O tiro disparado pela maior emissora de TV acertou em cheio o brio da militância anti-racismo, provocando uma veemente reação estampada nas redes sociais. A essa dor transformada em ação, dedico este artigo, no qual proponho pensar midiativistmo e as negas, refletindo sobre a configuração de um forte canal de veiculação do discurso anti-racismo e construção de ações, posturas e discursos afirmativos.
A veiculação da frase bombástica acontece num contexto brasileiro antecedido por uma década em que o IBGE constatou a dobra do número de negras e negros nas universidades. Embora seja desejo de muitos ignorar a relação desse dado numérico com a ação afirmativa exercida pelas cotas, um pouco de esclarecimento torna clara tal relação. No entanto, embora a década em curso configure a chegada do Brasil à quinta posição no ranking mundial de acessos à internet, o esclarecimento de muitos continua baixo…
Na contramão dessa tendência, irrompe a cena o pronunciamento de jovens negras amplamente esclarecidas e embasadas em pressupostos teóricos capazes de afirmar ações anti-racismo. Com textos verbais e escritos, elas recorrem à rede mundial de computadores, utilizando mídias e linguagens como forma de ativismo. Conhecido como midiativismo, o fenômeno efetiva o pluralismo da comunicação, apontada como uma forma de contra-poder democrática, provedora de ações estratégicas para minar as naturalizações incutidas no material veiculado pela maior rede de comunicação brasileira.
Antes da análise do midiativismo realizado por mulheres negras, tema desta postagem, convém considerar dados sobre o material veiculado pelas grandes mídias, expostos recentemente em Seminário realizado no Rio de Janeiro. Obtidas em estudos desenvolvidos no Ceert e no Iuperj, as considerações tornam visíveis o poder bélico da imprensa hegemônica no discurso contra as cotas, mecanismo que colabora com a desconstrução da validade e legitimidade das ações afirmativas numa sociedade brasileira fundada na cordialidade, suposta harmonia e igualdade de oportunidades:
“A análise incluiu 1.029 matérias dos três jornais e 121 nas três revistas, e concluiu que “os jornais são contra a criação de políticas que incentivem a mobilidade social dos negros”. De acordo com o estudo do Ceert, na Folha 46,7 % dos textos tinham viés contrário às cotas, contra 20% favoráveis. No Estadão, 100% dos artigos de Opinião e editoriais foram contrários. No Globo, 56,5% dos textos tiveram um enquadramento desfavorável às cotas. O cientista social João Ferez, pesquisador do Iuperj apresentou o trabalho “A grande mídia e as cotas: um estudo preliminar”. Analisado o noticiário do Globo, de 2005 a 2009, verificou-se que 46% dos textos eram contrários a Ação Afirmativa, sendo 24% a favor. Juntando todos os formatos de textos — entrevistas, editoriais, cartas, colunas, notas, reportagens e artigos de Opinião — a pesquisa dos pesquisadores do Iuperj revela que 50% do material produzido no Globo no período citado foram desfavoráveis às políticas de cota, 23% a favor e 27% ambivalente e/ou neutro. No caso da revista Veja, no período de 2001 a junho de 2009, o tema Ações Afirmativas com viés racial teve 77% de textos contrários, contra 14% favoráveis”. (http://www.abi.org.br/cota-um-tema-malvisto-nas-redacoes/)
Como mostram as informações transcritas, a mídia hegemônica aderiu ao desmonte ideológico das ações afirmativas, provocando respostas surgidas de sujeitos conscientes dessa utilização perversa. É sabido que a tomada de consciência de grande parte desses sujeitos está ligada ao acesso a outras informações e teorias cruciais para a desconstrução de posturas validadas nas relações etnicoraciais de uma sociedade brasileira que naturalizou a subalternidade da população afro-brasileira, historicamente posta à margem dos espaços de prestígio e poder.
Para alguns sujeitos, o acesso a rede tornou possível o contato com discursos diferentes do hegemônico, nos quais surgiram possibilidades de contradizer afirmativas que diminuíam a humanidade dos ancestrais negros e de seus descendentes. A percepção das manifestações de racismos aceitas pela sociedade brasileira deu origem a muitas lutas individuais e coletivas difundidas pela rede mundial de computadores, e compartilhada nas redes sociais em que os novos e antigos atores do ativismo negro se encontram.
No acender dos leds, computadores em rede se alinham formatando uma militância digital produtora de reflexões tecidas na velocidade da luz, para iluminar questões que evidenciam a continuidade de práticas racistas na sociedade brasileira. Foi o que se viu, a partir da veiculação do título da minissérie Sexo e as negas, posto em circulação em rede nacional. Em tempo real, as redes sociais e blogues exibiram respostas à frase título. Elaboradas por diferentes enunciadores, com enfoques variados, tendo em comum a vivacidade de argumentos moldados a partir de experiências negras que contrariam a racionalidade limitada exaltada nas “negas” do seriado televisivo.
O conjunto de textos e vídeos enfocando o título do programa ressalta a maturidade argumentativa e discursiva de mulheres brasileiras que empreendem um vigoroso “Midiativismo e as negas”, formatando leituras críticas salutares quando a grande mídia opta cobrir a forma dos programas, exaltando a qualidade estética padronizada de cada novo e vazio produto televisivo. A boa safra de textos insuflada pelo criticável produto cultural (?) da emissora carioca, teve como texto de abertura o sábio artigo de Fabíola Oliveira – jovem carioca protagonista de diferentes ações que afirmam a identidade afro-brasileira.
