Aparelha Luzia: culturas, resistências e ancestralidades

Associação Preta Política Artística Gentística Destruidora das Razões Dominantes, assim define-se a espaço cultural independente Aparelha Luzia, situada na Rua Apa, número 78, no Centro de São Paulo. A Aparelha Luzia traz em seu nome as memórias de Luzia, o primeiro fóssil feminino encontrado no Brasil. Propõe ser quilombo urbano, lugar de fusão entre a experiência cultural e as diferentes militâncias necessárias ao enfrentamento dos discursos fascistas, machistas, racistas e outros tantos, inaceitáveis, mas evidentes na conjuntura brasileira deste século XXI.

Espaço agregador, a Aparelha acolhe e promove ações que utilizam variadas linguagens artísticas para fazer ressoar discursos que têm sido alvo de ataques inspirados pelo ódio difundido pelo conservadorismo excludente predominante na paisagem brasileira desde a sua formação.
Por entre os novos prédios da paisagem urbana de São Paulo, resiste a construção antiga, revigorada pela arte espalhada por todo canto. Ali, entre comidinhas, performances e tombamentos que propõem ir além do estético, toma forma um projeto de resistências descrito na fala de seus dinamizadores como:

“mais um território na Pauliceia dos visíveis. Lugar de visíveis que no cotidiano estão a se expressar pelo risco da rua, do trabalho, do estudo, do ativismo, da vida doméstica, das artes, do cárcere… São visíveis que vistos estão, visíveis negados, invisibilizados enquanto produtores de saberes. De culturas deveras fundantes. Conflitantes. Luzia há de ser este território parceiro de longa data dos movimentos de resistências que agora no presente gerou seres como nós, ainda resistentes porque ainda há muito o que se resistir”.

Com este espírito resistente e combatente, a Aparelha movimentou a noite seguinte à paralisante aprovação da destrutiva PEC 241 no Congresso Nacional. Naquele entristecido 11 de outubro, literatura e rap ditaram o tom da conversa durante a mesa mediada pela jornalista Rosane Borges e composta pela professora Simone Ricco, pelos escritores Cuti, Jhow Carvalho e Tiago Guerra e pelo rapper Raphão Alaafin. O ponto de partida foi a autoria negra, sua trajetória de resistências às dificuldades de publicar e vender e os caminhos buscados para criar um acervo de longa data e recente projeção.

O público presente ouviu e participou de trocas sobre a safra mais recente deste acervo literário negro, no qual estão inseridas as obras publicadas pela Editora Malê e lançadas na Aparelha: Contos Escolhidos, de Cuti e a antologia de contos Letra e Tinta, da qual fazem parte textos de Jhow Carvalho e Tiago Guerra. As falas sobre a escrita negra mostraram o tom militante da produção literária negro-brasileira, que desde seu início investiu em temas não canônicos e formulou abordagens subjetivas do que se costuma universalizar. O texto literário privilegia experiências que permitem trabalhar o protagonismo negro e evocar dados implicados com a vivência dos oprimidos pela desigualdade social, racismo e homofobia.

Ao lado do texto literário, as letras de rap fazem circular temas presentes no cotidiano da população negra, concentrada na periferia ou inserida em lugares sociais diferentes dos estipulados pelo imaginário. As intervenções do rapper Raphão Alaafin, mostraram como as letras do rap constituem texto oral que milita, a seu modo, por uma experiência periférica protagonista, responsável por dar voz a jovens silenciados, invisibilizados e estereotipados. Parceiros em uma experiência literário-musical, Raphão e Cuti reforçam a validade das articulações de fazeres artísticos, como modo de atualizar a vivência comunitária negra existente nas comunidades tradicionais de matriz africana.

Remando contra as práticas excludentes constatadas nas ruas e ampliadas na política de redução de direitos, a Aparelha Luzia trabalha esteticamente este terreiro urbano, território de vivência comunitária que agrega “trans, negrxs, LGBT’s, pobres e mulheres, indígenas, imigrantes e de outros marginalizados que já conhecem bem o peso da violência que a cultura dominante exerce nas relações cotidianas com o aval do estado genocida”, como define a educadora Erika Malunguinho.

Respaldada por sua vivência como mulher negra trans e militante negra, Erika articula as ações desta organização comunitária combatente. Sob seu comando, após o lançamento das obras da literatura negro-brasileira, aconteceu o segundo encontro da Plataforma Política Negra Etnicogolpe, uma proposta de reunião de “negros de diversos ativismos para pensar e elaborar um plano estratégico diante do cenário político atual”, assim descrito pela equipe da Aparelha:

As últimas eleições reafirmaram o projeto excludente dos agentes políticos que sempre estiveram de uma forma ou de outra no poder. Tanto as prefeituras como as câmaras de vereadores foram loteados pelo que há de mais reacionário na política brasileira. O fechamento de pastas e secretarias importantes no combate as discriminações são apenas um sinal do modelo de política que será praticado daqui pra frente. Projetos de privatização, modificação da CLT, entreguismo das riquezas nacionais, precarização do ensino público, são apenas o início de uma sequência de eventos que, evidentemente, tem como alvo a população preta.

