Dia da Consciência Negra – Liberdade incondicional

Frantz Fanon combatia a colonização na África

Uma das melhores formas de aprender é conversando. “Ninguém educa ninguém. Os homens aprendem entre si”, dizia o Paulo Freire. O diálogo é uma forma de texto. Conversa, como tanto consagrou o rap, com grupos em que há dois MCs.

De um lado, temos aqui Banto Palmarino, parceiro que trabalha na implementação de telecentros públicos à base de software livre Brasil afora. Do outro, Spensy Pimentel, estudante de Antropologia que também é jornalista. Os dois se conheceram entre Piauí (em 2005, quando dois eventos paralelos sobre essa temática da inclusão digital rolavam por lá – salve, MHHOB!) e Brasília. Desde então, conversam sempre que podem.

No texto que segue, há várias referências a papos anteriores entre os dois. A mais importante diz respeito à obra de Frantz Fanon*. A essência, a conclusão da conversa toda, é o que está no título: quando se ganha a liberdade, não pode haver condições: ou é liberdade, ou não é. Tudo a ver com o debate que poderíamos fazer sobre a atitude de muita gente do hip-hop quando ganha dinheiro com a arte e obtém ascensão social. Não só um debate da USP, de classe média: muita discussão sobre isso acontece em eventos do movimento HH lá no coração da periferia. A conversa foi realizada por e-mail:

Spensy: Salve, professor! Eu começaria com uma provocação. Sempre achei a sua formação pessoal muito interessante porque você alia um conhecimento “de rua” com algo que, pelo senso comum em geral, as pessoas acham que só se aprende na escola, numa faculdade etc., que é a informática. O que você acha sobre isso? Dentro da cultura de rua, poderíamos dizer que existe um preconceito com a escola? Ou isso tá mudando, ou sei lá? O que você pensa sobre isso? Ou será que sou eu que tô atrasado em pensar que esse saber é de escola, sendo que já há tanta lan house nas periferias do Brasil afora, e tanto autodidata na periferia?

Banto: Maninho, eu estava pensando aqui… Tem uma galera que eu tenho curtido muito, nesse novo cenário do hip-hop paulistano, novo para mim, que tem misturado, com doses equilibridas, política, negritude e festa. Tipo… três coisas que nunca vi juntas e, soltas, sempre me pareceu faltar algo… Talvez seja a chegada da leitura, a leitura da vida. Sob vários ângulos que não sejam somente da denúncia e lamentação, mas tipo dos “condenados da terra” que passam a se olhar de forma diferente, se gostando mesmo, sem ter que atravessar a ponte para aprender isso. Eu sou da geração que teve que atravessar a ponte e, agora que eu tô de volta, olha só, vejo que viajaram sem sair do lugar e, aprendendo tantas coisas como eu, mas viajando para dentro!

Tô lendo um livro ´bem loko` e quero compartilhar contigo. Chama-se Contra o Método, de Paul Feyerabend. Tô no começo, mas parece que estamos sentados num boteco juntos, uma terceira pessoa. Ele é um desses caras da filosofia da ciência e nesse livro ele vai buscar argumentos para endossar a tese de que todas as pessoas são cientistas e têm seu valor intelectual, e que podem contribuir diariamente nessa engenharia chamada humanidade. Ele ataca todos os que tentam enquadrar o que é de fato “científico”, por se usar método cientifico para chegar a tal conclusão. Ele quebra a ideia de um, dois, ou quantos sejam, metódos corretos, pois mesmo os cientistas erram muito para chegar a um resultado, inclusive olhando o erro dos outros.

Chega mais um na mesa: Sartre, no seu livro Em Defesa dos Intelectuais, vai falar da impossibilidade de existirem intelectuais orgânicos hoje, de só terem existido na Idade Média, com os filhos dos burgueses desenvolvendo coisas para melhorar a vida dos seus, mas que hoje, quando tem um intelectual na periferia, ele se aburguesa e trai sua classe. Mas não é isso que vejo hoje e convido o Sartre a observar: a periferia passa a ser centro. As pessoas vão para dentro e buscam a “africanização dos espíritos”, como disse Amilcar Cabral: chegou e foi na missão. Fogem para dentro e externalizam isso de diversas formas.

