As anti heroínas de novembro

Novembro é mês emblemático para os movimentos negros brasileiros, e na legislação do país hoje é possível contemplá-lo como aquele em que se celebra a imortalidade da luta e resistência negra personificada na e pela figura de Zumbi dos Palmares. Nesse doce novembro a sociedade brasileira assiste embasbacada, em seu horário nobre, a fragilidade das vivências democráticas brasileiras, ainda bastante próximas da democracia clássica onde mulheres e escravos não eram cidadãos. Aliás, a despeito da falácia de que as mulheres conquistaram seu lugar na sociedade, os episódios que aqui se pretende analisar dão conta do quão distante a população feminina brasileira está de ser considerada cidadã no sentido filosófico da palavra – aquela que interfere material e simbolicamente na vida da cidade.

Ao analisarmos o fato ocorrido com a estudante da Unibam, ainda nos primeiros dias do mês de Zumbi, vemos uma violência brutal ser manifestada em relação ao uso de um tecido de cor forte que parece atiçar os homens, tal qual touros raivosos numa arena. Nessa análise é possível compreender as estruturas simbólicas fortemente construídas a respeito dos papéis e lugares socialmente destinados às mulheres nos espaços públicos e privados.

É fato que a utilização dos espaços está permeada por relações de poder que constituem e classificam sujeitos, modos, hábitos e performances, ou seja, o que pode ser revelado e o que precisa ser escondido. São essas relações que transformam esses lugares em territórios e criam identidades. Neste sentido, as relações sociais são construídas e alicerçadas numa gama de representações, simbolismos e significados e, no caso em questão, a disputa desse território esteve (como sempre ainda está) definida por um dos marcadores sociais que delimitam espaços e trajetórias no Brasil: o pertencimento de gênero.

Como observou Contardo Calligaris (2009) ao comentar o incidente, a barbárie levantada contra a estudante de vestido curto revela como as representações sociais brasileiras ainda são conformadas no sentido de negarem à mulher o direito ao SEU corpo e, consequentemente à vivência de sua sexualidade. Observe-se que na verdade, a turba enfurecida contra a estudante foi alimentada não só pelas formas de controle do corpo feminino, mas também pelo imaginário social machista que ainda não reconhece o espaço público como sendo de direito também das mulheres. E mais ainda, não reconhece o direto conquistado pelas mulheres no uso e ‘abuso’ de sua sexualidade. Nesta lógica machista, a estudante teria cometido dois erros crassos à condição feminina – utilizar-se do corpo da forma como bem lhe convém, negando-o apenas como uma matriz para reprodução, e a livre circulação desse corpo sexualizado, ‘corrompendo’ e fomentando desejos e perigos no espaço do conhecimento que ainda hoje é concebido como naturalmente masculino, o espaço de ‘touros’. Adentrar esse território – território no sentido atribuído por Milton Santos – é acionar a raiva dos homens-touros, que se sentem autorizados a utilizar sua fúria para machucar, destroçar e estuprar, afinal, eles foram tentados, persuadidos.

A discussão de gênero mais do que problematizar a construção do masculino e feminino, é responsável por trazer à tona as desigualdades que imperam e estruturam essas construções e seus significados sociais, que em última análise determinam os lugares destinados a mulheres e homens na teia das relações sociais. E, em se tratando de lugares sociais D’Incao (2004) ao analisar o pensamento burguês em relação às mulheres brasileiras no início do século XIX, argumenta que o padrão de ser mulher era construído tendo como fundamento o espaço doméstico como direito e dever da mulher. Além disso, as obrigações comportamentais advindas desse padrão obviamente não garantiam às mulheres o direito ao corpo, e muito menos ao prazer a partir dele. Mesmo as mulheres negras, que por sua condição subumana eram vistas e vividas a partir de outro padrão comportamental, e que por isso faziam um uso, ao menos teoricamente, mais libertário do espaço da cidade, eram tão ou mais aprisionadas que as mulheres burguesas já que ocupavam o lugar do corpo objeto. A despeito do discurso de que as mulheres conquistaram a arena pública, o cotidiano dos sujeitos femininos denuncia o quanto se tem que caminhar na validação dos direitos.

Todo arrazoado apenas para analisar o caso da Uniban como algo além de um fato pontual, e sim, como resultado de disputas construídas ao longo dos muitos anos de formação da sociedade brasileira. Nesse caminho de construção identitária o segundo episódio a ser analisado apresenta enorme pertinência no que diz respeito aos territórios erigidos a partir de outro importante marcador social no Brasil: a cor da pele.

