Aqualtune: associação e ação de mulheres negras.

Foto: Dayse Gomis (Artista Plástica/Profa. de artes), Sheila Dias (Assistente Social/Professora UFOP), Ana Beatriz Silva (Geógrafa/Profa. de Geografia), Evelin Dias (Estudante de Serviço Social), Flávia Sousa (Atriz, cantora, dançarina e Professora), Allyne Andrade (Advogada/Mestranda USP – Relações Internacionais em Direito)

Ciranda Afro – Como vocês, integrantes do Aqualtune, definem o grupo, resumem sua história e apresentam as criadoras do coletivo?

Aqualtune – A Associação de Mulheres Negras Aqualtune nasce em 16 de junho de 2007, da iniciativa de jovens mulheres negras atuantes no movimento negro e carentes de espaço para discutir as temáticas ligadas ao racismo, sexismo, homofobia e lesbofobia. Nasce também da insatisfação dessas jovens com a participação em seus grupos anteriores, com a fraca atuação prática destes grupos junto à população negra e com o forte sexismo sofrido dentro desses grupos e muito ativo nas reuniões, congressos e conferências. Neste momento em que se discutia bastante sobre ações afirmativas, algumas das participantes da associação já estavam ou entravam na faculdade e se encontraram questionando e buscando espaço de afirmação dentro e fora do espaço universitário.
Um grande exemplo nesse sentido foi um fato ocorrido na UERJ, em nosso primeiro encontro oficial. Ainda na faculdade, encontramos uma adolescente negra que vivia com sua filha em um abrigo próximo a UERJ. Tentamos ajuda na Universidade para esta jovem em situação de abrigamento, pois, tinha se perdido dentro do Campus da UERJ/Maracanã. Entramos na história de vida desta mulher e isso só reafirmou o nosso propósito de romper o muro da faculdade buscando reaproximação com o nosso grupo étnico ainda excluído de vários espaços.
Somadas, as experiências aguçaram a percepção da necessidade de se lançar um novo olhar sobre as juventudes, a negritude, a mulher, o feminismo, a homoafetividade de maneira etnocentrada, com base não só na teoria, mas considerandos as vivências de cada uma, a orientação para uma militância atuante e buscando a construção de uma realidade equânime. Somos uma organização da sociedade civil, laica e apartidária. Desejava-se também a construção de um grupo no qual fosse possível o convívio do saber acadêmico e do popular. O desejo era buscar o empoderamento através da atuação em espaços políticos de poder, mas também de uma grande e majoritária ação com as mulheres negras da comunidade, em segmentos os mais variados possíveis, trabalhando em creches, escolas, pré-vestibulares comunitários, favelas, universidades, associações de moradores e etc.

Ciranda Afro – A frase “nossos passos vem de longe” é usada pelo Aqualtune. Trata-se de uma referência ao intuito de resgatar saberes tradicionais e estabelecer um elo com a ancestralidade africana existente nos diferentes continentes que abrigam a diáspora negra?

Aqualtune – Sem dúvida esta frase nos remete a um resgate histórico, nos deparamos com ela no livro Saúde das mulheres negras, da ONG CRIOLA. Porém, na prática do grupo, que pretende uma atuação de ponta diretamente com a população negra, a frase vem afirmar que nosso tempo não é um tempo contado pelos colonizadores escravocratas. Nossa história é mais rica que esses limites impostos e deve ser conhecida. Consiste também em uma perspectiva de caminhada em conjunto com essas mulheres negras que desde o início já faziam esse passos, já lutavam, já apresentavam interesse na unificação da família africana.

Ciranda Afro – Que atividades a Aqualtune realiza e como os saberes tradicionais vindos do continente africano são aplicados nestas ações? Além desta troca, há um diálogo atual entre o grupo e mulheres africanas, afro-caribenhas e afro-latinas?

