Na semana do Dia Internacional da Mulher, mais uma obra vem acrescentar às merecidas homenagens: o livro Mulheres negras do Brasil de Schuma Shumaher e Érico Vital Brasil. O livro, muito bem ilustrado, resgata a participação e a importância das mulheres afrodescendentes na formação e desenvolvimento do país. Em entrevista, Schuma, que é coordenadora-executiva da Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh), fala sobre a experiência de reunir essas informações.
Ibase – Qual o significado deste livro para você?
Schuma Shumaher – São muitos. Ele é um mergulho profundo na literatura histórica deste país. É talvez a maior ousadia da minha vida. Primeiro, porque tentamos reunir, numa única, obra informações que estavam esparramadas: uma num texto, outra numa tese, outro pedaço na memória de alguém. Tínhamos muitas informações desencontradas e tivemos que montar esse quebra-cabeça. Isso foi, de fato, um desafio enorme.
Acho esse trabalho importante e, ao mesmo tempo, singelíssimo, porque é uma gota d’água no oceano. É uma contribuição ao compromisso que temos, eu e Érico, de dar as mãos a quem não aceita, não suporta, não deseja e não quer uma sociedade racista e que exclui as pessoas.
Ibase – Quais foram as maiores dificuldades que vocês enfrentaram para fazê-lo?
Schuma Shumaher – A história não é uma uma ciência estática, ela é uma ciência em construção, em revisão, em releitura. E com isso vão ocorrendo mudanças de conceitos ao longo da história. Então lemos os primeiros textos do período escravista. Neles, todos os negros e negras são chamados de escravos, como se fosse uma condição humana, como se fizesse parte da natureza daquelas pessoas com uma ascendência africana ou que vieram diretamente da África. Mais adiante, encontramos textos mais críticos. Neles, as pessoas já não aceitam a denominação “os escravos”. São descendentes de escravos, de pessoas que foram escravizadas. Então, em um determinado período, há um tipo de informação; em outro período, um tipo diferente. E é difícil lidar com essas ações desencontradas. Qual é a informação correta? Como se trata de um livro, a informação precisa ser minuciosa, não há como fazer afirmações sobre as quais não se tenha certeza.
Ibase – Por que mulheres tão importantes não constam nos livros de História?
Schuma Shumaher – Não constam porque, em geral, as histórias são contadas pelos “vencedores”. “Derrotado” não pode contar história. E, neste país, quem contou a História foram os brancos. Não podemos dizer que a ciência é neutra, porque ela não é. Há sempre um viés de interesse de quem conta.
Logo, uma parcela enorme da população, que são as mulheres e, nesse caso, mulheres negras, são excluídas da História. E isso também mostra como a sociedade lidou com a questão de gênero. Por exemplo, hoje, o percentual de professoras nas escolas ultrapassa os 80% e há um número enorme de presidentes de sindicatos homens. As mulheres fazem a história da educação neste país e os homens dirigem a história. A literatura, a literatura escolar é reflexo disso. O lugar de decisão, o lugar do poder, o lugar da visibilidade pública, o reconhecimento é um lugar ainda do masculino. Principalmente do masculino branco.
Ibase – Há vários momentos em que o livro fala sobre o papel da mulher na construção do país. Você pode lembrar de alguns momentos em que se nãofosse a atuação da mulher, principalmente a mulher negra, seriam completamente diferentes?
Schuma Shumaher – Uma andorinha não faz a revoada sozinha. Mas são várias situações. Se podemos dizer que temos autonomia hoje, que temos liberdade religiosa neste país, devemos às mulheres negras. Durante muitos anos os cultos religiosos foram perseguidos, violentamente destruídos. E foram as mulheres negras que resistiram a essa perseguição.
Tia Marselina [pág 123], por exemplo, foi uma das grandes lideranças afro em Alagoas. Lá o Candomblé é chamado de xangô. E tia Marselina teve o seu terreiro invadido durante uma perseguição contra a religião africana. Ela foi violentamente espancada e morreu. Isso no comecinho do século 20, por volta de 1912. A tia Marselina teve a coragem de pautar essa discussão publicamente.
Maria Firmina dos Reis é uma maranhense que escreveu um romance chamado Úrsola, um romance abolicionista. Ela não é apenas a primeira romancista negra, mas a primeira mulher – que se tem conhecimento – a escrever um romance neste país. [pág 456]. E imagina, no século 19, a escravidão a todo vapor e essa mulher escreve um romance. Interferiu numa agenda sobre uma trágica realidade que acontecia naquele momento.