Nesse caminho de construção identitária o doce novembro apresenta-nos um novo episódio, dessa vez numa realidade fixional, não a do Max Weber, mas do Manoel Carlos. Trata-se de uma mulher, negra, sem maquiagem, vestida de modo bastante próximo às representações imagéticas relacionadas aos sujeitos escravizados, penteada sem glamour e ajoelhada diante da sinhá pedindo perdão por uma culpa que não cabia em suas costas… Em resposta é esbofeteada… Sem dúvida, é a retratação grotesca do pensamento social brasileiro que ainda hoje se divide entre os descendentes da casa grande e os descendentes da senzala.

Fugindo à pormenorização dos detalhes da telenovela Viver a Vida é importante saber que no capítulo a que se faz referência, a personagem de Taís Araújo apresentava desculpas à sua antagonista, interpretada por Lília Cabral, pelo acidente da filha desta, acidente esse que é interpretado pelo enredo da trama como de responsabilidade da personagem de Taís Araújo, esta, arrogada pela emissora como a primeira protagonista negra de uma trama de horário nobre.

Ser a primeira protagonista negra em horário nobre não livrou a mulher negra que Taís Araújo é, de interpretar uma cena onde realidade e ficção se confundem ao ponto de não se saber ao certo o que representava de fato o que foi exibido. Não há meios de definir as representações sociais e imaginários presentes na cena.
Então, não há meios de definir ao certo quem foi esbofeteada, se a personagem Helena ou se a atriz Taís Araújo e tudo o que ela poderia representar…

Algo entre a raiva, o ressentimento, a revolta e a indignação deveria tomar conta dos telespectadores (as) se esse fosse um país onde existisse a possibilidade de se vivenciar uma verdadeira democracia racial, porém, como veiculadores do que Boris Fausto (2008) chama de “racismo ordinário”, não é de se assustar que nada fosse feito diante da brutalidade simbólica da cena exibida no folhetim. Ressalte-se ainda que além da subjugação “interpretada” por Taís Araújo, o gatilho de toda a sequência de maus acontecidos na vida da personagem é disparado com uma discussão onde sua enteada a acusa de ter conseguido ascensão na carreira de modelo pela decisão “mal tomada” de no passado ter realizado um aborto.

Não bastasse o reforço negativo a todas as mulheres negras telespectadoras da novela, a bofetada também vem no sentido de punir exemplarmente qualquer movimentação em torno da descriminalização do aborto. Helena é o bode expiatório de mulheres, homens e instituições que rogam o direito inalienável ao corpo e a possibilidade de decidir os rumos a serem dados a esse corpo. A bofetada de Tereza avança do rosto de Helena e se concretiza nas teias de um Estado não laico, eminentemente patriarcal, machista, moralista e sexista.

Do mesmo modo, o tapa de Tereza vai além do rosto de Helena e atinge todo um grupo social que, bem ou mal, se vê representado em Taís Araújo. Esta, ao protagonizar a trama de um referendado dramaturgo fez que um bom número de desavisados acreditasse que sua participação poderia ser o anúncio de novos caminhos para as representações sociais destinadas às mulheres negras brasileiras: o lugar do objeto, da serviliência, da falta de direitos, da invisibilidade… O lugar do não lugar. A bofetada em Helena é um sopapo na cara de Taís Araújo e de tantas mulheres e meninas negras que sabem exatamente qual é, nesse país, o peso cruel da condição de ser negra e de ser mulher.

Geysa Arruda, aluna da Unibam, e Taís Araújo, primeira protagonista negra do horário nobre, são as “anti heroínas” desse mês de Zumbi. Em situações diferentes, porém similares, protagonizaram em contextos diversos, e ganhando a cena nacional, episódios da flagrante condição machista e racista da sociedade brasileira. Seja pelo jaleco branco cobrindo o corpo de Geysa da fúria machista, seja pela bofetada repousada na cara preta de Taís Araújo, mais uma vez a sociedade brasileira tem provas contumazes do quanto ainda é preciso caminhar em direção a uma sociedade verdadeiramente inclusiva e democrática. Por enquanto, as mulheres brasileiras continuam sendo as que precisam se explicar quando mostram minimamente gerência sobre seus corpos, e se negras, a explicação, por vezes, precisa ser feita de joelhos. E quando uma mulher está ajoelhada na posição da subalternidade, quando apenas uma mulher está proibida de decidir sobre seu corpo, todas, sem exceção, estão sendo covardemente esbofeteadas.

Bibliografia

Calligaris, Contardo. A turba da Uniban. Disponível em http://64.233.163.132/search?q=cache:tREO-xH4vOwJ:contardocalligaris.blogspot.com/2009/11/turba-da-uniban.html+calligari+caso+uniban&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Consultado em 27/11/2009.
D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p.223-240.

SANTOS, Milton & SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2003.

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