Foto: Quilombo Nhunguara – Município de Eldorado Paulista (SP)
As comunidades remanescentes de Quilombos, localizadas em várias regiões do Brasil, são pouco conhecidas pela população, uma vez que esse assunto geralmente não é veiculado pelos meios de comunicação. Conforme disposto no art. 68 do A.D.C.T., da Constituição Federal de 1988, essas comunidades que estivessem ocupando suas terras teriam seu direito de propriedade reconhecidos imediatamente, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. No entanto, o que temos é o constante confronto físico e judicial dessas comunidades para conseguirem ficar em “suas” terras, uma vez que, o problema sempre recai no fato de se saber quem realmente são os remanescentes, como reconhecê-los legalmente e quais critérios a serem utilizados para este reconhecimento.
Pesquisas realizadas por antropólogos em comunidades localizadas no Estado de São Paulo e Bahia, visavam fazer a “identificação étnica, histórica e cultural” dessas comunidades para justificar seu direito de propriedade. Os grupos hoje considerados remanescentes de Quilombos se constituíram a partir das fugas com ocupação de terras livres e isoladas e, também, por meio de heranças, doações e recebimentos de terras como pagamento por serviços prestados ao Estado e mesmo a particulares e, ainda, pela simples permanência nas terras que ocupavam e nela trabalhavam.
Com a promulgação da C.F./88, surgiu a necessidade de regulamentação do artigo 68, de modo que a maioria desses grupos que reivindicam esse direito já tem comprovação, por meio de estudos científicos, de sua “identidade étnica” e do tempo de ocupação de suas terras (territorialidade). Temos que considerar, ainda, a “identidade quilombola”, constituída não de traços de parentesco, mas sim, por pessoas com traços culturais semelhantes e que lutam conjuntamente pela terra ocupada, unindo forças contra fazendeiros e grileiros, e contra a construção de barragens que inundariam diversas comunidades, como por exemplo, no Vale do Ribeira, em São Paulo. Por serem grupos minoritários, essas comunidades negras, em geral, são submissas e dependentes de grupos brancos que também tem interesses nessas terras.
Por serem terras, em geral, muito valorizadas e localizadas em áreas privilegiadas, são cobiçadas pela sociedade que os rodeia (empresas privadas e públicas, fazendeiros e grileiros), que as vislumbram como fonte de lucros e negócios milionários. Ao contrário, seus pleiteadores as querem apenas para seu trabalho e como fonte de sustento próprio e de suas famílias.
Para muitos juristas, o artigo 68 é auto-aplicável, ou seja, está apto a produzir todos os efeitos para o qual foi criado, imediatamente. Porém, forças políticas contrárias insistem em alegar, como base para não aplicação do artigo, o conceito colonial de quilombo, que os definia como sendo grupos de escravos fugidos, que saqueavam, roubavam e matavam os proprietários das terras e passavam a ocupá-las, e não teriam, portanto, direito a elas; argumentam, também, que tendo sido eles dizimados (conforme difundiu a historiografia tradicional do Brasil), não poderia haver remanescentes de quilombos. Alguns historiadores defendem que essa fuga foi um modo de expressarem seus anseios por liberdade.
Baseando-se em fontes documentais oficiais e em estudos recentes, que incluem relatos orais dos remanescentes, tem-se tentado provar a legitimidade dessas comunidades. Esses relatos são importantes, uma vez que os documentos oficiais “refutam a idéia de que os quilombos se isolaram da sociedade e são incapazes de se organizar e produzir, e ainda, que são alheios às mudanças estruturais e políticas do país”. Do ponto de vista étnico, essas comunidades comportaram africanos de diferentes regiões, negros nascidos no Brasil e, ainda, índios e brancos, que influenciaram na composição racial das mesmas, se tornando, segundo alguns estudiosos, uma “instituição transcultural”, e não, “remanescentes de quilombos”. O termo “remanescente” é considerado pejorativo, pois dá a idéia de “sobra”, “resto” e, alguns antropólogos preferem utilizar os termos “quilombos modernos” e “quilombos contemporâneos”.
É importante destacar que os quilombolas, em geral, se firmaram nas terras com o intuito de criar, plantar e caçar para sua sobrevivência e que nunca se preocuparam em legalizá-las, pois partilham da concepção “de que a terra é um valor moral e espiritual e está associada ao trabalho familiar”, tirando dela o necessário à sobrevivência da comunidade. Mas, em virtude da tentativa dos poderosos em negar-lhes o direito de posse e, também, de quererem se apoderar do seu único meio de sobrevivência, os quilombolas passaram a exigir que seus direitos fossem reconhecidos e pleiteiam os títulos que lhes conferem propriedade definitiva da terra por eles habitada.
