Ninguém me contou, eu vi! – Reflexões acerca de atividades educacionais em uma escola de ensino básico em Duque de Caxias

Jose Geraldo da Rocha – Unigranrio

O presente texto é resultado de inquietações nascidas a partir de algumas atividades realizadas em uma escola de ensino básico da rede particular localizada no município de Duque de Caxias no estado do Rio de Janeiro.
Como educador no ensino superior, como pai de uma aluna na referida escola, não poderia deixar de refletir algumas questões que transpareceram no desenvolvimento de atividades escolares, nas quais estiveram envolvidos além dos alunos e professores, os pais e pessoas da comunidade escolar.
Tudo começou no dia 20 de outubro de 2009. No final do dia, já era noite, saí da Universidade onde acabara de dar minha aula de sociologia, na qual desenvolvi com os alunos o tema “ Processos de Interação Social”. Como faço tantas outras noites, fui buscar minha pequena de seis anos, que após sair da sua escola, fica na casa de uma tia esperando a mãe, ou eu buscá-la , em conformidade com nossos horários. Notei que naquela noite minha filha estava meio triste. Nada comum com aquela menina. A mãe já estava com ela. Então no carro indaguei o que estava acontecendo. Mais que depressa, a sinceridade da criança aflorou e ela disse. “..é por que amanhã é o sarau literário na escola e você não vai lá”. Lembro-me que havia dito a ela que não tinha como ir, pois estaria em sala de aula na universidade na quinta feira pela manhã. Diante da tristeza dela e de sua insistente solicitação “ … mas pai, vai lá só um pouquinho”, resolvi que daria uma passadinha no início da atividade. Foi só ela ouvir que iria, seu astral mudou completamente. Seu rostinho se alegrou, a conversa voltou a fluir a todo vapor, e de quebra ganhei aquele gostoso beijo afetuoso.
Chegou o dia do sarau. Então lá estávamos todos. Ela, a mãe e eu. Uma manhã diferente e animada. Poemas, músicas e muita animação.
Ai algumas coisas pareciam não soaram bem ao meu senso observador. Um poema das borboletas me deixou intrigado. A cena era linda. Algumas crianças vestidas coloridas, com uma grande flor desenhada e pintada em papel, em palco formavam um verdadeiro jardim. Ao som de uma linda música, uma outra criança com asinhas de borboleta entra em cena e corre entre as flores, dança e ensaia pousar em cada uma das flores. No final da cena, vem o poema.
As Borboletas – Vinicius de Moraes
Brancas ,Azuis ,Amarelas,E pretas,Brincam,Na luz,As belas,Borboletas,Borboletas brancas,São alegres e francas. Borboletas azuis,Gostam muito de luz.,As amarelinhas,São tão bonitinhas! E as pretas, então . .oh , que escuridão!

