sendo combatida com as políticas de universalização do ensino tomadas pelo governo federal.
Distribuição proporcional dos estudantes
de 15 a 17 anos de idade, por cor e
nível de ensino freqüentado – 2002
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2002
MOBILIDADE – Mas, de acordo com a ativista da Associação União e Consciência Negra de Maringá (PR) e mestranda em serviço social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Rosângela Rosa Praxedes, a formação de uma classe média negra passa, necessariamente, pelo ensino superior, faixa educacional em que a população negra tem participação ainda menor: 98% do jovens entre 18 e 25 anos não têm acesso à universidade, segundo dados do Ipea. “O mercado de trabalho exige no mínimo diploma de curso superior para ter um emprego que pague razoavelmente bem. As condições sociais no país impedem a ascensão da população negra”, afirma a assistente social, que era a única negra em sua turma de graduação.
Rosângela implantou em Maringá curso pré-vestibular totalmente gratuito voltado para alunos negros, mas nem isso resolve de vez o problema porque muitos deles não têm como pagar as passagens de ônibus para chegarem ao local das aulas. Ela considera fundamental o acesso ao ensino superior para a formação dessa nova classe média que possibilitaria maior mobilidade social aos negros.
Rafael Carvalho/UnB Agência
A família de Gabriela é exemplo do papel da educação na ascensão social
ESPELHO NA FAMÍLIA – A família de Gabriela Gonçalves da Silva, farmacêutica industrial de 29 anos, é exemplo de como a educação pode ser fator determinante na ascensão social. O pai dela é militar e tem dois irmãos: um deles fez curso técnico e o outro era operário. O resultado dessas diferentes atividades pode ser percebido na trajetória estudantil dos filhos (Gabriela e o irmão e os primos). Gabriela graduou-se com 22 anos e o irmão, depois de cursar três anos de Direito, agora estuda Música na UnB. As duas primas, filhas do tio que fez curso técnico, entraram na faculdade depois de Gabriela e chegarão à graduação por volta dos 30 anos. Já no caso do tio operário, a diferença é notável: um dos filhos é segurança e a outra, dona de casa. Gabriela é categórica ao afirmar que a preocupação do pai com educação fez toda a diferença na vida dela e do irmão.
“Acho que o acesso ao ensino superior representa inserção também em outras esferas sociais”, conta, ao lembrar que, no colégio onde estudava, dos quatro mil alunos somente ela, o irmão e duas primas eram negros. Gabriela vê o ensino superior como espaço importante de formação dos indivíduos e não tem dúvidas de que, quando um membro da família recebe o diploma, ele “puxa” os demais consigo e faz com que os filhos busquem, pelo menos, condição acadêmica semelhante. “Em todo lugar que eu trabalho, geralmente sou a única negra. A sociedade tem formas veladas de discriminação e isso dificulta muito o combate ao racismo”, lamenta.
AGREGAR VALOR – As considerações de Gabriela sobre a importância do ensino superior como fator multiplicador são reforçadas por Nogueira. De acordo com ele, as chances de um filho seguir o mesmo caminho do pai no caso de buscar a educação universitária são de 80%. O sociólogo acrescenta ainda que toda ocupação de espaço social, com raras exceções, vem do espaço universitário, que é formador de elites e de conhecimento.
Além disso, pondera, a educação agrega valor, do ponto de vista cultural, econômico, de conhecimento e cria panorama de acesso às novas tecnologias, como o computador, por exemplo. “Uma classe negra média não significa você criar benefícios e dádivas para essa população. Implica primeiro criar consciência nacional de que houve desvios históricos na formação da nação e que, portanto, é preciso fazer interferências pesadas para constituir direitos, garantir qualidade e uma nação diferente”.
Divulgação
Oliveira quer modelos sociais negros
ESPAÇO DE PODER – O coordenador de Arte, Cultura e Esporte da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Vicente Oliveira, afirma que o Brasil também deve criar referenciais negros, assim como são as loiras Xuxa e Angélica, por exemplo. O professor, ex-coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da universidade, considera a política de cotas fundamental para a ascensão social dos negros e para formar uma massa crítica com poder de ação e mobilização. “A universidade é um espaço de poder importante no Brasil”, analisa. Para incluir o negro na mídia, Oliveira criou programa experimental de tevê, feito por negros e para negros. O Brasil Negro tinha apenas 15 minutos de duração e procurava abordar a questão racial com opiniões consistentes e figuras de destaque na sociedade. Foi veiculado apenas na cidade de Uberaba entre julho de 2002 e março de 2003. “A televisão é um meio essencial para a mudança da inclusão dos negros. As crianças negras precisam conhecer e aprender a valorizar sua cultura”, explica.
Nogueira concorda com Oliveira sobre a adoção de cotas e argumenta que elas representam uma determinante da sociedade e do Estado no sentido de que em curto espaço de tempo, 10 a 20 anos, se corrija uma rota cujo desvio aconteceu há mais de cem anos. Para ele, as cotas são fundamentais para a mudança de caminho no país, pois o ensino superior mexe com determinados gargalos que vão muito além dos “muros” das universidades. “Isso não quer dizer que os ensinos fundamental e médio não devem prever a inclusão, mas aí não é mais cota e sim obrigação do Estado em garantir vagas para todos. No ensino superior, há um afunilamento que é absolutamente injusto”, reitera.
[[André Augusto Castro é
Editor Online da Assessoria de Comunicação]]