(reflexão baseada em texto fornecido pela Professora Dra. Fernanda Telles Marques)
Buscas quilombolas
Boa tarde, Marcelo. É com grande prazer que vejo sua iniciativa de participar suas reflexões a outros interessados no assunto. Não esqueça, entretanto, que ao publicizar uma opinião ou artigo elaborado a partir de terceiros, sempre nos cabe mencionar as referências desta(s) obra(s) que consultamos (os autores e os títulos) e não de quem sugeriu tais leituras.
Um abraço, querido!
Buscas quilombolas
Com satisfação recebo a sua iniciativa e coragem de escrever sobre um tema que, infelizmente, ainda reúne poucos estudiosos. Entretanto, gostaria de comentar alguns detalhes. No meu entender a maior característica da identidade quilombola é o fator político, portanto, não existe nada de “submisso” na organização das comunidades. O histórico de luta, de organização e de permanência nas terras aponta o contrário. A prova é que fora casos extremos de violência e uso arbitrário e ilegal de recursos jurídicos, há comunidades ocupando as mesmas terras há 300 anos ou mais (veja a história de Frechal no Maranhão, as comunidades removidas pelos governos militares para a construção da base de Alcântara, também no Maranhão e mais recentemente, a remoção e seguida reintegração da Comunidade de Mata Cavalo, em Mato Grosso, dentre outras). Boa parte das arbitrariedades contra as comunidades ocorreu e outras ainda existem, principalmente, em função da ausência de legislação, ou seja, a inclusão do artigo 68 dos ADCT’s da Constituição Federal de 1988 criou alguma “segurança” às comunidades, mas sua redação deixa dúvidas quanto à autoaplicação, sendo necessária uma regulamentação própria por Estado, com a criação da respectiva estrutura administrativa e técnica para garantir que este processo de reconhecimento seja realizado. Alguns estados, como São Paulo, possuem boa estrutura para este trabalho, sendo referência para a elaboração da legislação em outros estados, mas de novo recaímos na característica da própria legislação. Um aspecto positivo, pelo menos do que é praticado em São Paulo, é que a abertura de um processo de reconhecimento de uma comunidade quilombola com a notificação ou encaminhamento do pedido aos órgãos competentes, tem efeito suspensivo, ou seja, impede, até que seja comprovado se a comunidade é ou não quilombola e tenha direito a posse da terra, quaisquer outros processos de remoção,ou, reintegração de posse por parte de herdeiros (veja: algumas terras ocupadas por quilombos, além de outras estratégias de formação, como as fugas, foram abandonadas por seus proprietários por razões variadas: levante de escravos, o advento da própria abolição, as terras no Vale do Ribeira em São Paulo, por exemplo, foram abandonadas com o fim do ciclo do ouro naquela região e a descoberta das Minas Gerais e etc, mas se há um registro em cartório da propriedade dessa terra para determinada família seus herdeiros podem requerê-la, não importa quantos anos ela esteja em poder dos quilombolas. Talvez este seja um dos motivos para demora na finalização de um processo de titulação que pode levar 15, 20 ou sabe-se se lá quantos anos, pois há conflitos quanto a utilização da lei de usucapião para redução desse tempo por terem características diferenciadas) e etc.
Vale a discussão do tema. Há muitos aspectos indefinidos tanto na legislação quanto na formulação de políticas públicas. O fato é que se as comunidades ainda persistem é por um forte vínculo entre seus integrantes do ponto de vista identitário, político, cultural, pois as condições de vida são muito duras e as ameaças, como você mesmo citou, são inúmeras. Concordo com você com relação à inadequação do uso do termo “remanescente”, pois ele não faz jus à história e à formação de muitas comunidades que se constituíram no calor do movimento abolicionário e no período revolucionário que o antecipou. Lembre-se que só 10 por cento dos negros permaneciam escravizados e participando ativamente dos levantes, dando apoio e suporte nas fugas e formação de quilombos e o Brasil estava muito próximo de uma revolta generalizada que levasse à independência do país, como ocorreu no Haiti, o grande temor das elites na época. Outro detalhe negativo quanto ao termo remanescente é que ele reforça a idéia de que uma organização complexa como o quilombo não deveria existir após a abolição e o nega como a primeira ação afirmativa ou indenizatória aos afrodescendentes, mesmo seu reconhecimento tendo surgido apenas 100 anos após abolição. Em suma, se o país tivesse reconhecido a legalidade das comunidades quilombolas em 14 de maio de 1888, garantido aos nossos ancestrais o direito à criação de uma estrutura econômica, cultural, religiosa em nossas terras, muitas das quais expropriadas de pequenos proprietários pela Lei de Terras de 1850, nossa história seria outra, com certeza.
Axé,
Maura Paz