A cantora – que teve grande destaque como símbolo da luta contra o regime racista do apartheid – dizia não ter cantado nunca ”para a política, mas, sim, para a verdade”. Em comunicado divulgado nesta segunda-feira, o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela afirmou que Miriam Makeba “foi a primeira-dama da canção da África do Sul e ganhou, merecidamente, o título de Mama África. Foi a mãe de nossa luta e de nossa jovem nação”.
“Uma das nossas maiores cantoras de todos os tempos parou de cantar”, lamentou em nota o ministro da Cultura da África do Sul, Nkosazana Dlamini Zuma. “Ao longo de sua vida, Mama Makeba comunicou uma mensagem positiva ao mundo sobre a luta das pessoas na África do Sul e a certeza das vitórias sobre as forças malignas do apartheid e do colonialismo através da arte de cantar.”
A cantora morreu seguindo suas convicções. Na noite de domingo, ela passou mal depois de ter cantado, por 30 minutos, durante um concerto. O show era dedicado a Roberto Saviano, jovem escritor ameaçado de morte pela máfia após a publicação do best-seller Gomorra, que vendeu 1,2 milhão de exemplares. O livro – traduzido para 42 idiomas e ambientado no império da Camorra, a máfia napolitana – foi adaptado para o cinema e recebeu o prêmio do júri no último festival de Cannes.
Segundo um fotógrafo da AFP presente ao concerto antimáfia, Makeba “foi a última a sair do palco, depois de outros cantores. Houve um bis e, neste momento, alguém perguntou se havia algum médico entre o público. Miriam Makeba havia desmaiado e estava no chão”. Levada rapidamente para uma clínica particular de Castel Volturno, ela morreu pouco mais tarde em conseqüência da parada cardíaca.
Mais de mil pessoas compareceram ao concerto, em uma área considerada um reduto da Camorra, a máfia napolitana. Em setembro, seis imigrantes africanos e um italiano foram assassinados na região, em circunstâncias não-esclarecidas.
Quem foi Miriam Makeba
Nascida em Johanesburgo em 4 de março de 1932, filha de mãe suazi e pai xhosa, Makeba começou a carreira muito cedo. Ela se apresentava em casamentos e festas de Sophiatown – uma zona cosmopolita de Johannesburgo muito rica culturalmente nas décadas de 1940 e 1950.
A cantora viu seu país mudar com a chegada ao poder, em 1947, dos nacionalistas africaners. Os negros de Sophiatown foram retirados à força pelo governo do apartheid (regime que vigorou entre 1948 e 1990). Makeba, a essa altura, já percorria sua trajetória internacional, iniciada aos 20 anos, como integrante do grupo sul-africano The Manhattan Brothers.
Foi nessa época que ela adotou o nome Miriam, abandonando seu nome de origem zulu, Uzenzile. Pouco depois, formou seu próprio grupo, o Skylarks, integrado exclusivamente por mulheres. Aos 27 anos, em 1959, deixou a África do Sul para inaugurar uma turnê internacional.
Tornou-se conhecida no ano seguinte no Festival de Veneza, quando as autoridades sul-africanas revogaram sua nacionalidade e a proibiram de entrar no país. Alegavam que Miriam traíra a nação com seu ativismo, que inclui a participação da cantora no documentário antiapartheid Come Back Africa.
Exílio
A cantora pagou caro por seu compromisso: permaneceu por 31 anos no exílio, durante os quais morou em diversos países. Ela tentou voltar em 1960, para o funeral da mãe – mas seu passaporte foi revogado, e sua entrada, negada. Pouco depois, todas as suas músicas foram proibidas na África do Sul, devido às denúncias contra o regime racista sul-africano que Miriam fez perante a ONU em 1963.
Refugiada primeiro em Londres, ela rumou depois para os Estados Unidos, onde ficou conhecida pela canção Pata Pata, escrita em 1956, que fez enorme sucesso com várias gerações em todo o mundo. Só que os problemas continuaram. Seu primeiro marido, o trompetista de jazz sul-africano Hugh Masekela, a espancava com freqüência. A cantora se divorciou após flagrá-lo na cama com a irmã dela. Foi o primeiro de quatro divórcios.
Ela se juntou então, no ano de 1969, ao black-power Stokely Carmichael, líder dos Panteras Negras. O casamento não agradou as autoridades americanas. Devido à militância ativa, ambos foram considerados personas non grata e tiveram de emigrar, refugiando-se na Guiné. O casal veio a se separar em quatro anos depois.
Foi também na Guiné que, em 1985, morreu a única filha de Makeba, Bongi, nascida quando a mãe tinha 17 anos. Depois do falecimento, a cantora decidiu deixar o país e voltou a viver na Europa – ela já havia residido na França, mas, desta vez, foi morar em Bruxelas, capital da Bélgica.
O emocionante regresso de Miriam Makeba à África do Sul só ocorreu em 1990, quando muitos sul-africanos exilados voltaram ao país, em meio às reformas pós-apartheid do então presidente F. W. De Klerk. ”Nunca compreendi por que não podia vir ao meu país”, disse a cantora ao retornar. ”Nunca cometi crime algum.”
Quem convenceu Makeba a retornar foi Nelson Mandela, que depois viria a ser presidente do país, entre 1994 e 1999. ”Foi como renascer”, relembrou depois a cantora. De volta a seu país de origem, ela se instalou no subúrbio de Johannesburgo, onde continuou a lutar contra as injustiças e fundou um centro de reabilitação para adolescentes.
Talento
Na música, Miriam Makeba era reconhecida por sua capacidade de misturar o blues, o gospel e o jazz com ritmos tradicionais africanos. A cantora alcançou a fama definitiva com The Click Song e Malaika – dois dos mais de 30 discos que ela lançou ao longo de sua extensa carreira. Sua voz celebrou todas as independências do continente africano – motivo pelo qual ficou conhecida como Mama Africa.
Também cantou, ao lado de seu mentor, Harry Belafonte, no aniversário do presidente americano John F. Kennedy em 1962, lembrado pela sensual interpretação de Happy Birthday, de Marilyn Monroe. Em 1966, justamente com Belafonte, a cantora africana recebeu um Grammy pela melhor gravação folk, pelo álbum An Evening With Belafonte/Makeba. O disco tratava dos problemas enfrentados pelos negros sul-africanos durante o apartheid.
Nos Estados Unidos, Makeba se sentia próxima de cantoras como Nina Simone e Dizzy Gillepsie. Durante os anos 70 e 80, cantou em todo o mundo, participando de prestigiados festivais de jazz. Em 1987, participou da turnê Graceland, do cantor Paul Simon. Pouco depois, publicou a autobiografia Makeba – Minha História. Em 2005, cansada de viajar, Makeba iniciou sua última turnê.
“Devo passar pelo mundo todo para dizer obrigada e adeus”, explicou na época em uma entrevista concedida à AFP, na qual também expressou o desejo de que suas cinzas fossem jogadas no Oceano Índico. ”Assim vou poder viajar de novo para todos esses países.” (www.vermelho.org.br)