Aqualtune – Em nossas oficinas priorizamos a oralidade e a corporeidade. Atuamos em várias frentes, pois estamos tanto em seminários externos e internos (capacitação do grupo), congressos, conferências, fóruns nacionais e internacionais, encontros diversos, debates sobre temas de interesse para nossas discussões, oficinas sobre racismo, sexismo, violência doméstica e empoderamento de mulheres. Oferecemos estas oficinas em espaços como universidades, escolas, pré-vestibulares comunitários, ONG`s e projetos sociais.
Produzimos o ciclo de debates entre pretas. Neste encontro, autoras negras expõem o produto de sua criação, apresentando suas obras literárias, teses, monografias, livros, poemas, músicas e etc. A atividade é feita para trocarmos informações entre pretas (já que o nosso público é totalmente de mulheres negras) e entendemos que também nos capacitamos nesses processos, já que trazemos à tona nossas questões e enegrecemos os fatos.
Organizamos o Dançáfrica (oficinas de danças afrobrasileiras e africanas), o Prêmio Lenora Mendes (homenagens às mulheres negras), organizamos também eventos culturais e de pesquisas, como o VI Copene Rio de Janeiro(organizamos o GT-Juventude com Mesa Redonda e Mostra Cultural). Exposição de trabalhos de artes, artesanato e bijuterias produzidos por mulheres negras do grupo e por nossas parceiras.
O diálogo com mulheres negras de outros países se dá de forma coletiva. Já participamos de atividades internacionais na Colômbia (América do Sul), Senegal (África) e também em território nacional como nos estados de Alagoas, São Paulo, Brasília, Ceará, Goiânia, Bahia, Paraná, no estado do Rio de Janeiro (interior), porém, sentimos algumas dificuldades devido às questões de financiamento e restrição de patrocínios, o que impede a mobilidade do grupo. Felizmente, temos algumas instituições parceiras e apoiadores que nos ajudam e acreditam na nossa associação.

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Ciranda Afro – O dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha foi instituído para ser um marco internacional da luta e resistência da mulher negra. No Brasil, a data tem sido valorizada em atividades do afro-feminismo. Como o Aqualtune lida com este discurso e como avalia sua importância na luta e resistência da mulher negra contemporânea

Aqualtune – Lidamos com esta data de forma propositiva para a Associação, também como marco de resistência das mulheres negras e sua visibilidade no contexto nacional e internacional. Nesse sentido a valorização da data nos coloca na pauta política, social e desenvolvimento de atividades para nosso segmento. Bem, a mulher negra exerce o feminismo há tempos, atuação não só contemporânea, mas em todo o processo da luta negra contra as opressões. Somos pioneiras e protagonistas de desafios diários, em casa, no trabalho e nas relações sociais como um todo. Estamos na base da pirâmide, se não lutamos e não trabalhamos não sobrevivemos. Então a mulher negra é feminista pela sua impetuosa visão desde os tempos da escravidão. A maioria de nós é chefe de família na maioria dos lares pretos brasileiros. Somos protagonistas de nossas histórias. Contudo, o feminismo negro, apesar de lutar contra sexismo, não empreende contra a masculinidade do homem negro, por sua própria realidade no contexto de sobrevivência. Sendo assim, nossa luta é importante na medida em que qualifica o protagonismo da mulher negra, nutrindo-o de informações que podem melhorar sua qualidade de vida e organização na luta contra o racismo e todas as formas de discriminação e preconceito.

Ciranda Afro – Participantes do mesmo movimento de resistência da mulher negra, as integrantes do Aqualtune possuem trajetórias pessoais e profissionais diferenciadas. Esta diversidade profissional é aplicada na produção de ações em diferentes áreas? O coletivo tem atuado e pretende atuar em que áreas e projetos?

Aqualtune – Sim, sem dúvida nossos saberes e práticas individuais acabam sendo aproveitados nas ações de forma conjunta ou, quando uma atividade tem mais a ver com o saber de uma das integrantes, esta acaba instintivamente assumindo a direção da atividade, apoiada pelas outras. Esta diversidade de formações das integrantes da associação, como assistentes sociais, geógrafa (professora), professora de dança (atriz e cantora), professora de artes (artista plástica), advogada, médica, pesquisadoras das relações raciais e de gênero, traz à tona nossa capacidade de produção e vontade política, sócio-cultural-educacional para nossas irmãs e irmãos negros. Também tem nossa formação na militância em diversos espaços como pré-vestibular comunitário (ações afirmativas), Hip Hop (frente de mulheres), frente em movimentos culturais como o Akoben, projetos sociais diversos, grupos de mulheres (saúde e violência domésticas), mulheres de religiões de matriz africana, juventude negra nas igrejas metodistas e outros, tudo isso colabora com um amadurecimento político e diversificado junto ao Aqualtune. A Associação acaba atuando mais na área de educação social, informação, qualidade de vida, como também vem amadurecendo ideias de novos projetos nessa área.