Ibase – Foram mulheres que estiveram no começo da resistência…
Schuma Shumaher – No capítulo “Mulheres mucambeiras”, que está na página 81, mostramos quantas mulheres lideraram a formação de quilombos no Brasil. Como elas participaram dessa manifestação de resistência e, de uma certa forma, de fuga de uma situação de escravidão. Zumbi talvez seja o maior líder na fundação e na resistência da liberdade negra do Brasil. Nós temos muitos Zumbis, homens, e também muitas mulheres que lideraram essa luta quilombola no país.
Ibase – Quais tipos de questões relacionadas à mulher existem desde o descobrimento do país e que ainda não foram superadas?
Schuma Shumaher – O racismo. Sei que é uma questão muito genérica, mas acho que é uma questão tão forte que reflete em todas as outras questões. Hoje, a maior parte das empregadas domésticas – portanto, o trabalho menos valorizado do país, mais mal-pago – são mulheres negras. Tem uma foto belíssima no livro que diz assim: “A princesa esqueceu de assinar nossa carteira”. E é isso. A Lei Áurea formaliza o fim da escravidão, mas não acaba com a situação dos excluídos. Não havia acesso à escola, condições necessárias para envolvê-los nas novas relações de trabalho da época. Há reflexos até hoje.
Ibase – Podemos dizer que há regionalismo na valorização da mulher, principalmente da mulher negra?
Schuma Shumaher – Não acredito nisso. Podemos dizer que há locais onde a expressão da cultura negra, em toda a sua dimensão e pluralidade, é maior. As mulheres negras são protagonistas delas, portanto têm mais visibilidade e isso faz com que sejam mais reconhecidas. São lugares onde as mulheres negras ocuparam mais espaço público, o movimento avançou mais. Porém, nacionalmente, infelizmente, ainda há um longo caminho a percorrer.
Ibase – O livro traz curiosidades sobre as atividades das negras brasileiras em várias áreas. Uma delas são sobre as mulheres parteiras. Pode falar sobre ela e no que contribui culturalmente?
Schuma Shumaher – Temos um capítulo dedicado às bezendeiras, às parteiras. São mulheres que ajudam a preservar e aparar a vida. É um trabalho exemplar no Brasil. Milhares de vidas foram preservadas por causa delas e há um contingente enorme de mulheres negras exercendo esses papéis.
Qual foi uma das surpresas que tiveram ao fazer o livro?
Schuma Shumaher – Eu não tinha conhecimento do aumento no número de mulheres negras na academia. Fiquei muito feliz. Em termos percentuais, deve ser uma bobagem, mas foi muito bom ver que, em alguns departamentos, alguns lugares da academia, há mulheres e homens negros exercendo o seu saber. Acho que até merece que alguém faça um livro sobre a intelectualidade negra deste país, para que isso também se torne visível.
No livro mostramos várias mulheres pioneiras nisso, como a reitora da Universidade Estatual da Bahia, Ivete Sacramento. Ela foi a primeira reitora negra do país e assumiu o cargo em 1999. A foto está na página 284.
Ibase – Acredita que esse livro possa servir de subsídio na implementação da Lei 10.639/03, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da história e cultura africana e afro-brasileira?
Schuma Shumaher – Honestamente, espero. Essa lei ainda que tardia, é bem-vinda, já é um passo importantíssimo. Agora, como nós sabemos, não basta ter uma lei. É preciso criar condições para que a lei seja implementada, e, para isso é preciso estímulo e cobrança do MEC. Onde é que o professorado vai encontrar informações? É preciso ter material que trate da questão de forma pedagógica, correta, comprometida. É preciso sensibilizar os professores, porque já estão aí há 15 anos seguindo uma mesma cartilha. Têm que saber que o olhar precisa ser outro; que a releitura é bem-vinda e necessária sempre; ter uma versão única, porque as versões estão aí para serem questionadas, comparadas etc.
Ibase – Como vai ser distribuído?
Schuma Shumaher – A Redeh, instituição da qual faço parte, vai distribuir gratuitamente 3.200 exemplares para bibliotecas públicas, organizações não-governamentais que trabalham na perspectiva dos direitos humanos; para núcleos de pesquisa das universidades. Graças ao apoio da Petrobras e do Banco do Brasil, que possibilitou que nós fizéssemos esse livro durante 39 meses, viajando pelo Brasil.
As pessoas que desejarem ter em casa, poderão comprá-lo também. Nós fizemos uma parceria com as editoras, Senac, e o livro vai estar na próxima semana à venda em todas as livrarias do país.
Ibase – Estamos na semana do dia 8 de março. Como é lançar um livro sobre mulheres negras nessa época?
Schuma Shumaher – Significa, pelo menos para nós dois autores e para nossa instituição, que nós quisemos centrar a nossa homenagem numa parcela significativa da população brasileira, que são as mulheres negras. Queremos, também, chamar a atenção para o fato de que as mulheres negras merecem mais do que homenagens, merecem reconhecimento.