Foto: Henrique Parra
A noção de raças humanas tem sido usada não só para estudar e sistematizar as populações humanas, mas também para criar um esquema classificatório que parece justificar a ordem social e a dominação de alguns grupos por outros. Assim, a persistência da crença na existência de raças está ligada à hierarquização dos grupos humanos em uma escala de valor. Nesse sentido, tal persistência é “tóxica”, contamina e enfraquece a sociedade como um todo. Neste artigo nós queremos defender o ponto de vista de que a classificação em raças não tem um papel útil na avaliação clínica do paciente individual e que a medicina brasileira só teria a ganhar banindo-a de seus cânones. Como o espaço disponível não permitirá entrar em detalhes sobre todas as facetas deste complexo problema, sugiro ao leitor interessado a consulta a outros textos recentes de nossa autoria sobre a mesma temática.
Origem da idéia de raças humanas e a inexistência biológica das mesmas
É relevante lembrar que o conceito de “raças humanas” como entidades hierárquicas distintas é relativamente moderno, só tendo emergido de forma explícita após o início do tráfico de escravos africanos, talvez mesmo como uma tentativa de conciliar a consciência cristã com as práticas de atrocidades da escravidão. A mais influente classificação racial humana, baseada na diversidade morfológica que caracteriza populações de diferentes continentes, foi a do antropólogo alemão Johann Friedrich Blumenbach (1752- 1840). Em seu livro De generis humani varietate nativa (Das variedades naturais da humanidade) ele propôs a existência de cinco principais raças humanas: a caucasóide, a mongolóide, a etiópica, a americana e a malaia. A “raça” que incluía os nativos da Europa, Oriente Médio, Norte da África e Índia, foi chamada caucasóide porque Blumenbach achava que o “tipo” humano perfeito era o encontrado nos habitantes das montanhas do Cáucaso. Na ótica de Blumenbach, as raças eram entidades fixas, quase espécies diferentes. Vem daí a expressão mulato derivada de mula (um animal híbrido entre espécies) para designar os filhos de casamentos entre membros de diferentes grupos continentais humanos. Essa classificação racial cientificamente obsoleta infelizmente persiste até hoje na medicina, onde a expressão caucasóide ainda é comumente usada.
Os avanços da genética molecular e o seqüenciamento do genoma humano permitiram um exame detalhado da correlação entre a variação genômica humana, a ancestralidade biogeográfica e a aparência física das pessoas e mostraram que os rótulos previamente usados para distinguir raças não têm significado biológico. Pode parecer fácil distinguir fenotipicamente um europeu de um africano ou de um asiático, mas tal facilidade desaparece completamente quando procuramos evidências destas diferenças raciais no genoma das pessoas. Uma pletora de linhas independentes de pesquisa molecular fornece evidências científicas incontrovertíveis de que raças humanas não existem do ponto de vista genético ou biológico. Apesar disto, o conceito de raças persiste como construção social e cultural em nossa sociedade.
Raças humanas na medicina brasileira
O problema na medicina é que as raças continuam a ser vistas como verdades biológicas e não como meras construções sociais! Como exemplo, basta ler a bula no medicamento Cozaar, um bloqueador do receptor da angiotensina, vendido no Brasil pela Merck Sharp & Dohme, que contém o seguinte alerta: “Com base no estudo LIFE (Losartan Intervention For Endpoint Reduction in Hypertension – Intervenção com losartan para redução de desfechos na hipertensão), os benefícios de COZAAR® (Losartan potássico, MSD) na morbidade e mortalidade cardiovascular comparados aos do atenolol não se aplicam a pacientes negros com hipertensão e hipertrofia ventricular esquerda”. Este não é um exemplo isolado, pois sabemos que Estados Unidos, bulas de 8% (15 entre 185) dos novos medicamentos introduzidos de 1995 a 1998 continham advertências sobre diferenças “raciais” em sua eficácia ou efeitos colaterais. Em 2005 a Food and Drug Administration (FDA) aprovou o medicamento BiDil® para tratamento da insuficiência cardíaca congestiva, mas somente para negros.
Com base nos critérios de autoclassificação do censo do IBGE, em 2000 a população brasileira era composta por 53,4% de brancos, 6,1% de pretos e 38,9% de pardos. O que representam esses números em termos de ancestralidade genética? Essa é a pergunta que tentamos responder usando as ferramentas da genética molecular. Os nossos estudos demonstraram que no povo brasileiro existe um alto índice de mistura genética que torna as características de aparência física, como cor da pele, olhos, cabelos, formatos dos lábios e do nariz, em indicadores muito pobres da origem geográfica dos ancestrais de um determinado indivíduo.