Na declamação do poema, ”borboletas amarelinhas… são tão bonitinhas… as azuis… procuram a luz… e as pretas então… oh que escuridão”. Ao ouvir tal afirmação no poema me pus a refletir o quão tal associação das borboletas pretas com a escuridão poderia estar desempenhando um papel na subliminaridade de uma criança. Certamente a construção literária no nosso país não ficou imune ao processo de naturalização e veiculação de concepções preconceituosas em relação a cor preta, que automaticamente se associa aos negros. Coloquei a mim mesmo uma série de questões a respeito de como isso é tratado na escola, se é realmente tratado. Como isso é visto pelos professores? E as implicações disso no dia a dia das crianças e em seus processos de interação social. Essa realidade me fez voltar em meus tempos de menino negro, crescendo no sul do país e não raras as vezes que me deparava com frases do tipo “ escureceu o ambiente” quando eu chegava. Naquele tempo jamais poderia eu pensar e ter a consciência das formas como na sociedade, e principalmente no processo educacional, tais concepções acabam sendo veiculadas naturalmente, ”inocentemente”. Para além da questão étnica, outras coisas me chamaram muito a atenção. Na encenação das borboletas, todas as crianças que representavam flores eram meninas, assim como a borboleta. Em outra cena, do relógio tic-tac, todos os relógios eram meninos. Do mesmo modo o teatrinho da “bola que rola”, todos os personagens meninos. Ali novamente surgiram questões relacionadas à gênero. As construções sociais delegaram o que é brincadeira de meninas e de meninos, e na escola, isso é reproduzindo de forma tão natural, sem nenhuma reflexão. Em pleno século XXI, diante de tantos esforços engendrados na perspectiva de uma sociedade sem discriminação, sem machismo, o papel da escola nessa árdua tarefa é preponderante. Ela não pode se eximir, em nome da “incapacidade reflexiva”, de dar a sua contribuição.
Em continuidade das atividades, vem o poema do elefantinho. Quem vai ser o elefantinho? O menino gordinho. Ora, não está em jogo a intenção aqui. Mas o fato é que isso marca a vida das pessoas. Abre caminhos para a depreciação humana. Cria e reproduz estereótipos e sedimenta-se a discriminação, que vai trazer como conseqüência a diminuição da auto-estima da criança, ou até mesmo a sua auto-negação.
Terminado o sarau literário, a outra atividade iria realizar-se no dia 24 de outubro. Dessa vez, uma atividade voltada para a comunidade escolar, digo, pais, alunos, professores entre outros. “Portas Aberta”! O próprio nome da atividade dá a noção da sua abrangência. Mais uma vez lá estávamos minha filha, minha esposa e eu. A atividade se desenvolvia na quadra de esportes do colégio. Eram apresentações onde as crianças demonstravam suas versatilidades artísticas. Em um dado momento iniciou-se uma apresentação, onde um senhor entrou na quadra com uma enorme bola ou seja, um globo terrestre. Com passos de danças, ao som de uma música, apresentava aquele globo à platéia presente na atividade. De repente surgiram meninos de várias direções, vestidos de preto, e iniciaram um ataque simulado àquele senhor,.Este por sua vez, fazia de tudo para defender-se dos intrusos. Nas costas dos meninos vestidos de preto, podia-se ler palavras como “ ódio”, “violência” , “ira” “mal”. Após alguns minutos cessa a luta, sem que os meninos de preto consiga destruir o homem com o globo terrestre. Em seguida entram em cena um grande grupo de crianças todos vestidos de preto, ao som de uma música de ritmo forte. Uns passos pra um lado e alguns para outro, todos tiram a blusa preta que estava sobre outra blusa branca, ao mesmo tempo em que a música mudava de ritmo, dando lugar a uma música mais calma. Dava-se ali a mudança de uma situação onde o bem, a paz era restabelecida e simbolizada na cor branca das blusas de cada participante da cena.
A realidade que ali se configurava, uma vez mais, de forma naturalizada, quase que de forma “inocente”, cumpria o seu papel ideológico. Atividades educacionais, inadvertidamente, servindo de veículo disseminador de uma formatação cultural, cuja concepção atenta contra a auto-estima da criança negra.
Como educadores, sabemos nós que uma criança aprende muito rápido à luz daquilo que presencia, sobretudo quando o que ele presencia é estimulado pelos seus professores em sala de aula e ou em atividades extra classe. A associação da cor preta com o ódio, a violência, o mal, a ira, naquela atividade, do ponto de vista pedagógico, não nos parece um caminho recomendado. Ao contrario, resulta em danos irreparáveis ao desenvolvimento infanto-juvenil. Nessa perspectiva se inscreve o diálogo de uma das crianças branca ,presente na atividade, em relação a outra criança negra, que com ela aplaudiu a cena que aqui referimos. “ você não deve ficar perto de mim, você representa o ódio”. Ao ouvir tal afirmação relatada pela criança negra, uma indignação muito grande tomou conta de mim. Entretanto, a indignação só nada resolve. Passei a refletir o que levou tal criança a fazer tal associação? Onde está o equívoco pedagógico? Que culpabilidade pode ter tal criança? O que se está ensinado a esses seres tão pequenos, tão inteligentes, que aprendem tão rápido? Os acontecimentos parecem indicativos de que o problema é muito maior do que aquilo que se revela. A associação do preto ao ódio,à violência, à raiva, ao mal, confunde e marca profundamente o processo de formação da personalidade de uma criança; e daí para a discriminação do ser humano em função da sua cor negra é um passo. Esse discernimento não pode estar ausente no processo de qualificação de educadores. Certamente, estes não refletiram, portanto, não se deram conta do que se passava em tais cenas aqui descritas, e muito menos colocaram, no universo de suas preocupações, as possíveis implicações na vida daquelas crianças que tais atividades poderiam acarretar.
Não sei de onde tiraram a compreensão de que o ódio é preto! Nem de onde vem o entendimento de que a raiva, a violência, o mal são pretos. Do mesmo modo, não ousaria afirmar que a paz é branca. Sou sabedor que no universo religioso cristão, a paz é simbolizada pela cor branca, e que o inferno é negro. Por muito tempo se ensinou que a alma é branca. Até existem os negros de alma branca – para dizer que existem negros bons. Essa equívoca associação da cor branca com aquilo que é bom e da cor preta com aquilo que é mau, tantos danos já causou à dignidade humana dos negros no mundo inteiro, e de modo particular no Brasil. Com base nessa compreensão, se criaram os estereótipos.
Os estereótipos, por sua vez, têm uma função importante no processo, uma vez que é através deles,em grande parte, que as ideologias são veiculadas nos materiais didáticos …Os estereótipos geram os preconceitos, que se constituem em juízo prévio a uma ausência de real conhecimento do outro ( SILVA 2005)