Ciranda Afro – Em contato com mulheres afro-brasileiras de diferentes locais, como analisam o atual estágio dos processos de construção de autoestima e identidade destas mulheres?

Aqualtune – O legado deixado pelo mito da democracia racial e da submissão ainda é muito forte e agrava um contexto marcado pela situação difícil resultante da falta de educação de qualidade, de saúde pública e de emprego em nosso país e, especialmente, entre a maioria dos afrodescendentes. Porém, as discussões sobre as ações afirmativas, nos lugares onde elas são promovidas, vêm mudando timidamente esse cenário de invisibilidade. Tentamos contribuir nos espaços onde estamos e atuamos para a elevação da autoestima dessa população negra. Ressaltamos que o uso do conceito de estima, às vezes, é usado para acentuar a culpabilidade do negro por uma exclusão social observada em sua trajetória.
Substituímos o conceito de estima por invisibilidade por entender que a realidade social negligenciada e inviabilizada provoca uma baixa autoestima que contribui para desempenhos fracos, que não resultam da vontade do indivíduo, mas destas condições adversas vencidas por algumas exceções. Para a maioria invisibilizada, tal quadro faz sucumbir várias tentativas de transformação na vida, no corpo, sem quase nenhum sucesso efetivo. Precisamos falar cada vez mais sobre essas questões que são intrínsecas ao desenvolvimento, não só da estima, como, social e nacional. Visto que somos cidadãos afrodiaspóricos imbricados em diversas questões e situações sociais brasileiras.

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Ciranda Afro – Somando realizações nos últimos cinco anos, o que o Aqualtune tem a dizer sobre dificuldades, erros e acertos das mulheres empreendedoras de trabalhos no âmbito da cultura afro-brasileira e relações étnicoraciais?

Aqualtune – Aqui cabe outra questão do feminismo negro, nossas jornadas são sempre maiores e/ou mais difíceis, por estarmos na base da pirâmide social, fazer parte do grupo “invisível” podemos contar com muito menos recursos e incentivos. Temos que nos desdobrar entre trabalho, estudos, família, religião e militância (sem contar a ditadura da beleza). E mesmo sem os mesmos recursos das não negras temos que acompanhar o ritmo social de produção e prestação de contas. Nossas dificuldades são como as de qualquer outra instituição de mulheres, em especial de mulheres negras, implicadas com a falta de patrocínio, dificuldades financeiras para produção de atividades. Temos dificuldades internas inerentes a diversas personalidades no grupo, porém, nesses cinco anos de existência percebemos que o tempo nos aproxima cada vez mais pelas nossas especificidades, tanto no âmbito familiar, profissional e social. Eis o diferencial do grupo, já que nós mulheres temos famas de sermos inimigas umas das outras e desejarmos o pior. A cada dia a associação está mais fortalecida e suas integrantes desejando o melhor para grupos, coletivos e associações de mulheres existentes. Precisamos de visibilidade.
Atualmente lembramos as ações construídas em conjunto desde sua existência, o tempo nos dá sabedoria e discernimento em algumas atitudes e o compromisso com as nossas e nossos é de suma importância para fortalecimento da associação. A nossa cumplicidade é maior e, maduras umas com as outras, a confiabilidade também. Temos um grande respeito às mulheres negras que fizeram parte da história desse país e admiramos também esta relação travada entre nós, primordial para elaborar nossa trajetória. Hoje o Aqualtune preza pela unidade, coletividade, confiança e respeito, se não tem isso, não avançamos no nosso propósito. E para ser uma aqualtune o único critério é ser uma mulher negra. Isso é o que importa.

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