O título deste editorial (Barulhinho Bom), inspirado na música genial de Hermeto Pascoal, expressa a essência do que a Abong e um conjunto de suas associadas, organizações do movimento negro, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), entre outras(os), vêm produzindo ao longo dos últimos cinco anos por meio da iniciativa Diálogos Contra o Racismo e da campanha Onde você guarda o seu racismo? Neste sentido, com o objetivo de avaliar os resultados e discutir os próximos passos, realizou-se no Rio de Janeiro, nos dias 17 e 18 de agosto, a V Reunião dos Diálogos.
Nascido no calor do processo preparatório para a Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância (CMR), realizada em Durban (África do Sul, 2001), os Diálogos foram, originalmente, uma iniciativa do Ibase/Observatório da Cidadania, da AMB, da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea), da Cepia, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (Cesec), da Comunidade Bahá`í, do Geledés – Instituto da Mulher Negra e de Criola. Outras organizações foram aderindo ao longo dos anos, e a iniciativa conta hoje com entidades de diferentes regiões do Brasil, além do engajamento de centenas de pessoas por meio das atividades promovidas pela campanha Onde você guarda o seu racismo? Atualmente, a secretaria executiva dos Diálogos está a cargo do Ibase, assim como integram a sua coordenação: Abong, ActionAid Brasil, AMB, Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras, CFemea, Cesec/Ucam, Comunidade Bahá’i, Criola, Fase, Geledés, Inesc, Instituto Patrícia Galvão, Observatório da Cidadania, Rede Dawn e Redeh.
A inspiração original da iniciativa era superar certa compartimentalização que sempre caracterizou a luta contra o racismo no Brasil, ampliando-a para além das organizações diretamente ligadas ao tema, notadamente aquelas ligadas ao universo de associadas da Abong. As organizações promotoras dos Diálogos reconhecem que em qualquer lugar do mundo, mas particularmente no Brasil, a luta contra o racismo contém um forte conteúdo ético, que obriga a uma mudança de mentalidade no plano individual e atinge todas as dimensões da vida. Os debates, muitas vezes acalorados, ocorridos durante as sessões do V Diálogos, confirmaram a atualidade e a importância da iniciativa.
Mais do que qualquer coisa, os Diálogos buscaram, desde o primeiro momento, romper com o silêncio em relação ao racismo, que marcou, até muito recentemente, o discurso público de boa parte da sociedade civil brasileira. Constituiu-se enquanto espaço para a explicitação e o debate de posições diferenciadas sobre o tema, mas comprometidas com a causa anti-racista. Um espaço de entendimento, conversação e construção de confiança política, condição central para que a questão do racismo seja efetivamente internalizada pela sociedade civil, como desafio central da construção democrática e, portanto, inescapável para as organizações e movimentos engajados nesta luta.
O enfrentamento do racismo no Brasil sempre se confrontou com uma atitude muitas vezes envergonhada ou claramente discriminatória de uma sociedade que, conforme já foi exaustivamente demonstrado em pesquisas, foi capaz de produzir o curioso fenômeno do racismo sem racistas. O mito da democracia racial, nas suas mais variadas encarnações – inclusive as que celebram a “mestiçagem” e a “diversidade” brasileiras, mas se recusam a reconhecer o lugar subalterno reservado à população negra -, encontrou respaldo em uma perspectiva que nunca reconheceu legitimidade ao tema do racismo como central nos processos de mudanças sociais, considerado mera decorrência da estrutura de classes, a ser superado pelas várias modalidades de revolução, ao sabor da filiação ou simpatia ideológica de cada um(a).
A polêmica, muitas vezes inflamada pela mídia, em torno da adoção de “cotas raciais” em várias universidades brasileiras e da aprovação pelo Senado do Estatuto da Igualdade Racial, revela a resistência que alguns setores das “classes educadas” brasileiras ainda alimentam a respeito do tema. A virulência de algumas críticas – sem mencionar as que simplesmente falsificam o debate e ignoram os fatos, como é o caso do argumento que diz que as cotas ofendem o mérito e reduzem a excelência da universidade pública – é reveladora da importância da ampliação da discussão sobre o racismo na esfera pública brasileira. É fundamental que as organizações da sociedade civil, comprometidas com os direitos humanos e com a democracia, sejam capazes de participar de maneira qualificada dessa discussão. A crescente legitimidade e o reconhecimento pela sociedade brasileira da necessidade de enfrentar o racismo, duramente conquistados por décadas de lutas protagonizadas pelos movimentos negros, requerem um posicionamento cada vez mais ativo de todos(as) nós.
A iniciativa Diálogos Contra o Racismo faz parte deste esforço e cumpre o papel, especialmente para dentro das nossas próprias organizações, de incomodar e romper com uma acomodação perniciosa à democracia. A Reunião do V Diálogos confirmou este princípio fundador da iniciativa e sublinhou a importância da coexistência de posições distintas, reunidas em um espaço que tem o compromisso essencial e não negociável de lutar contra o racismo no Brasil.
Saiba mais sobre os Diálogos e a Campanha: www.dialogoscontraoracismo.org.br
Diálogos contra o racismo, cinco anos
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