Em virtude dos objetivos das atividades propostas pela escola, dentre elas, a construção da paz e de um mundo mais justo, talvez fosse interessante repensar sobre em que bases pensamos, enquanto educadores, construir tal mundo. Certamente elementos como reconhecimento do outro, do diferente; o respeito ao outro, ao diferente; o conviver com o outro, com o diferente; não poderiam ficar excluídos das pilastras de sustentação de um novo.
À luz das experiências e vivências mencionadas, constata-se que o desafio é muito grande e os esforços necessitam ser articulados. O preconceito, a discriminação é uma realidade que o processo educacional tem um papel preponderante na busca de suas superações. Para tanto, as observações propostas pela educadora Azoilda Trindade significam uma relevante contribuição.
…é importante, ao voltarmos como docentes para a temática das africanidades brasileiras, pensarmos na dimensão da didática e das práticas pedagógicas. Contudo, mais do que aprendermos conteúdos, precisamos mudar de mentalidade a cerca das questões das relações étnicas brasileiras, mudar nossas percepções e ações frente ao Ser Negro (TRINDADE, 2007, p. 18)

Uma nova cultura necessita ser engendrada na sociedade brasileira e a sala de aula é um espaço privilegiado para tal tarefa. Dai uma preocupação particular com a formação dos professores. O que esperar de um professor que não teve sequer oportunidade de discutir esses aspectos da sociedade brasileira em seu processo de formação?
Os cursos de licenciaturas, em sua maioria ainda não entenderam a relevância e a pertinência de conteúdos e práticas curriculares que envolvam os temas aqui apresentados.
…a abordagem das questões étnico-raciais na Educação básica depende muito da formação inicial dos profissionais da educação. Eles ainda precisam avançar para além dos discursos, ou seja, se por um lado, as pesquisas acadêmicas em torno da questão racial e educação são necessárias, precisam chegar à escola alternando antes o espaço de formação docente. (MONTEIRO, 2006, p.126)
Concluindo, longe, de querer ser o dono da verdade, no processo educacional, os desafios de aprender a cada dia com as novas experiências poderá ser enriquecedor para todos nós que sonhamos e buscamos um mundo mais justo, mais humano, mais irmão.

Referência Bibliográfica
MONTEIRO, Rosana Batista. Licenciaturas. In: CAVALLEIRO, Eliane. Valores civilizatórios – dimensões históricas para uma educação anti-racista. In: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2006
SILVA, Ana Célia da. A Desconstrução da Discriminação no Livro Didático.In: MUNANGA, Kabenguele (org.) Superando o Racismo na Escola. Brasília: SECAD, 2005.
TRINDADE, Azoilda Loretto. O projeto político da/na escola: capilarizando a temática das africanidades brasileiras. Rio de Janeiro: CEAP, 2007.