Em “Sexo e as nêgas: a conexão perversa entre o estereótipo e o racismo” – http://www.geledes.org.br/sexo-e-negas-conexao-perversa-entre-o-estereotipo-e-o-racismo/#axzz3DuPzX2TL, Fabíola fez uma consistente reflexão sobre fatores que justificam a crítica e repúdio a um título impregnado de significados perversos, a autora teve seu sua criação repostado no portal Geledés, espaço virtual de grande importância para a visibilidade de artigos em que mulheres negras exercem seu midiativismo abordando diversas temáticas. Ao final de seu texto, surge um questionamento interessante ao abordado neste trabalho: “Quero entender, antes de tudo, como que essa “coisificação” de nós atrasa nossa militância. Onde o Movimento Negro erra na comunicação com seu próprio povo, enquanto o racista acerta, atinge e nos engessa.”
Seguindo pela senda aberta por Fabíola ao pensar erros e acertos no diálogo entre o ativismo negro e os afro-brasleiros, convém pensar no portal Geledés, que parece acertar no diálogo com interessados nas relações étnicoraciais e identidade afro-brasileira. Tendo como articulistas algumas afro-brasileiras que, há muito, contrariam a posição subalternidade reservada às mulheres negras, o portal aglutina textos importantes para a desconstrução de estereotipias, ampliando a visibilidade da autoria negra e hospedando material que possibilita o acesso a conhecimentos importantes para a construção de discursos afirmados e elevação da auto-estima. Nesse sentido, é valiosa a atuação do portal que, no episódio da minissérie, acolheu o texto referido acima e outros, reverberando vozes e escritas que exercem o midiativismo em suas páginas individuais e coletivos.
A confluência temática confronta a riqueza das abordagens realizadas em textos como A representação do outro pelo olhar da incompreensão , escrito por Marcia Rangel Candido, do Coletivo Rosa dos Ventos, da Marcha Mundial das Mulheres e Mestranda em Ciência Política no IESP/UERJ, no qual a autora analisa o silenciamento da voz negra na grande mídia:
“A resposta irônica que as manifestações contra a exibição do programa receberam mostra como ainda é difícil para nós, mulheres, nos fazermos ouvir dentro de uma sociedade sexista, que ignora o quanto a mercantilização dos nossos corpos incide sobre as diversas espécies de violência cotidiana que temos que enfrentar”.
Toda a discussão realizada a partir do título, contou com uma discussão feita pelo Coletivo Blogueiras Negras, através da criação série “As nêga real”, publicada em http://blogueirasnegras.org/2014/09/20/asnegareal-episodio-02/ . Com declaram as negas virtualmente, a série é produzida “a partir de uma análise meticulosa e do embasamento” das participantes, que usam mente, gestos e voz para expor reflexões sobre argumentos usados pela emissora e outros veiculados na imprensa antes do lançamento na TV. Como desdobramento, após o primeiro episódio, as blogueiras v enfocam o material que foi ao ar na TV, apontasm aspectos que confirmam a estereotipia deflagrada num programa televisivo marcado pela a hipersexualidade das das personagens negras e a subrepresentatividade disfarçada de protagonismo negro, numa série em que a narradora branca reúne todos os trunfos para obter o maior destaque em cena.
Com sua webcam, a advogada Ludmila Cruz registrou um depoimento intitulado “A nega falando da nega”. Postado em rede social, o vídeo foi incorporado ao acervo de postagens reunidas no Geledés – http://www.geledes.org.br/nega-falando-o-sexo-e-negas-antes-que-pecam-minha-opiniao/#axzz3DuPzX2TL. Imagem e texto expostos no vídeo resultam de mais um produto da ação das midiativistas negras em busca da veiculação de uma produção de conhecimentos que contraria a postura de receptor passivo, estimulada pela TV no público brasileiro.
Ao terem sua expectativa de um mínimo de respeito desrespeitada na TV, mulheres afrobrasileiras detonaram um belo movimento de articulação de corpo e mente na produção e reprodução de textos falados e escritos para combater o racismo cordial e estrutural existente na realidade e ficção, ao qual se deseja combater com o uso de diferentes estratégias de afroativismo possíveis com uso das mídias digitais. Trata-se de um efetivo protagonismo negro, tornado possível a partir do midiativismo das negas. Em diferentes frentes, as ações colaboram com a circulação de outros discursos, pondo em discussão longínquas formas de representação da população negra, antes aceitas sem questionamentos.
O material produzido, e em parte aqui apontado, atua em prol de uma mídia sem racismo e da criação e circulação de diálogos inclusivos, construídos com base no respeito aos seres humanos e desconstrução de estereótipos instaurados em nossa sociedade desde os tempos das senzalas, e perpetuados nas TV que ocupam as salas das casas grandes e pequenas desse país, onde a grande mídia pretende sufocar a discussão diagnosticando a “histeria e cegueira” em militantes que provam sua ampla visão de aspectos criticáveis numa série que se pretende inovadora, embora repita velhos chavões racistas a partir de um título, cujo espectro racista é traduzido no desenho criado por Fernanda Moreira em seu artivismo. Circulando nas redes sociais, arte de Fernanda foi utilizada como para ilustrar um dos meios buscados pelo midiativismo para destruir o racismo naturalizado na e pela mídia.