José Geraldo da Rocha
Unigranrio
Dentre os tantos problemas em relação ao negro na sociedade brasileira, encontramos a sua invisibilidade. Independentemente do seu quantitativo no universo da população, em várias instâncias de decisões ele não está representado. Nesse caso trata-se de uma negação presencial. Em outros espaços, mesmo estando presentes fisicamente, a desconexão com sua consciência negra o torna invisível do ponto de vista de fazer valer as coisas e elementos associados à sua identidade, à sua pertença étnica e cultural. Ainda existem os espaços e circunstâncias, onde sua presença é ignorada intencionalmente, ou não, conscientemente ,ou não.
Na perspectiva da invisibilidade é que se coloca o questionamento relativo à produção do conhecimento. Os espaços privilegiados de produção do conhecimento na sociedade brasileira são espaços embranquecidos. Nesses espaços, não só é preocupante a ausência física sistemática de negros, como a quase absoluta inexistência de possibilidades de formulações teóricas. Talvez aqui coubesse uma pesquisa mais abrangente e detalhada sobre produção e sistematização de conhecimento a esse respeito nas teses de doutoramento ao longo da história das universidades brasileiras. Evidentemente, que a ausência, por tanto tempo, dos negros nesse espaço privilegiado de produção de conhecimento, corroborou substancialmente para esse quadro. Consequentemente, a parcialidade tornou-se uma marca do conhecimento produzido. Ao negar a possibilidade do negro ser nesse espaço, nega-se também o saber sobre ele. O Ser que não é visto, torna-se o Ser que não é apreendido. A negação da diversidade, da diferença, acaba obstaculizando o próprio saber. Nesse sentido, afirma Marcondes: Ver o ser é possuir o saber. Possuir o saber é obter a visão do todo, superando a visão parcial, ver os ser na sua totalidade.(MARCONDES,2006,27)
À luz das afirmações de Marcondes, nos deparamos com um grande problema filosófico no trato com as questões relativas ao negro no Brasil. Ver o ser negro na sua totalidade é verdadeiramente algo não costumeiro na sociedade brasileira. Ao contrário, o que se naturalizou a respeito do negro é que ele é pobre, favelado, pagodeiro, sambista ou jogador de futebol, quando não é bandido. Essa rotulação naturalizada na verdade acaba sendo uma redução do Ser negro. Tal redução aplasta dimensões e valores constitutivos da dignidade requerida do Ser. É o mesmo que dizer: olho um nego e vejo um Ser. Ser esse que é humano, portador de riqueza, de beleza, de valores e tantos outros atributos constitutivos do Ser.
Nesse sentido, o pensamento de Leibniz trabalhado em Marcondes parece-nos extremamente relevante.
Em vez de duvidar de tudo que possa parecer incerto, é preciso considerar os graus de aceitação ou discordâncias que cada afirmação possa produzir, ou seja, examinar suas razões(…)Toda verdade deve ter uma razão segundo a qual ela é verdade(… )a tarefa da filosofia consiste na integração da totalidade do conhecimento humano.(MARCONDES,2006,192)
Muitas são as verdades sobre o negro no Brasil, que os “ouvidos” da sociedade brasileira não querem, não suportam, não admitem ouvir. A impregnação e a incrustação do racismo na mente coletiva , não apenas cegam os olhos mas também entopem os ouvidos. Obviamente, tal realidade, inviabiliza toda e qualquer possibilidade de compreender o Ser negro na sua totalidade e consequentemente viabilizar a integração da totalidade do conhecimento.
Enquanto Descartes afirmava “cogito ergo sum” – penso logo êxito, como forma de estabelecer os fundamentos do conhecimento, no universo de uma epistemologia afro, tal afirmação seria modificada pelo “ sou porque vós sois”. O fundamento do conhecimento está no sentido da existência, não está no pensar. E o sentido da existência está no relacionar-se. Ora, do ponto de vista filosófico, isso encerra um enorme riqueza presente numa matriz cultural na sociedade. Entretanto para que isso se torne algo a ser partilhado nos espaços privilegiados de produção de conhecimento, necessário se faz um redimensionamento da inclusão presencial e relacional da diferença.
A sociabilidade é a conseqüência imediata das faculdades mais ligadas ao ser do homem, que são: o conhecimento, a corporeidade, a linguagem, a liberdade e o amor. O conhecimento põe-no em contato com todo o mundo que o circunda, particularmente com o mundo humano. A linguagem permite-lhe trocar com os outros as suas idéias próprias, os próprios sentidos, os próprios projetos. O corpo dá lhe a possibilidade de trabalhar, jogar, divertir-se etc. junto com os outros. O amor e a liberdade colocam-no à disposição para dar-se aos outros e para fazê-los participantes das próprias coisas e do próprio ser. (MONDIN, 2005, 170-171)
Os preconceitos e a discriminação são impeditivos à vivência e à sociabilidade do ser. São realidades que bloqueiam a expressão do ser., assim como o impede de desenvolver do ponto de vista do conhecimento, que vai desde a negação da oportunidade até a sedimentação de entraves psicológicos. Cria-se nessa perspectiva, processos de desconexão do ser com o mundo que o envolve e fundamentalmente com o seu mundo interior. É a chamada negação de si mesmo. Ao considerar um ser que nega a si mesmo, a sua dimensão corpórea não lhe permite estabelecer relacionamentos dignificantes enquanto ser humano. Desencadeia-se se assim uma invisibilidade de si mesmo. O ser negro não se vê enquanto ser. A perda da consciência corpórea desvincula o ser de si mesmo. Em Marx essa perda de consciência aparece como alienação, ou seja, o indivíduo se torna estranho a si mesmo em razão das artimanhas do sistema capitalista. É verdade que Marx não está preocupado com a questão da discriminação. Sua preocupação está centrada na exploração que a classe dominante exerce sobre a classe trabalhadora. Então a linguagem do ser não mais significa possibilidade de trocar com os outros. Trocar o que se a discriminação faz com que o que se é não tenha reconhecibilidade e aceitabilidade? Isso encerra uma implicação extremamente prejudicial a sociabilidade desencadeia dessa situação. As idéias, os projetos e o sentido da vida são desvirtuados. Quando um individuo perde esse referencial, a relação que ele vai estabelecer com a sociedade estará obviamente desfocada do eixo da humanização. Como falar de amor a esse ser? Falar de liberdade, de disposição para dar-se aos outros, se o que recebe dos outros são gestos e práticas discriminatórias, que só o diminui e o aniquila enquanto ser?
É notório na sociedade brasileira que essa invisibilidade do negro é algo construído socialmente e culturalmente. As marcas das culturas dominantes estão presentes nos mais diferenciados setores e aspectos da vida cotidiana do povo brasileiro. A negação, quando conveniente, dos aspectos culturais relacionados aos negros cumpre um papel político e ideológico. Nesse sentido, o pensamento de Mondin é ilustrativo. É possível constatar a complexidade que está presente culturalmente na sua origem, na sua forma e na sua finalidade
A cultura é um fenômeno complexo e a melhor maneira para entendê-la é a de fixar suas principais características. Elas podem ser agrupadas segundo três aspectos: a origem, a forma e a finalidade. Do ponto de vista da origem a cultura é humana, social e laboriosa (…) Do ponto de vista da forma, a cultura é sensível, dinâmica, múltipla e criativa (..) Do ponto de vista da finalidade, para alguns é considerada essencialmente religiosa, para outros humanistas, e por outros naturalista ( MONDIN, 2005, 179 -181)
Dada a complexidade do tema em questão, todos os esforços em busca de garantir uma visibilidade epistemológica, sao poucos, diante do tanto tempo que tal realidade foi relegada.
Referencia Bibliográfica
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: ZAAR, 2004.
MONDIN, Battista. O Homem, Quem é Ele? Elementos de Antropologia e Filosofia. São Paulo: Paulus, 12ª Edição, 2005.