O Etnicogolpe foi mais uma das ações postas em prática pela Aparelha Luzia para reforçar as discussões importantes numa conjuntura que naturaliza o genocídio de negros e LGBT´s, adotando medidas que confirmam retrocessos no pensamento e nos direitos conquistados por minorias. Palavras dos dinamizadores da Aparelha detalham as implicações deste projeto com a memória da comunidade negra e com a busca de estratégias para enfrentar o sistema jurídico e penitenciário, a violência policial e o racismo estrutural impostos à população negra, também afetada pela invisibilidade, pois, como esclarece o texto da equipe Aparelha:

É sabido que no decorrer da História oficial contada pouco se relata da participação dxs negrxs nas lutas que construíram e movimentaram os debates nacionais. Quando acontece esse registro ou ele está diretamente voltado a questão negra, entendidas como de pouca importância, ou quando negrxs aparecem, surgem como coadjuvantes, como pano de fundo de um conjunto auto-determinado “a sociedade brasileira”. O fato é que nas “grandes” narrativas da formação da nação não constam a presença social e política negra.

Com o Golpe Temer não é diferente. Assim como no Golpe de 64, poucos são os registros das manifestações que culminaram na campanha das “Diretas” em que aparecemos. O interessante é que o estado sempre operou de modo opressor sobre as populações pobre e negra e essa mesma população ainda que vivendo em constante estado de resistência, não é vista como sujeitos do levantes, revoltas e rebeliões populares. que reivindica sobre si.

Diante disso, parece urgente e necessário que a resistência ao golpe seja um Fora Temer, mas ao mesmo tempo, uma luta contra o racismo estruturante, pois é ele que fundamenta as desigualdades e as violências de Estado no país, manipulando a saúde, educação, cultura e habitação para precarizar a vida dxs negrxs.

Bem nutridos pela cozinha divinarretada de Cícera e ao saber dos drinks preparados pelas black barwomans da casa, ativistas em ação na periferia, nos campus e na cultura buscaram compreender os aspectos a serem levados em conta para a necessária mudança de argumentos no pós-golpe, pois, como pontuou Rosane Borges, “os racistas, fascistas e machistas já passaram”, tornando-se necessário pensar as estratégias para frear a marcha destes grupos e impedir a cassação de direitos conquistados nos últimos anos. A reflexão envolveu jovens engajados em diferentes frentes de militância, lideranças comunitárias periféricas, estudantes, pesquisadores e profissionais como a jornalista Sandra Campos, o historiador e pesquisador Salloma Salomão, a atriz Dirce Thomás, os escritores e editores dos Cadernos Negros, Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa.

Sobraram perguntas entre os presentes neste “Território de Mediação, Espaço de Criação, Lugar de Circulação”. As falas confirmam o endurecimento da repressão policial-estatal nas ruas do Centro e das Periferias. Outras vozes informam sobre leis em tramitação e extinção de secretarias ligadas aos direitos populares, especialmente aqueles direitos recentemente adquiridos pela população LGBT e ações afirmativas conquistadas pela população negra e pobre, hoje inserida em maior número nas universidades e espaços transformados em alvo do desmonte esboçado e confirmado a cada medida abusiva, diante das quais seguimos com semelhante “estado de espírito: em alerta” ressaltado no texto criado por integrantes da Aparelha para expor posturas adotadas e caminhos seguidos para combater o que nos subalterniza e fortalecer o que nos faça protagonistas de uma outra história, em vias de construção, e agora interrompida. Para retomar e seguir este curso de transformações do imaginário, feitas com respaldo de medidas legais e com lutas não criminalizadas, os dinamizadores da Aparelha esboçam uma narrativa sobre seu território, lugar de existir resistindo e insistindo na descolonização dos corpos e das mentes:

Aqui assim se pensa a arte da curva. Entretanto é importante retomar que este posicionamento independe do estelionato ético que acomete Brasília e os poderes republicanos na atualidade, pois entendemos que o golpe foi dado há tempos. A priori na construção do modelo de sociedade que fomos induzidos e que compulsoriamente praticamos. Seguido organicamente por uma vil política de exclusão que se destina à manutenção das estruturas de poder que inferiorizam, perseguem e exterminam a vida de toda gente bonita que habita longe da normatividade.

Fotos: Gal Souza

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Érica Malunguinho – arte educadora e artista plástica
(idealizadora e produtora do espaço)

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Tiago Guerra e Jhow Carvalho (escritores)
Lançamento do livro Letra e Tinta

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Cuti (escritor) e Rosane Borges (jornalista)
Lançamento dos livros Contos Escolhidos e Letra e Tinta

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Simone Ricco (professora e escritora)

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Raphão Alaafin (rapper)

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