Feyerabend concorda. E com certeza o hip-hop foi o estruturante para que isso viesse a acontecer. Dos sauraus aos documentários e cenários underground de São Paulo que chamam o mainstream para dançar. Recentemente, o Governo Federal, através dos institutos federais e escolas técnicas federais, criou a rede Certific. Essa rede tem a ideia de certificar o conhecimento adquirido no dia-a-dia, sem ser pela escola formal. Vão certificar o pedreiro, a cozinheira, o eletricista que não se sentou numa cadeira de escola. Ou que esteve lá por pouco tempo e poderá ter o certificado emitido pelo instituto federal como curso técnico… tipo universitário! Tem umas regras a serem seguidas e tal, e também depende da natureza de cada instituto. É nova a parada e depende da adesão de cada unidade. Está se formando, existe em poucos lugares ainda, mas a iniciativa é massa!

Vi isso rolando no campus de Guarulhos. Tipo… os pais e as mães são intelectuais orgânicos, com saberes adquiridos por vias diferentes, e a combinação de vias diferentes, de gerações, oferta possibilidades de mudança para si, para os seus e para os outros. Assim como seus filhos e filhas estão em universidades institucionais e criando as novas universidades, que passam a ser os locais até então inusitados por uns, e para outros vadiagem: o bar que vira espaço literário, a quitanda que vende livro, a esquina do centro que tem freestyle… As salas de aulas são certificadas pelos próprios alunos, que também são os professores! Pois é: intelectuais orgânicos. A rua é nóiz! Abração, irmão!

Spensy: Muito bom! Sensacional a sua reflexão. Suas ideias foram na mosca! Bem… Mais uma provocação, então, para a gente continuar. Como você bem lembrou, a gente observa que esse processo de constituição de um “poder popular”, por assim dizer, no campo do conhecimento, também gera alguns desafios, desdobramentos (digamos assim), das questões iniciais. Também acho que é um debate totalmente sintonizado com o momento econômico positivo que estamos vivendo.

Por exemplo: nos EUA, houve a ascensão social de um grupo negro, a constituição de uma espécie de “elite do gueto”, que não necessariamente se comporta no plano político em favor dos pobres ou dos demais negros (pode ser que se faça a opção de negar a origem e se identificar com os valores da classe média). No Brasil, agora que a economia parece que está massificando esse processo de ascensão social, como você acha que as coisas podem acontecer? Vai ser um caminho parecido?

Minha posição pessoal, vale demarcar, é de um branco (branco vira-lata: não tenho passaporte europeu nem “sobrenome”) e que nasceu em uma família de uma classe média (com origens camponesas, de ambos os lados). Sei que sou uma contradição ambulante, estudei na escola privada para chegar à universidade pública (embora minha família, que é do interior, não fosse ter dinheiro pra pagar uma faculdade em São Paulo, certamente), mas tudo o que eu posso fazer é tentar ajudar as coisas a mudar, em vez de manter o mito de que cheguei aonde cheguei “por meus próprios méritos”. Ou seja: em suma, não tenho legitimidade para chegar em alguém de uma família que passou gerações sem poder gozar de certos benefícios sociais, como o consumo, e dizer que essa pessoa está errada em consumir.

Condoleezza e Powell, com Bush: negros no poder

Porém, sempre me chamam a atenção pessoas como o Colin Powell e a Condoleezza Rice, negros servindo a um governo dos mais filhos da p… da história mundial recente, o de George W. Bush. Como você vê esse processo de, daqui a um tempo, podermos ter negros no governo, de fato, como há muito se reivindica, mas negros de direita? Ou, mesmo que “de esquerda”, como o Barack Obama, mas que servem a objetivos dos mais reacionários, como a manutenção da guerra no Oriente Médio?

Banto: Levo em consideração que é um questionamento que não baila somente nas reflexões do Spensy, mas de todo um grupo. E, por isso, embora seja uma resposta para o Spensy, respondo de forma geral… Você acha pertinente esse questionamento? Quer dizer, você crê que a resposta possa servir de ajuda para as pessoas negras? Ou é mais uma questão não resolvida, que gera angústia, das pessoas brancas de consciência social? Digo isso porque respondemos a essa pergunta há anos. Mas ela ainda persiste, e é óbvio: quando as pessoas pegam sua liberdade, elas podem usar como bem entender.

Mas aí não basta: os negros, os oprimidos têm que fazer diferente. Senão, “Por que aceitamos a liberdade deles? Era para eles serem diferentes do que fizemos e fazemos”. “Nos sentimos traídos, pois depositamos toda a confiança.” Ou seja: era para dormir em paz. “Resolvemos o problema com a abolição.” Tipo… o negro que conseguiu mais privilégios tem que seguir um monte de regras, senão perde seus direitos.