A fauna e flora dependem muito da geografia. Assim, diferentes origens geográficas significam exposições diferentes a elementos tóxicos do meio ambiente e a diferentes dietas. Como conseqüência, emergiram polimorfismos genéticos nos genes dos sistemas enzimáticos de detoxificação, representando adaptações seletivas ao padrão geográfico de elementos tóxicos da flora e dieta locais. Essas variações estão hoje em dia sendo detectadas pelos seus efeitos farmacogenéticos, já que o nosso corpo usa os mesmos sistemas enzimáticos para metabolizar medicamentos. Podemos usar em medicina clínica a aparência física, e mais particularmente a cor da pele, como um substituto dos testes genômicos específicos? A resposta é não, especialmente no Brasil, onde nossos dados mostram que a correlação entre cor e ancestralidade é muito imperfeita. Espera-se que possamos em breve ter à disposição testes genômicos que nos permitam traçar o perfil farmacogenético do paciente e usar este perfil na decisão clínica. Até lá, devemos nos refrear de usar raça como substituta dos testes farmacogenéticos.
No consultório médico, o que está sendo examinado é um paciente individual e não um grupo populacional. A autoclassificação ou a avaliação médica do grupo racial de um paciente não tem nenhum valor em decisões sobre o diagnóstico, o tratamento farmacológico ou outras terapias. Isto não quer dizer que a pigmentação da pele do (a) paciente e outras características físicas não devem ser observadas e devidamente anotadas. Elas são partes integrais do exame físico e podem ter implicações clínicas. O que queremos defender é a retirada da expressão raça dos prontuários médicos no Brasil.
Alguns autores têm argumentado que as raças podem constituir-se em sub-rogadas de variáveis não-genéticas sociais e culturais, e que abrir mão dessa classificação significaria perda de correlações ambientais e prejuízo para a medicina e a população. Mas essa utilidade hipotética da classificação racial deve ser considerada no contexto dos seus possíveis riscos, sob uma ótica de relação risco-benefício, como tudo em medicina. Temos de tomar cuidado de não dar legitimidade a falsos indicadores e fazer todo o esforço para abandonar essas tênues correlações, atacando com firmeza as verdadeiras variáveis genéticas e ambientais que afetam saúde e doença.
Pelo banimento do conceito
Assim, o conceito de raça lembra uma casca de banana: vazio e perigoso. Vazio, porque sabemos que raças humanas não existem como entidades biológicas. Perigoso, porque no passado, a crença de que raças humanas possuíam diferenças biológicas substanciais e bem demarcadas contribuiu para justificar discriminação, exploração e atrocidades, mesmo no contexto médico.
Existe consenso entre geneticistas e antropólogos que a única divisão biologicamente coerente da espécie humana é em bilhões de indivíduos e não em um punhado de raças. Esse fato deve ser absorvido pela sociedade e incorporado às suas convicções e atitudes morais. Vimos acima que independente da cor, a vasta maioria dos brasileiros tem simultaneamente um grau significativo de ancestralidade africana, européia e ameríndia. O genoma de cada brasileiro é um mosaico altamente variável e individual formado por contribuições das três raízes ancestrais. Assim, não faz sentido falar em afrodescendentes ou eurodescendentes porque a maior parte dos brasileiros tem uma proporção significativa de ascendência africana, européia e ameríndia. Além disso, por causa da pobre correlação entre cor e ancestralidade, não faz sentido falar sobre “populações” de brasileiros brancos ou de brasileiros negros. Assim, a única maneira de lidar eticamente com a variabilidade genética dos brasileiros é individualmente, como seres humanos únicos e singulares nos seus genomas mosaicos e nas suas histórias de vida. Do ponto de vista médico, esta conscientização nos leva a propor que o conceito de raça deveria ser banido da medicina brasileira e que a palavra raça deve ser eliminada dos nossos prontuários clínicos.
Sérgio D. J. Pena é docente do Departamento de Bioquímica e Imunologia, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Formato ISO
PENA, Sérgio D. J. Para remover a palavra raça dos prontuários médicos no Brasil. Cienc. Cult., jan./mar. 2007, vol.59, no.1, p.4-5. ISSN 0009-6725.
Formato Documento Eletrônico (ISO)
PENA, Sérgio D. J. Para remover a palavra raça dos prontuários médicos no Brasil. Cienc. Cult. [online]. jan./mar. 2007, vol.59, no.1 [citado 04 Março 2007], p.4-5. Disponível na World Wide Web: