O Brasil já tem o seu Estatuto da Igualdade Racial, sancionado ontem (20) pelo presidente Lula. Criticado pela oposição, contrária a sua própria existência, a nova legislação, contudo, ficou aquém das expectativas daqueles que lutam pelo fim da discriminação e veem nas ações afirmativas um meio eficaz de combatê-la.
A nova lei prevê a obrigatoriedade do ensino da história da África; reconhece a capoeira como esporte e prevê recursos para a prática; reitera prática livre de cultos religiosos de origem africana; garante linhas especiais de financiamento público para quilombolas; e prevê a criação de ouvidorias em defesa da igualdade racial. No entanto, quando passou pela Câmara dos Deputados, o projeto perdeu a previsão de cotas em universidades, na televisão e em filmes. Os senadores retiraram o incentivo fiscal para empresas que contratassem negros e a cota por partido nas eleições. Sem esses pontos, para muitos, a nova lei já nasce deixando a desejar e sem condições de promover de fato aquilo a que se destina: a igualdade racial.
O problema é que, desde 2000, quando a versão original do projeto foi apresentada pelo senador Paulo Paim (PT/RS), o estatuto vem sendo alterado para se tornar mais palatável à mentalidade racista que ainda contamina a sociedade brasileira. A opinião é da Procuradora Federal na Fundação Cultural Palmares, Dora Lucia de Lima Bertulio. “O Estatuto da Igualdade Racial foi, ao longo dos anos, sendo modificado para que fossem suavizadas as significantes indicações do comportamento racista nacional e, muito especialmente, os nefastos efeitos do racismo institucional que a sua aprovação documentaria”, afirma ela em artigo publicado ainda na fase de discussão do projeto.
Racismo cordial
Para ela, as inúmeras alterações a que o texto foi submetido retiram sua força, como por exemplo a supressão da palavra “raça”, embora o conceito já esteja consolidado no ideário científico e comum, inclusive da comunidade internacional. “É necessário trazer à memória o esforço da Organização das Nações Unidas (ONU), que reiteradamente tem editado e realizado convenções, conferências e reuniões para indicar aos países membros o fim do racismo e da discriminação racial, exigindo a implementação de políticas públicas para tal objetivo. Veja-se, por exemplo, a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e a recente III Conferência Mundial para a Eliminação de todas as Formas de Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e formas conexas de Discriminação. Seus relatórios e declarações, todos aprovados pelo Estado brasileiro, são explícitos na utilização dos termos ‘raça’ e ‘racismo’ para designar o fenômeno social de utilização da discriminação e exclusão social com base no pertencimento racial dos indivíduos.”
De acordo com a procuradora da Fundação Palmares, é ainda grave a exclusão da referência à escravidão e da subseção “Do sistema de cotas na educação”, assim como das proposições de medidas práticas para a promoção da igualdade racial no país nos setores de saúde, mídia e demais áreas de referência de qualidade de vida. Na sua opinião, o resultado reflete “negativamente para a educação da sociedade brasileira, que deveria, sim, ser dirigida para a promoção do respeito ao papel da população negra como efetiva realizadora e contribuidora do desenvolvimento nacional, desde o período da escravidão até nossos dias”.
Por fim, conclui ela, “o que vemos no projeto modificado é mais um presentinho do racismo cordial brasileiro, que a um tempo indica um compromisso do Estado brasileiro para a promoção da igualdade, mas por outro retira significativamente a efetividade da lei na promoção e implementação de políticas públicas de real promoção da igualdade racial”.