E o opressor pode ser tanto de direita como de esquerda. O capitalismo e o socialismo são soluções e/ou problemas dos brancos em suas sociedades e civilizações. Não temos obrigação de seguir nenhuma dessas convenções. Isso num primeiro momento. Uma vez que dividimos o mesmo espaço, temos duas saídas: nos organizarmos paralelamente ou nos integrarmos. Só que, de diversas formas, somos impedidos de realizar as duas opções. Somos impedidos, de diversas formas, de exaltar nossa identidade – das formas escancaradas às sutis atitudes racistas. Uma vez integrados é que faz sentido nos posicionarmos quanto à orientação político-ideológica.

Em livros de esquerda, anarquistas ou socialistas, raramente nos colocam como trabalhadores ou pessoas – gente. Somos colocados como “coisas”, nas poucas linhas do livro, algo que tem que ser dito por “questão histórica” e pronto. Na tentativa de endossar a tese de integração, de democracia racial, raramente nossa opinião tem crédito. Ainda tem aquele tratamento de como se fôssemos crianças: “Eles não sabem o que dizem” ou “Eles não sabem o que fazem”. Isso por um lado. Por outro, tem aquela ideia da confiança, que o senhor de escravo depositava em um negro, em um grupo, e esse tinha que seguir um monte de regras para não perder seus privilégios.

É tipo isso: quando há negros no poder e com grana, não podem se sentir livres para fazerem o que bem entenderem, como um branco faria. Tem que seguir todas as recomendações de como deve se comportar um negro bem-sucedido. Esperam que o Obama resolva todos os problemas do mundo, ou pelo menos os mais complicados, pois ele é negro e será diferente. Se há um advogado branco corrupto, não falam “advogado branco corrupto”. Só advogado. No caso do negro, vem sempre com esse composto, sempre lembrando que ele é negro. Não que ele precise ignorar esse fato. Mas prova-se, aí, que não há igualdade. Quem se destaca tem um compromisso a seguir. Aí tem que contemplar os negros ricos e pobres, assim como os brancos ricos e pobres. Se for mulher, mais ainda. E não pode errar! O branco pode errar quantas vezes for, mas o negro não.

A sua provocação é boa, e não é a primeira vez que escuto de pessoas com as mesmas caracteristicas que você desenhou para si mesmo, em termos étnico-sociais. Aí vale lembrar Steve Biko**, quando ele dizia que devem existir alguns brancos bons, assim como devem existir alguns negros ruins. A questão é que, quando exigimos cotas, não queremos que todos os cotistas venham reforçar um projeto de esquerda. Num primeiro momento, queremos só a presença fisica, para colorir a parada.

Por sua vez, esse que chegou lá carrega toda a história de seu grupo étnico-racial, que vai se desenvolvendo na contradição. Tipo Nilma Bentes, no seu livro Negritando, que diz que, às vezes, o papel do militante negro é contar a “péssima notícia” para aquele jovem: que ele é negro. Assim como o colega branco chama ele de “negrão”, mas não chama o outro de “branquelo”. Então a consciência passa a se desenvolver aí e não sabemos para onde ela pode ir.

Se você der uma olhada no livro Tornar-se Negro, de Neusa Santos Souza, ela desenvolve bem os problemas de formação de identidade em um país como o Brasil. Inclusive, ela se suicidou. Lembra-se do Pele Negra, Máscara Branca (texto famoso do Frantz Fanon)? Pois é, uma vez que se tem o acesso a determinados espaços políticos e econômicos, a primeira missão é ver um de pele escura e cabelo crespo lá. Sem exigir nada dele. Mas aí vem o peso, principalmente dos brancos de consciência social e de esquerda, de que o negro que chegou lá deve dar o exemplo. E os negros cobram mais ainda. Consequência do sentimento desenvolvido pelo colonizador: “Você terá mais direitos porque se comportou bem e tem que fazer valer a chance que você teve, senão acaba para você e para os outros”.

Vale lembrar que tanto a esquerda como a direita estão pouco se lixando para nós, negros. Temos 50 anos de socialismo em Cuba e o país continua racista. E lá não é a minoria, como nos Estados Unidos, ou metade, como no Brasil. Lá é a maioria! E não se vê negro na estrutura de poder. “Se o poder é bom, quero ele também.” Lembra-se do Ilê Aiye? Pois é.

A sua referência é pertinente, mas é tendenciosa. Entendo que seja para gerar o debate. Mas aí você se esquece de pessoas como W.E.B. Du Bois e todos aqueles que construíram no passado para que esses afrodescendentes pudessem chegar onde estão, sem necessariamente serem de esquerda ou de direita. Muitos pan-africanistas escolheram a terceira margem do rio e levavam porrada dos dois lados. A questão é o negro, onde estiver, fazer só um pouquinho: já é o bastante. Ainda esses dias, assisti a um filme muito bom! Muito bom mesmo, e que me deixou mais leve! Chama-se O Grande Debate, foi feito pelo Denzel Washington e financiado por pessoas como a Oprah. Procure ver o trailer do filme. É muito bom. É um pouco desse debate que estamos fazendo, mas em 1935… Abração!

Spensy: Genial! Não esperava nada menos que isso de você, meu professor! Agradeço pela paciência em responder. De fato, eu tento ser só um “cavalo” nesse debate, de questões mais amplas. Em suma, matou a pau! O que você escreveu ainda está ressoando em mim. Você não só lê Fanon, você entende o Fanon, vive o Fanon. Isso dá outra dimensão para o estudo. Isso é estudar de verdade!

O que você disse me fez pensar nuns debates que rolam muito em relação aos povos indígenas (tô falando isso porque é o debate do qual eu tenho estado mais próximo nos últimos anos, mas também porque, fundamentalmente, acho que tem, sim, a ver com a questão colonial). Tem muitos lugares em que o pensamento se parece muito com isso que você descreveu: “Eu lhe dou a liberdade, mas só se for para você fazer o que eu acho justo e correto” (sem você se corromper na cidade, querer consumir, experimentar coisas novas, pra além da “tradição cultural”). Enfim, um brinde ao Fanon e a ti! Com a satisfação de ser seu contemporâneo.

Banto: Salve, maninho! A satisfação é a minha!

(Com Banto Palmarino)

*Frantz Fanon (1925-1961) foi um psiquiatra e escritor antilhano, considerado um dos maiores pensadores do século XX acerca da descolonização de países africanos pelos europeus. Escreveu quatro obras: Pele Negra, Máscaras Brancas (1952); L´An V de la Révolution Algérienne (sem tradução, 1959); Os Condenados da Terra (1961); e Pela Revolução Africana (1964).

**Steve Biko (1946-1977) foi um ativista que lutou contra o apartheid na África do Sul nas décadas de 1960 e 1970. Morreu nas mãos da polícia, no trajeto entre uma prisão e outra, mas o caso prescreveu sem que chegasse a ser esclarecido ou julgado.

PS:
– Originalmente publicado em http://centralhiphop.uol.com.br/site/?url=materias_detalhes.php&id=1152

– A imagem utilizada da criança no logo da matéria é de Peter Klashorst e retirado do wikipedia

One thought on “Dia da Consciência Negra – Liberdade incondicional

  1. Dia da Consciência Negra – Liberdade incondicional
    Salve!

    licença pra chegar ….

    e parabenizar as provocações e ainda mais as respostas apresentadas no texto.

    Penso que o debate por mais tempo que esteja colocado para nos (negros), ainda me parece que não ressoa aos ouvidos da academia, pensar a partir de Biko, Amílcar, Fanon, Du Bois e outros pensadores negros é inverter a percepção aos olhos de um branco e explicitar a nossa identidade para nos negros …

    Um outro dia desses colou na Fazenda Roseira aqui em Campinas, a Annenka, professora inglesa que trabalha em uma universidade da Jamaica, muito bom o bate papo, inclusive filmamos e estamos legendando para poder disponibilizar, a conversa girou em torno das dificuldades de pensar e propor politicas de ações afirmativas e as semelhanças entre Brasil e Jamaica quando nos propomos a pensar sobre isso, Annenka propõe um discussão por um vies panafricano e foi zuado quando ela começou a citar os pensadores que lhe serve como referencia e os universitários presentes fazendo caras de interrogação e observações muito semelhantes ao do Spensy na segunda troca de emails, e me veio na memoria a época dos fóruns de hip hop do interior, e na posse da qual fazia parte onde a gente debatia e trocava textos sobre esses e outros pensadores negros.

    Conhecimento académico baseado na nossa necessidade de compreensão do “nosso mundo”, nosso lugar nele e o no que queremos transforma-lo. Conhecimento adquirido na rua e para a rua.

    E parafraseando meu irmão Banto Palmarino ” quando a gente abandonar os silvas, os souzas … seremos milhares de bantos … ”

    segue a rima ….

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